Texto Conjuntural África Austral #26

Sanções contra Zimbábue: um problema histórico que impacta o desenvolvimento do país até os dias atuais 

Por Bruna Monteiro

Introdução

Em outubro de 2023, o presidente da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), João Lourenço, assinou uma declaração apelando ao levantamento de todas as sanções impostas a República do Zimbábue. A SADC argumentou que as sanções impostas ao país, há mais de vinte anos, têm gerado muitos impactos negativos, dificultando o potencial de crescimento de vários setores do Zimbábue (COMUNIDADE DE DESENVOLVIMENTO DA ÁFRICA AUSTRAL, 2023). Tendo isso em vista, o presente texto irá abordar um breve histórico das sanções impostas ao Zimbábue, desde o contexto da crise desencadeada em 1965 (na Rodésia do Sul, atual Zimbábue) até os dias atuais. Além disso, buscará analisar como a construção social de ameaça e identidade impactou na imposição de sanções e, consequentemente, no desenvolvimento do país.

Contexto por trás da aplicação das primeiras sanções pela ONU: a crise na Rodésia do Sul 

A fim de compreender melhor a imposição das sanções a República do Zimbábue, é válido analisar um breve contexto histórico. Após a Segunda Guerra Mundial, houve uma intensificação dos movimentos de independência nas colônias britânicas, como na Rodésia do Norte (atual Zâmbia), na Nissalândia (atual Malawi) e na Rodésia do Sul (atual Zimbábue). Todavia, as negociações em relação a Rodésia do Sul falharam devido à recusa do governo de minoria branca da colônia em atender às demandas do Reino Unido que exigiam a concessão de garantias políticas à maioria negra (RANGEL; PEREIRA, 2022). A negação em aceitar essa política foi rapidamente condenada pela comunidade internacional, principalmente pela Grã-Bretanha, resultando na aplicação das primeiras sanções do Conselho de Segurança em 1965. 

Entre as medidas, destaca-se a solicitação para que os países membros das Nações Unidas cessassem o fornecimento de armamentos ao regime e cortassem relações diplomáticas e comerciais, especialmente no que diz respeito ao fornecimento de petróleo e seus derivados (BAUMBACH, 2014). Apesar de todos os esforços, o regime resistia, o que levou a adoção da Resolução de 232 pela ONU em 1966. Além de estabelecer um grande embargo, a resolução declarou que a situação na Rodésia do Sul representava uma ameaça à paz e à segurança (UN Security Council, 1966). Isso posto, apesar de não ser reconhecido como um Estado, o Zimbábue foi o primeiro país a sofrer um embargo econômico da ONU em 1966 (RANGEL; PEREIRA, 2022). 

Panorama das sanções contemporâneas impostas ao Zimbábue

Em 2002, os Estados Unidos e a União Europeia impuseram sanções econômicas ao presidente do Zimbábue na época, Robert Mugabe, e à sua elite política, devido à ocorrência de fraudes eleitorais e graves violações dos direitos humanos (RANGEL; PEREIRA, 2022). Essas medidas restritivas se mantêm há mais de duas décadas, incluindo restrições no apoio financeiro, banimento de viagens aos EUA e de trocas comerciais de bens de defesa e serviços, além da suspensão de todo apoio governamental não humanitário (VOA, 2016). 

Em 2008, o embaixador dos EUA na ONU, Zalmay Khalilzad, apresentou uma proposta de resolução que visava a imposição de mais sanções ao presidente reeleito, Robert Mugabe, e aos membros do seu governo, devido à intensa violência que ocorreu após as eleições. Esses embargos incluíam o congelamento de contas bancárias, a proibição de vendas de armas e de viajar (RANGEL; PEREIRA, 2022). 

