A migração brasileira para a Guiana Francesa: desigualdade social e clandestinidade
A migração de brasileiros para a Guiana Francesa começou por volta da década de 1960, época em que o governo francês e empresas de construção civil necessitavam de mão de obra imigrante para o setor, em virtude da falta de trabalhadores no território. Cerca de 20 anos depois, na década de 1980, o garimpo ascendeu como principal atividade econômica na região de fronteira entre Guiana Francesa e Brasil, o que também atraiu imigrantes para a Guiana Francesa. A prática migratória, principalmente para trabalhar nestes setores, perdura até os dias atuais e, em virtude disso, é necessário avaliar os fatores que fazem com que a migração se perpetue, além de apresentar as condições sociais dos migrantes e as problemáticas que envolvem o trabalho na construção e no garimpo.
Desta forma, no que diz respeito à perpetuação, Silva (2015) apresenta a perspectiva de Massey et al. (2009) sobre as teorias do capital social e da causalidade cumulativa, que são teorias que apontam fatores que fazem com que a migração continue, que diferem dos fatores que causam a migração. No que diz respeito à perspectiva do capital social, dois pilares são essenciais para compreendê-la: redes migratórias e instituições de apoio à migração. Considerando a discussão aqui apresentada, o pilar das redes migratórias será destacado, visto que essas redes consistem em relações sociais entre pessoas que migram, ou que já migraram e retornaram ao seu país e estão presentes tanto no país de origem quanto no de destino. Em resumo, os amigos, familiares e conhecidos que formam uma comunidade tanto nos países de destino e origem auxiliam aquele que deseja migrar em sua trajetória, facilitando sua inserção no novo território (SIQUEIRA, 2009; MASSEY et al., 2009 apud. SILVA, 2015).
A presença destas redes é essencial para a transmissão de informações sobre o país de destino acerca de mercado de trabalho, moradia e demais oportunidades, além de oferecer mais segurança tanto para o migrante quanto para sua família e amigos que permanecem no país de origem. Isto acontece porque todos têm maior certeza de que aquele que migra terá amparo tanto em seu trajeto quanto em sua chegada. Desta forma, quando o migrante viaja, ele sai do local de onde estavam sua família e amigos (onde ele conheceu e formou vínculos com estas pessoas) para o lugar onde seus conhecidos agora vivem, para que, no início do seu processo migratório, possa utilizar os benefícios fornecidos pela rede migratória (MASSEY et al., 2009 apud. SILVA, 2015).
Assim, a disposição de benefícios e amparos pode diminuir o custo emocional e econômico da migração. Uma outra maneira de diminuir estes custos, que é uma característica das redes migratórias, é viajar em grupos e caravanas, normalmente formadas por pessoas que vem da mesma comunidade e possuem os mesmos vínculos nos países de destino. Segundo a Organização Internacional para a Migração (OIM), por meio das caravanas, que envolvem grande número de pessoas, os migrantes ficam menos sujeitos à ação de coiotes e traficantes. Portanto, Massey et al., (2009) aponta que estes migrantes são normalmente recepcionados pelos seus vínculos quando chegam ao seu destino.
Ainda segundo Massey et al., (2009), as redes não são necessariamente formadas pela migração, mas são fortalecidas por ela, a partir do compromisso existente entre emigrantes e ex-migrantes. Entretanto, o fortalecimento deste compromisso vai depender da experiência migratória dos indivíduos. A vivência do migrante no seu trajeto e no exterior vai determinar se os vínculos que antes o levaram até ali irão se manter, visto que sua experiência poderá fortalecer vínculos fracos ou enfraquecer vínculos fortes. Sendo assim, diante da perspectiva das redes migratórias, é necessário, primeiramente, compreender um pouco mais sobre o território da Guiana Francesa e sua fronteira com o Brasil, e também sobre o perfil dos migrantes brasileiros que a atravessam.
A Guiana Francesa é um departamento ultramarino francês, isto é, um território pertencente à França, que faz fronteira com o Brasil pelo estado do Amapá. A fronteira é principalmente fluvial; os países são divididos, em maior parte, pelo rio Oiapoque e pela floresta amazônica. Sendo assim, o município de Oiapoque, localizado no Amapá, se torna uma das principais rotas de fuga para a Guiana, assim como o rio.
A maioria dos emigrantes é proveniente do Amapá e de seus vizinhos, como o Amazonas, o Pará e o Maranhão, que são, segundo Souza Pinto et al., (2018), alguns dos estados mais pobres do país, além de serem marcados pela desigualdade social. Quanto ao perfil dos migrantes, a maioria é composta por trabalhadores que atuam em atividades pouco valorizadas, como pesca, carpintaria e construção, no caso dos homens, e atividades domésticas, no caso das mulheres. Desta forma, buscando por melhores condições de vida e pela obtenção de maiores ganhos financeiros, os trabalhadores atravessam a fronteira (SOUZA PINTO et al., 2018).
Cabe ressaltar que, por ser um território francês, a moeda que circula na Guiana é o euro e, em momentos de desvalorização do real, é comum que a migração cresça (FELLET et al., 2021). Além disso, muitos trabalhadores apontam que, por mais que os salários em euro não sejam exorbitantes, é possível viver com a quantia no território e enviar remessas para familiares que permaneceram no Brasil, que é o que muitos emigrantes brasileiros fazem. Em momentos como o atual, em que o real está desvalorizado, a migração em busca do salário em euros tende a aumentar.
