Congresso colombiano aprova prisão perpétua para alguns crimes
Na semana do dia 18 de Junho de 2020, em uma decisão histórica e no mínimo polêmica, o Congresso colombiano aprovou uma reforma constitucional que permite a prisão perpétua para assassinos e estupradores de crianças. Este projeto tem sido apresentado ao Congresso colombiano inúmeras vezes desde 2007, e está sendo debatido há mais de uma década. Apesar do projeto ter sido anulado pelo tribunal de justiça em 2010, por não ter sido considerado intrinsecamente imoral ou ineficaz, o debate continuou em aberto e essa proposta manteve o status de possível abordagem a crimes contra a criança no país.
Esta proposta, apesar de apoiada por diversos partidos no país, é tradicionalmente associada com figuras da ala conservadora da política doméstica colombiana. O projeto foi, inclusive, uma das propostas de campanha do atual presidente do país, que nesta semana comemorou a aprovação da proposta em um programa online.
A polêmica que circunda o debate é inerente à natureza dele. Se em um extremo temos abolicionistas penais e aliados alegando a ineficácia do Sistema Carcerário, que além de historicamente ferir os Direitos Humanos, também alegadamente não ressocializa criminosos ou reconstrói o dano que causaram à sociedade; do outro lado há defensores dos Direitos da Criança e do Adolescente que entendem que tradicionalmente crimes contra a criança, especialmente de caráter sexual, têm sido negligenciados, e que a prisão perpétua, além de garantir a segurança de futuras vítimas em potencial, seria uma maneira de dar a seriedade necessária a esses crimes.
A partir de um ponto de vista mais sociológico, podemos deliberar que esse tipo de crime, mesmo em seu aspecto muitas vezes patológico, parte de uma estrutura social conivente com ele. Citando o psicólogo e especialista Mário Gomes de Figueiredo, esses crimes carregam um caráter social, além do subjetivo.
“Nesse sentido, iremos considerar aqui o conceito de sujeito não como algo em si mesmo, sem determinações que lhes são exteriores, mas como produto de três determinantes: um biológico, que diz respeito à filogenia e à herança genética de cada um. Outro seria o psicológico, caracterizado pela ontogenia, que é a história particular de vida do indivíduo. Por fim, tem-se a cultura, composta de práticas coletivas do ambiente social. Portanto, o sujeito nessa visão é entendido como produto da relação dialética entre o comportamento do indivíduo e seu ambiente social, onde um não prevalece sobre o outro, mas sim é determinado por um, ao mesmo tempo em que o determina. Ou seja, o sujeito é produto e também produtor da sociedade que o determina (SKINNER, 1994; 1995; 1999). A definição desse conceito de sujeito é fundamental para a abordagem da questão, uma vez que aponta para um sujeito como relação, entre ele e seu ambiente social, onde um não tem autonomia sobre o outro e se influenciam mutuamente (MICHELLETTO, 2008).” (DE FIGUEIREDO, 2008, p. 5).
Visto isso, entende-se que além de uma solução penal, estes crimes requerem uma ação social para serem verdadeiramente solucionados, desde o acolhimento e tratamento da vítima, quanto à ressocialização do réu; bem como políticas públicas preventivas, que podem passar tanto por abordagens educacionais quanto de segurança. Estes mesmos conservadores que defendem ferrenhamente a solução penal também estariam dispostos a investir em educação sexual nas escolas, que têm como uma das principais funções ensinar a reconhecer situações de abuso e a orientar como pedir ajuda?
Além desta análise, há ainda mais um ponto a ser levantado sobre o caráter punitivo, e não reconstrutivo, da medida. Se conseguimos compreender estes crimes como um complexo emaranhado de fenômenos sociais, históricos, psicológicos e políticos, e, portanto, conseguimos compreender a necessidade de abordá-los em todas essas instâncias, isso ainda não descarta ou refuta a abordagem penalista. Citando a filósofa e ativista política Angela Davis, porém, podemos compreender brevemente a ineficácia de sistemas penais para solucionar problemas sociais; e que, além de serem ineficazes, muitas vezes agravam o problema.
“A prisão, portanto, funciona ideologicamente como um local abstrato no qual indesejáveis são depositados, dispensando a responsabilidade de pensar sobre os problemas reais que afetam as comunidades das quais os presos são atraídos em números tão desproporcionais. Esse é o trabalho ideológico que a prisão realiza – nos isenta da responsabilidade de nos envolvermos seriamente com os problemas de nossa sociedade, especialmente aqueles produzidos pelo racismo e, cada vez mais, pelo capitalismo global.” (DAVIS, 2018).
Apesar de existirem bons argumentos para o porquê a medida aprovada ser ineficaz, a questão segue não sendo tão simples assim. A impunidade histórica que esse tipo de crime tem gera uma revolta justificável em sobreviventes e suas famílias, e a natureza do crime evoca socialmente um sentimento de repulsa – mesmo que seja um sentimento raso e imediato ao crime, mas que não é presente em todas as narrativas sociais que antecedem o crime e geram espaço para que ele aconteça. Poderia-se dizer, portanto, que essa medida seria exatamente um reflexo disso. Uma repulsa rasa e imediata que leva ao ímpeto de punir, mas que não é profunda o suficiente para reformar ou ao menos reconhecer as estruturas sociais que sustentam esse tipo de crime.
Visto isso, por mais que o debate atravesse complexas questões legais, filosóficas, sociais e psicossociais, há algo na política que tem que ser pragmático, e não pode se alongar indefinidamente em arguições que não oferecem respostas sólidas. A realidade é cinzenta e não se materializa em termos de preto e branco, mas na maioria das vezes a política só pode existir através de uma linguagem recortada e com limites éticos bem definidos, de maneira quase maniqueísta. Não é de se surpreender, portanto, que depois de mais de uma década de debate se comemore que uma solução sólida com fronteiras claras entre o certo e o errado tenha sido atingida.
REFERÊNCIAS
DAVIS, A. Estarão as prisões obsoletas?. Editora Bertrand Brasil, 2018.
DE FIGUEIREDO, M. G. Pedofilia: aspectos psicossociais e significações. Caderno Neder, nº 3 – Violência e Criminalidade. Editora UNIVALE. 2008.
TORRADO, S. El Congreso de Colombia aprueba la cadena perpetua para asesinos y violadores de niños. 2020. Disponível em: <https://elpais.com/sociedad/2020-06-19/el-congreso-de-colombia-aprueba-la-cadena-perpetua-para-asesinos-y-violadores-de-ninos.html>. Acesso em: 25 de junho de 2020.