Transição energética na África do Sul: desafios e perspectivas até 2030
Por Nicole Caires Bolivar
Introdução
A atual matriz energética da África do Sul baseia-se no uso de combustíveis fósseis e tem o carvão como principal fonte de geração de energia, respondendo por mais de 70% da produção primária (IEA, 2020). A maior parte dessa energia gerada pelo carvão é utilizada pelo setor industrial, seguida pelo consumo residencial. Devido a sua extrema dependência do carvão, o país possui altas taxas de emissão de dióxido de carbono (CO₂) – um composto químico que influencia significativamente na alteração climática do planeta -, além de integrar o rol dos 20 países que mais emitem gases de efeito estufa do mundo (World Bank, 2023).
Figura 1 – Fornecimento total de energia por fonte, África do Sul, 1990-2020
Fonte: Agência Internacional de Energia (2020)
Figura 2 – Consumo final de carvão por setor, África do Sul, 1990-2020
Fonte: Agência Internacional de Energia (2020)
A empresa estatal Eskom é a maior produtora de eletricidade da África do Sul, sendo responsável pela produção, transmissão e distribuição dessa energia. A estatal detém cerca de 90% de toda eletricidade gerada no país e cerca de 40% da energia de todo o continente africano (Moffett, 2020). Desde 2007, a empresa enfrenta graves crises financeiras e de gestão, marcadas pela escassez de fornecimento de carvão, blecautes recorrentes, escândalos de corrupção, contração de dívidas com o Banco Mundial, problemas de operação em usinas e disparidade entre oferta e demanda por energia (Moffett, 2020).
Segundo o Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Gabrielli, 2020), além dos problemas gerados ao cofre público, soma-se a precariedade da rede de distribuição de energia e a dificuldade de acesso em determinadas regiões. Ainda, o instituto aponta a influência de desigualdades sociais enraizadas na sociedade sul africana, que em 2020 contava com uma taxa de desemprego de aproximadamente 35% (com maior incidência entre a população negra).
Dada essa conjuntura energética, econômica, climática e social da África do Sul, o governo reconheceu a necessidade de fomentar um desenvolvimento econômico sustentável por meio da elaboração de um projeto de transição energética, baseado nos acordos climáticos firmados internacionalmente e nos fóruns internacionais em consonância com a realidade enfrentada pelo país.
Os Planos de Recursos Integrados
No ano de 2010, com o objetivo de “fornecer uma indicação da demanda de eletricidade do país, como essa demanda seria suprida e quanto custaria” (Department of…, 2010), o governo da África do Sul elaborou o Plano de Recursos Integrados 2010 (em inglês, representado pela sigla IRP). O IRP 2010 caracteriza um primeiro passo em direção a uma transição energética na África do Sul, alinhada com o desenvolvimento sustentável.
O IRP é um plano de desenvolvimento de infraestrutura de eletricidade baseado no equilíbrio entre a oferta e a demanda de eletricidade de menor custo, levando em conta a segurança do fornecimento e o meio ambiente (minimizar as emissões negativas e o uso de água) (Department of…, 2019, p. 10, tradução nossa).
Em seu escopo, o IRP 2010-2030 demonstra qual a melhor alternativa de geração de energia que seja capaz de acompanhar o aumento da demanda, além de adotar os princípios de redução das emissões de gases do efeito estufa, redução do consumo de água e diversificação das fontes de geração de eletricidade em concordância com políticas de desenvolvimento regional (Department of…, 2010).
No mesmo ano da elaboração do IRP 2010, o então presidente da África do Sul, Jacob Zuma, nomeou uma Comissão Nacional de Planejamento composta por membros externos ao governo, especializados em áreas temáticas chave. Em 2011, a Comissão elaborou o Plano de Desenvolvimento Nacional 2030 (representado pela sigla NDP), que tem como objetivo constituinte a eliminação da pobreza e a redução de desigualdades na África do Sul até o ano de 2030 (National Planning Commission, 2011). O Plano de Desenvolvimento Nacional 2030 destaca como um de seus elementos centrais a importância de implementação de um setor energético eficiente, diretamente relacionado à necessidade de assegurar um meio ambiente sustentável.
“O NDP prevê que, até 2030, a África do Sul terá um setor de energia que forneça serviços de energia confiáveis e eficientes a preços competitivos; que seja socialmente equitativo por meio da expansão do acesso à energia a tarifas acessíveis; e que seja ambientalmente sustentável por meio da redução das emissões e da poluição” (Department of…, 2019, p. 8, tradução nossa).
Dando continuidade ao Plano de 2010, o Departamento de Recursos Minerais e Energia sul africano elaborou um segundo documento para implementação, denominado IRP 2019. Mantendo os objetivos do primeiro plano, o IRP 2019 aborda as perspectivas para o desenvolvimento de uma matriz energética mais diversificada, que mantém o carvão em posição de destaque, associando-o a uma busca por tecnologias mais eficientes.
O projeto visa a expansão do programa de energia nuclear no futuro e reforça a importância de se apostar em energias renováveis para diversificar a matriz, destacando o grande potencial eólico e solar. A energia hidráulica também encontra na África do Sul um fértil terreno para sua expansão e desenvolvimento, visto que o país possui grande capacidade para produzi-la. O Plano de Recursos Integrados de 2019 também destaca a capacidade de produção energética por meio da biomassa e do biogás, que seria voltada principalmente para o fornecimento do setor industrial. Ainda, o documento expressa o potencial de criação de novas indústrias e, consequentemente, de geração de empregos com o investimento na diversificação da produção de energia (Department of…., 2019).