Nesse contexto, a relatora especial da ONU, Alena Douhan, escreveu um relatório sobre o impacto negativo de medidas coercitivas unilaterais sobre os direitos humanos durante sua visita ao Zimbabwe (A/HTC/51/33/Add.2). O relatório apresenta outras várias sanções contemporâneas impostas ao Zimbábue que têm um impacto muito negativo no país. Por exemplo, a Suíça proibiu a venda de armas e materiais utilizados para repressão interna e impôs o congelamento de bens. A Austrália também impôs um embargo de armas e congelamento de ativos, além de proibir viagens. Já o Canadá acrescentou o seu próprio programa de sanções, o qual também proibiu viagens, determinou o congelamento de bens e emitiu um regulamento sobre armas (UNITED NATIONS, 2022).

A construção da identidade do Zimbábue: uma ameaça para o sistema internacional  

A imposição das sanções ao Zimbábue desde o contexto da crise na Rodésia do Sul reflete a construção da identidade desse país como uma ameaça dentro do sistema internacional. Segundo Wendt (2014), a identidade de um Estado é construída através de imagens e ideais. Assim sendo, constituem um mosaico identitário, isto é, um conjunto de características subjetivas, intersubjetivas e sistêmicas do Estado. Dentre os tipos de identidade, a identidade coletiva é uma combinação da identidade pessoal, que reflete a autopercepção do Estado a partir da sua base material, memória e consciência, juntamente com a identidade do tipo, que é baseada no compartilhamento de regras e atributos entre os Estados. Portanto, pode-se afirmar que a identidade coletiva é moldada pela forma como os Estados se veem a partir dos outros.

Tendo isso em vista, é possível afirmar que a visão das nações ocidentais, como os EUA e os países da União Europeia, sobre o Zimbábue como uma ameaça para o sistema internacional, devido à violação dos princípios democráticos e dos direitos humanos, desempenhou um papel significativo na construção de sua identidade. Essa construção teve implicações muito significativas em suas relações internacionais, uma vez que o país passou a ser associado a uma ameaça à democracia, à paz e à segurança. 

As consequências da percepção de Zimbábue como uma ameaça internacional 

Embora as sanções tenham sido implementadas com o objetivo de pressionar o governo do Zimbábue a adotar mudanças políticas a fim de conter a ameaça, quem mais sofre com as consequências dessas medidas restritivas é a população. Aproximadamente metade da população vive em situação de insegurança alimentar devido às dificuldades de acesso a produtos de outros países causadas pelas restrições comerciais (RANGEL; PEREIRA, 2022).

A Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) apresentou uma declaração pedindo a suspensão de todas as formas de sanções impostas ao Zimbábue. A SADC afirmou que essas medidas prejudicam a imagem do país e restringem seu potencial de crescimento financeiro e econômico. Além disso, destaca que esse impedimento ao crescimento socioeconômico representa uma atrocidade na contemporaneidade. Assim sendo, a SADC ressalta o desejo que a comunidade internacional esteja ciente do conteúdo presente no Relatório da relatora especial da ONU “Alena Douhan, sobre o impacto negativo de medidas coercitivas unilaterais sobre os direitos humanos, que ela escreveu durante sua visita ao Zimbabwe” (COMUNIDADE DE DESENVOLVIMENTO DA ÁFRICA AUSTRAL, 2023). 

Alena Douhan expressou em seu relatório preocupações em relação às sanções aplicadas ao Zimbabué pelos EUA. A relatora argumentou que essas sanções não estão em conformidade com as disposições do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), que incluem requisitos como a existência de uma ameaça à vida da nação, a limitação das medidas à necessidade da situação, uma duração limitada e a ausência de discriminação. O relatório também aborda que as sanções, que têm como alvo indivíduos e empresas específicas, violam princípios de direitos humanos, como o direito a um julgamento justo. 

Além disso, a inclusão de familiares de pessoas sancionadas é considerada uma forma de punição coletiva, o que vai contra as normas internacionais. Nesse contexto, o relatório afirmou que as restrições econômicas afetam a economia do país e prejudicam a capacidade do governo do Zimbabué de manter infraestruturas críticas, alcançar metas de desenvolvimento sustentável e proteger os direitos humanos (UNITED NATIONS, 2022).

