Texto Conjuntural África Austral #24

Uma breve análise sobre as implicações do Apartheid na situação socioeconômica da África do Sul

Por Maria Clara Romano Pyramo Seabra

RESUMO

A presente análise conjuntural possui o objetivo de analisar brevemente o período do apartheid, considerando as medidas socioeconômicas instituídas e como elas refletem na sociedade sul-africana na contemporaneidade. Dessa forma, contextualiza-se que durante o regime foram promulgadas leis e normativas que reforçaram a segregação racial na África do Sul, as quais interferiram e deixaram profundas sequelas para a população negra do país, a qual representava a maioria. Por fim, cumprir-se-á o objetivo, por meio do método dedutivo hipotético, com base em pesquisas bibliográficas e análise documental. 

Palavras-chaves:  Apartheid; medidas socioeconômicas;  África do Sul.

INTRODUÇÃO 

Em primeiro lugar, ressalta-se que esta breve análise do apartheid realiza um recorte temático e temporal acerca do período e o pós-apartheid, considerando as medidas socioeconômicas instituídas durante a segregação. Dessa forma, o objetivo não é pautado na análise de todos os aspectos históricos e diligências que entraram em vigor: irá-se discorrer sobre os impactos das medidas econômicas e sociais sobre a população negra, tendo-as como fatores que corroboraram para o quadro de desigualdade na África do Sul na atualidade. 

Dito isso, faz-se importante para o desenvolvimento deste trabalho ressaltar uma contextualização histórica da África do Sul, que passou por grandes transformações ao longo das décadas. A África do Sul durante a metade do século XVII até o XX foi colonizada pelos europeus de origens britânicas e holandesas e a economia do país foi pautada na escravidão, servidão e na exploração por mais de trezentos anos. Nesse sentido, os colonizadores elaboraram estruturas políticas e econômicas que resultaram na sua superioridade diante dos indivíduos nativos, de forma que as esferas políticas, econômicas e militares foram majoritariamente dominadas pela minoria branca, tendo os colonizadores limitado o usufruto de terra aos nativos, os colocando em uma posição de somente serem vistos como força de trabalho (PEREIRA, 2011).

No século XIX, os britânicos substituíram o sistema econômico mercantil que era utilizado pelos holandeses por um sistema capitalista, o qual foi impulsionado a partir do descobrimento de ouro em 1866 e de diamantes em 1867, dessa forma, o “colonialismo britânico passou a ser mais agressivo e abrangente” (PEREIRA, 2011 p. 119). No que tange a dominação britânica, essa foi a responsável pela elaboração de um sistema de opressão institucionalizada em disparate da maioria negra. Nessa perspectiva, o país africano foi titulado historicamente no comércio internacional na posição de exportador de produtos primários, dando enfoque à mão de obra barata e não especializada da maioria de cor (PEREIRA, 2011). 

O APARTHEIDE 

A ideologia da superioridade branca e da discriminação racial relaciona-se com o sistema de exploração agrário mencionado anteriormente. Os critérios repousavam no fato da agricultura sul-africana ser ultrapassada e pouco lucrativa quando comparada à cultura extensiva utilizada nas colônias inglesas do Cabo e de Natal. Assim, o Apartheid (1948-1994) foi um modelo de “desenvolvimento separado de cada raça, na área geográfica que lhe é determinada” (CORNEVIN, 1979, p. 25) na República da África do Sul (RAS) (CORNEVIN, 1979, p. 25 apud LACERDA et tal p. 179). É importante destacar que os ingleses partiam de uma ótica em que a escravidão era obsoleta e um impedimento à ampliação de um mercado consumidor. No entanto, ele colocavam limites quase impermeáveis no que diz respeito a ascensão social e econômica dos negros (PEREIRA, 2011). 

Esse sistema formalizado pelo Novo Partido Nacional (NNP), representado pelos africânderes, dividiu o Estado em onze repúblicas independentes com o discurso de que os negros precisavam ser civilizados, uma vez que cada um era considerado um “empregado domado, feliz e bastante preguiçoso” (CALVOCORESSI, 2011 apud LACERDA et tal, 2016, p. 179). 