Segundo o MRE ([201-]), aproximadamente 70 ou 80 mil brasileiros vivem na Guiana Francesa, sendo 30 mil com carte de sejour, uma espécie de visto ou passe, e 12 mil garimpeiros. Mesmo que muitos imigrantes tenham por objetivo se estabelecer na Guiana, acabam permanecendo num fluxo de ida e volta entre o Brasil e o território francês. Isto acontece porque, como mencionado anteriormente, muitos dos imigrantes têm família no Brasil, e circulam entre os territórios para visitar parentes e, algumas vezes, trazer dinheiro. Os brasileiros que possuem a carte de sejour podem circular com mais facilidade, além de poderem encontrar trabalhos mais formais (SOUZA PINTO et al., 2018).
A jornada pela carte de sejour e por melhores condições de vida muitas vezes perpassa o trabalho clandestino em garimpos ilegais e subempreiteiras, que são empresas de construção terceirizadas. As subempreiteiras oferecem milhares de vagas para imigrantes, entretanto, seu principal problema são as condições abusivas de trabalho. Jornadas exaustivas, baixos salários e falta de garantia de direitos são algumas das características da subempreitada. Além disso, os imigrantes podem acabar concordando com falsas promessas de salário para, no final, não serem nem mesmo pagos (SOUZA PINTO et al., 2018).
O trabalho em garimpos e em subempreiteiras é mais comum para os homens. No que diz respeito às mulheres, Souza Pinto et al., (2018) aponta a questão da prostituição. Segundo o autor, a prostituição de mulheres brasileiras na Guiana é perceptível, mas é difícil que seja assumida como uma atividade econômica pelos imigrantes. Ainda, Souza Pinto et al., (2018) versa sobre o casamento entre mulheres brasileiras e homens guianenses que, nas principais regiões de migração, se tornou uma espécie de objetivo não só para melhores condições de vida, mas também para obtenção de cidadania no território francês.
Neste sentido, é necessário apontar os riscos e consequências do processo de migração e do trabalho ilegal. No trajeto percorrido pelo Rio Oiapoque e também pela costa, há riscos de naufrágio. Ademais, a área do Amapá e da Guiana é uma área de floresta, o que faz com que os imigrantes tenham de atravessar parte da fronteira no meio da mata, além do risco de contágio com malária. Quanto às condições de trabalho, as jornadas exaustivas podem ocasionar em acidentes, que certamente não serão cobertos em virtude da irregularidade das condições em emprego. Alguma vezes, no trabalho clandestino, os trabalhadores correm risco de serem entregues às autoridades pelo próprio patrão, principalmente depois que este não cumpriu o que foi acordado com o funcionário (SOUZA PINTO et al., 2018).
Tendo em vista os casos apresentados, é possível analisar que a profunda desigualdade social presente no Brasil faz com que muitas pessoas busquem oportunidades fora do país, principalmente no território vizinho, que é a Guiana Francesa. Estas pessoas são atraídas pelas melhores condições de trabalho prometidas que, na verdade, quase nunca são cumpridas, e os brasileiros acabam sendo submetidos a condições extremamente perigosas e precárias, tanto no trajeto como no destino final, ou seja, no seu trabalho. Desta forma, percebe-se uma junção de fatores que ocasionam a migração, como a baixa renda e a baixa escolaridade, e diversas consequências advindas disto, como a vulnerabilidade e insegurança da população brasileira na Guiana. Portanto, é perceptível que este cenário urge pela atuação do governo brasileiro e por mudanças estruturais na região Norte do país como forma de alterar este contexto e fazer com que diversas pessoas se submetam à situações de risco.
Por: Sofia França Prieto
REFERÊNCIAS
FELLET, João et al.Os relatos de brasileiros que sobreviveram em ilha e no alto-mar após naufrágio na Guiana Francesa. BBC News, [s. l], 17 set. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58592108 Acesso em: 21 set. 2021
FIGUEIREDO, Fabiana. Homem é preso no AP por estupro de adolescente e por prometer trabalho ilegal na Guiana Francesa. G1 AP, Macapá, 20 set. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2021/09/20/homem-e-preso-no-ap-por-estupro-de-adolescente-e-por-prometer-trabalho-ilegal-na-guiana-francesa.ghtml Acesso em: 21 set. 2021
IBGE. Brasil: Amapá, [s. l.], [201-]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ap/panorama Acesso em: 21 set. 2021
MASSEY, Douglas; et. al. Worlds in motion: understanding international migration at the end of the Millennium. IUSSP, New York: Oxfordpress. 2009.
MRE. Portal Consular: Guiana Francesa. [s. l.], [201-]. Disponível em: http://antigoportalconsular.itamaraty.gov.br/seu-destino/guiana-francesa#comunidade-brasileira-e-principais-destinos Acesso em: 21 set. 2021
OIM. Caravanas Migrantes. [s. l.], 2021. Disponível em: https://rosanjose.iom.int/site/es/caravanas-migrantes Acesso em: 23 nov. 2021
SILVA, Romerito Valeriano da. Por que, apesar da crise, alguns voltam e outros ficam? Uma análise comparativa da imigração de retorno de Portugal para o Brasil. 2015. Tese (Doutorado em Geografia) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.
SIQUEIRA, Sueli. Sonhos, sucesso e frustrações na emigração de retorno: Brasil/ Estados Unidos. Belo Horizonte: Ed. Argumentum, 2009
SOUZA PINTO, Marcelo de Jesus de et al. A migração brasileira para a Guiana Francesa perspectivas atuais. Revista del CESLA, [s. l.], n. 22, p. 153-178, 2018. Disponível em: https://www.redalyc.org/journal/2433/243360086008/html/ Acesso em: 21 set. 2021.
TOSTES, José Alberto et al. Amapá (Brasil) e Guiana Francesa (França): definindo o corredor transfronteiriço. PRACS: Revista Eletrônica de Humanidades do Curso de Ciências Sociais da UNIFAP, Macapá, v. 9, n. 3, p. 73-97, dez. 2016