Conclusão

A história das sanções impostas ao Zimbábue, desde os eventos da crise da Rodésia do Sul até os dias atuais, ilustra a complexidade das relações internacionais e os diversos efeitos das sanções sobre a população. A construção da identidade do país como uma ameaça desencadeou várias consequências, sendo a imposição de sanções uma delas. Ao longo do tempo, o que inicialmente eram apenas medidas restritivas com o objetivo de pressionar o governo a promover mudanças políticas, acabaram impactando a população de forma negativa. Diante desse cenário, organizações regionais, como a SADC, e relatores especiais da ONU têm se pronunciado a favor da suspensão de todas as sanções impostas ao Zimbábue, destacando o impacto prejudicial delas em vários setores do país e questionando a conformidade com o Direito Internacional. 

De acordo com a Teoria Construtivista de Wendt, a identidade dos atores internacionais pode ser modificada ao longo do tempo. Dessa forma, para promover uma mudança significativa na percepção e no tratamento do Zimbábue pela comunidade internacional, é necessário um esforço conjunto para reconstruir a identidade do país como uma nação que busca estabilidade, reconciliação e desenvolvimento. Conforme sugerido pela SADC na declaração, isso envolveria não apenas a suspensão das sanções, mas também a promoção de uma nova narrativa, história e direção para a República de Zimbábue. O levantamento das sanções representa o primeiro passo para a criação de condições que possibilitem o crescimento nacional, o desenvolvimento de um governo melhor, a garantia dos direitos humanos e a coesão social.  

REFERÊNCIAS

BAUMBACH, Marcelo. Sanções do Conselho de Segurança: direito internacional e prática brasileira. Brasília: FUNAG, 2014. Disponível em: https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/1-167-sancoes_do_conselho_de_seguranca_direito_internacional_e_pratica_brasileira. Acesso em: 10 nov. 2023.

COMUNIDADE DE DESENVOLVIMENTO DA ÁFRICA AUSTRAL. Declaração de Sua Excelência João Manuel Gonçalves Lourenço, Presidente em Exercício da SADC e Presidente da República de Angola, apelando para que sejam levantadas todas as formas de sanções impostas à República do Zimbabwe. SADC: Luanda, Angola. 25 out. 2023. Disponível em: https://www.sadc.int/sites/default/files/2023-10/Declarac%CC%A7a%CC%83o%20sobre%20Levantamento%20de%20Sanc%CC%A7o%CC%83es%20contra%20Zimbabwe.pdf. Acesso em: 10 nov. 2023.

UNITED NATIONS. General Assembly. Human Rights Council. Report of the Special Rapporteur on the negative impact of unilateral coercive measures on the enjoyment of human rights, Alena Douhan, on her visit to Zimbabwe. 12 ago. 2022. Disponível em: https://www.ohchr.org/en/documents/country-reports/ahrc5133add2-visit-zimbabwe-report-special-rapporteur-negative-impact. Acesso em: 11 nov. 2023.

UN SECURITY COUNCIL. Security Council resolution 232 (1966) [Southern Rhodesia], 16 December 1966, S/RES/232 (1966). Available at: https://www.refworld.org/docid/3b00f23414.html. Accessed: 11 nov. 2023

RANGEL, Fabricio; PEREIRA, Eduardo. O Conselho de Segurança impõe um embargo mandatório contra Zimbábue – 16 de dezembro de 1966. Relações Exteriores , [s. l.], 25 jul. 2022. Disponível em: https://relacoesexteriores.com.br/csnu-embargo-zimbabue/. Acesso em: 10 nov. 2023.

VOA (EUA). Mugabe pede fim das sanções económicas impostas ao Zimbabwe. VOA, [s. l.], 21 set. 2016. Disponível em: https://www.voaportugues.com/a/mugabe-pede-fim-sancoes-economicas-impostas-zimbabwe/3519310.html. Acesso em: 10 nov. 2023.

WENDT, Alexander. Teoria Social da Política Internacional. Rio de Janeiro: Editora Apicuri, 2014. Cap. 5.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.