Para mais, acerca de medidas instituídas durante o regime segregacionista, cita-se a aprovação da Constituição da União Sul-Africana (federação das províncias do Cabo, Natal, Orange e Transvaal), na qual a população negra teve seu direito ao voto e à propriedade de terras suspensas. Além disso, em 1910, após a independência da Coroa Britânica, diversas leis segregacionistas foram sancionadas e entraram em vigor, como a Native Labour Act de 1913, que dividiu em parcelas de dois a África do Sul, sendo 7% das terras do país, destinadas aos negros, os quais, ressalta-se, eram 75% da população, e 93% das terras, mais produtivas, foram destinadas aos brancos, que representavam 10% da população. Ademais, o Native Urban Act de 1923 foi responsável por restringir possibilidade dos negros se alojarem em cidades tidas como reduto da população branca e o Native Affairs Act regulava a exploração do trabalho de negros. No entanto, destaca-se que apesar da existência dessas medidas, somente a partir de 1948, o Apartheid foi formalmente instituído (PEREIRA, 2011). 

O governo sul-africano organizou a população em categorias nacionais por meio da Lei de Registro da População de 1950, de modo que famílias poderiam ser divididas e seus componentes transferidos ao serem classificados em categorias de cor distintas. Para mais, o Departamento de Assuntos Nativos, a partir de exigências do Apartheid, por meio da Política de Preferência do Trabalho Urbano, passou a restringir a empregabilidade de pessoas negras nas cidades até que todos os brancos fossem inseridos no mercado de trabalho. Outro instrumento foi a Lei de Passes e Documentos, de 1952, que respaldou-se na obrigatoriedade dos indivíduos de cor transportarem o chamado “livro de referência”, que continha dados acerca de seus respectivos empregos e de residências consigo (PEREIRA, 2011). 

É imprescindível apontar que durante o regime do Apartheid as escolas “para” negros foram desmanteladas, somente prestavam um suporte mínimo aos alunos destaque, um pequeno grupo seleto. Além disso, o sistema escolar foi utilizado como meio semeador dos valores e crenças do Apartheid, servindo somente à manutenção do funcionamento da economia branca. Assim, o regime foi condenado pela Nações Unidas (ONU) em 1971, sendo acusado de “dividir os africanos, confrontando uma tribo com outra, enfraquecer a frente africana na sua luta pelos justos e inalienáveis direitos e consolidar e perpetuar o domínio por parte da minoria branca” (PEREIRA, 1986, p. 36 apud PEREIRA, 2011). 

A situação econômica da África do Sul foi profundamente afetada pelas sanções financeiras impostas à nível internacional, que vinham por alegações de infringências aos Direitos Humanos, colocando o país em um quadro de isolamento econômico. Ademais, ressalta-se que no final da década de 1980, a África Sul estava inserida em um longo quadro de instabilidades internas, como o envolvimento em uma guerra com Angola e o boicote global ao país, que tinham como resultado intensos constrangimentos econômicos internos, refletindo significativamente sobre a política regional. A balança de pagamentos também foi afetada, levando as esferas de consumo público, privado e investimentos a uma rápida desaceleração. 

Durante os anos de segregação formaram-se grupos que lutaram pelo fim do apartheid, dentre eles o Congresso Nacional Africano (CNA), criado em 1912, a primeira organização política dos negros sul-africanos. O CNA tinha uma estratégia de resistência não violenta, no entanto, o movimento chegou a ser considerado ilegal pelo governo (PEREIRA, 2011).  É de extrema relevância salientar a figura de Nelson Mandela, nascido em 18 de julho de 1918, símbolo de integridade, humanidade e luta contra a segregação racial, também responsável por liderar a África do Sul durante a transição democrática, além de ter sido presidente do CNA (SILVA 2016). 

FIM DA SEGREGAÇÃO

O fim do Apartheid se deu na década de 1990, período no qual o mundo como um todo passava por uma série de transformações relacionadas à Guerra Fria e ao início da globalização. Assim, diversos fatores internos e externos estão relacionados ao fim do regime, como o apaziguamento de conflitos regionais, a libertação de Nelson Mandela — que foi preso e condenado por desobediência civil, e foi a figura que viria comandar a transição democrática sul africana —, além do  fim do banimento dos movimentos de libertação, que foram fatores que levaram a África do Sul à sua reinserção na comunidade internacional (LACERDA et tal, 2016; PEREIRA, 2011). No entanto, a reintegração só iria ocorrer formalmente quando o antigo parlamento do apartheid retirasse as sanções impostas durante a segregação. Além disso, a ascensão de Nelson Mandela ao poder foi um elemento de extrema importância na reorganização interna (PEREIRA, 2011). 

Existia um certo otimismo nos primeiros anos de governo após a transição para o regime democrático, no entanto, esse período passou por diversas instabilidades. Mandela teve como sucessor Thabo Mbeki, que em 2007 foi rejeitado para a presidência do CNA, contribuindo para uma instabilidade política interna e externa acerca do destino da democracia e da política econômica. Nos anos finais de seu governo, havia fortes insatisfações populares, que se repousavam em acusações de Mbeki ser um líder centralizador que havia governado somente para a elite, deixando o país em ondas de violência e pobreza (PEREIRA,2011). 

NA CONTEMPORANEIDADE

Após 25 anos do fim do Apartheid, a África do Sul se encontra em um quadro de desapontamento com os indicadores de desemprego, pobreza, desigualdade e corrupção, além das severas críticas ao racismo institucionalizado. Segundo dados divulgados pelo Instituto Sul-Africano de Relações Raciais (IRR), atualmente, cerca de 20% das famílias negras vivem em extrema pobreza e 2,9% de famílias brancas estão na mesma situação (BRAUN, 2019).

Segundo relatório do Banco Mundial, a África do Sul, o maior país da UAAA (União Aduaneira da África Austral), é o país mais desigual do globo e os indicadores sobre raça são um dos fatores determinantes, apresentando uma sociedade onde 10% da população detém mais de 80% da riqueza. Esse relatório contém uma lista de 164 países mais desiguais e é um documento intitulado “Desigualdades na África Austral”. Ressalta-se que documentos elaborados anteriormente também tinham o país sul africano no primeiro lugar da categoria. Ainda de acordo com o Banco Mundial, o fator da raça permanece como forte indicador para a desigualdade na África do Sul, considerando a alta na educação e no mercado de trabalho. “O legado do colonialismo e do apartheid enraizados na segregação racial e espacial continua reforçando as desigualdades”, apontou o estudo (ÁFRICA…, 2022).

CONCLUSÃO

Este texto conjuntural procurou analisar em síntese o contexto histórico do Apartheid, considerando as medidas socioeconômicas que foram instituídas e como elas refletem na sociedade sul-africana na contemporaneidade. A África do Sul emergiu de uma sagração racial com bases no colonialismo e prejudicou profundamente a população negra do país, que representava a maioria. As sequelas do apartheid se reproduzem até nos dias atuais, considerando que durante os anos de regime as esferas de acesso a saúde, educação, diretos políticos, trabalho digno, entre muitos outros, foram negados aos indivíduos de cor.  

Portanto, pode-se concluir que as medidas implementadas durante a segregação racial do apartheid e as medidas de restauração insuficientes corroboram para o quadro em que a África do Sul se encontra na atualidade, representado por um dos países mais desiguais do mundo na esfera socioeconômica. 

REFERÊNCIAS

BRAUN, Julia. Apartheid pós-apartheid. Após 25 anos do fim do regime racista na África do Sul, o país ainda luta para se consolidar economicamente e lutar contra a desigualdade. Veja, 2019, Mundo. Disponível em: https://veja.abril.com.br/especiais/apartheid-pos-apartheid/. Acesso em: 5 jun. 2023

CONSTANTINO, João Paulo Davi; SILVA, Robson Dias da; FLEXOR, Georges. O desenvolvimento da África do Sul pós-apartheid à luz da perspectiva institucionalista: uma revisão crítica. Revista Brasileira de Estudos Africanos, Porto Alegre, v. 6, n. 11, p. 61-86, jan./jun. 2021. Disponível em : file:///C:/Users/1316574/Downloads/109604-Texto%20do%20artigo-485712-1-10-20210825.pdf. Acesso em: 5 jun. 2023.

LACERDA, T. S.; CARVALHO, R. F. G.; TEIXEIRA, R. C. O Apartheid na Política Internacional entre 1948 e 1994. Conjuntura internacional, v. 12, n. 3, p. 178-184, 22 jul. 2016.

PEREIRA, Analúcia Danilevicz. A (Longa) História da Desigualdade na África do Sul. In: O Mal-Estar na Cultura e na Sociedade, v. 2, n. 2, p. 118-148. 2011.

ÁFRICA do Sul é o país mais desigual do mundo, segundo Banco Mundial”. O Tempo, Belo Horizonte, 26 jan. 2021. Disponível em: https://www.otempo.com.br/mundo/africa-do-sul-e-o-pais-mais-desigual-do-mundo-segundo-banco-mundial-1.2629408. Acesso em: 5 jun. 2023.

SILVA, Cristiane. “Na encruzilhada entre história e literatura: biografias de Nelson Mandela”. In: Vozes, Pretérito & Devir, Ano III, Vol. VI, Nº I, p. 126. 2016.

WIKIVOYAGE. South Africa, [s.d]. Disponível em: https://pt.wikivoyage.org/wiki/%C3%81frica_do_Sul. Acesso em: 5 jun. 2023.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.