Figura 3 – Resultados da análise de cenários para o período que termina em 2030
Fonte: Integrated Resource Plan (IRP2019)
A figura 3 demonstra os resultados esperados para 2030 do processo de diversificação energética. De acordo com a análise de cenário, é previsto uma redução nas emissões de CO₂ e no uso de água (em litros/ano), além de uma participação na nova matriz de 4% de energia nuclear, 61% de carvão (redução prevista na dependência de carvão), 8% de energia hidrelétrica (5% proveniente de importação e 3% de produção interna), 1% de energia proveniente de motor a gás de ciclo fechado, 7% de energia solar, 14% de energia eólica e 5% de outras fontes. Comparativamente, em 2020, a porcentagem de participação de cada uma dessas fontes representava, respectivamente, 5%, 81%, 4%, 1%, 3% e 5%. Ainda, espera-se um aumento energético de 49 terawatt/hora.
Impactos na Região da África Austral e no Sistema Internacional
A transição energética sul africana impacta diretamente as relações com outros países do sistema internacional. O ambicioso projeto de diversificação da matriz energética inclui propostas de cooperação e integração regional, principalmente entre os países membros da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral, demonstrando sua importância econômica para a região. Com relação a utilização do gás natural, o objetivo a curto prazo é importá-lo, mas o planejamento indica a exploração conjunta de reservas locais, estabelecendo parcerias e acordos de cooperação com os países vizinhos, como Moçambique (Department of…., 2019).
No campo da geração de energia hídrica, o IRP 2019 salienta a importância do estabelecimento de parcerias regionais e aponta o “Tratado para o desenvolvimento do Projeto Grand Inga na República Democrática do Congo (RDC), com parte da energia destinada à transmissão para a África do Sul através da RDC, Zâmbia, Zimbábue e Botsuana” (Department of…., 2019). O papel da Eskom na promoção da cooperação e integração da África Austral também é levado em consideração pelo documento.
A África do Sul, por meio da Eskom, participa e comercializa eletricidade por meio do South African Power Pool (SAPP). Embora o continente africano seja rico em recursos de energia primária, o comércio de energia entre os países africanos é limitado. A África do Sul, por meio da Eskom, importa eletricidade da represa de Cahora Bassa, em Moçambique. A África do Sul, por meio da Eskom, também exporta eletricidade para Botsuana, Essuatíni, Lesoto, Moçambique, Namíbia, Zâmbia e Zimbábue. A infraestrutura de transmissão é necessária para desbloquear ainda mais o comércio regional de energia e permitir o desenvolvimento de projetos de geração (Department of…., 2019, p. 22, tradução nossa).
Não obstante, assumindo os compromissos assumidos em fóruns internacionais e indo ao encontro do Acordo de Paris para Mudanças Climáticas (ratificado pela África do Sul), o novo planejamento sul africano visa reduzir a emissão de gases poluentes, visto que o setor energético é responsável por cerca de 80% das emissões totais de gases de efeito estufa do país (Department of…., 2019). Dessa forma, a principal maneira de reduzir esse índice é por meio de investimentos em uma transição energética, com foco em fontes renováveis que sejam capazes de oferecer maior eficiência.
Desafios à Implementação da Transição Energética
Realizar uma transição energética em uma África do Sul marcada por intensas desigualdades sociais e por uma base de consumo de energia extremamente dependente do carvão é um projeto ambicioso e repleto de desafios.
Segundo o ministro dos Recursos Minerais e Energia, Gwede Mantashe, o governo da África do Sul tem como meta uma redução de 15% na produção de energia de carvão e um aumento de 18% nas energias renováveis até 2030 (AFDB, 2022). Nesse contexto, é evidente a oposição de setores industriais que se beneficiam da utilização do carvão, uma vez que cerca de 40% da energia produzida é utilizada por 30 grandes empresas mineradoras e metalúrgicas (Gabrielli, 2020).
Outro fator a ser levado em consideração é a necessidade de um robusto investimento capaz de efetivamente levar ao alcance das metas estabelecidas para a diversificação da matriz energética sul africana. Em 2022, o Presidente do Grupo Banco Africano de Desenvolvimento, Dr. Akinwumi Adesina, garantiu ao ministro dos Recursos Minerais e Energia da África do Sul, Gwede Mantashe, que “o Banco estava em processo de criação de um Mecanismo Africano de Transição Energética para ajudar a África do Sul a assegurar um financiamento adequado para a sua transição energética” (AFDB, 2022). Ainda, o Conselho do Banco Mundial aprovou um empréstimo de US$1 bilhão de dólares para que a África do Sul consiga atravessar a grave crise energética e realizar a transição de baixo carbono, reestruturando seu setor energético (Wyk, 2023).
Conclusão
A redução da dependência energética da África do Sul de combustíveis fósseis é fundamental para garantir o desenvolvimento sustentável do país. Apesar do projeto de diversificação da matriz energética ser bastante ambicioso e sofrer resistência de alguns setores da sociedade – principalmente aqueles relacionados à produção industrial -, é fundamental que o governo sul africano ofereça as bases necessárias para o desenvolvimento de processos de geração de energia mais sustentáveis. A longo prazo, espera-se um aumento no fornecimento de energia e na qualidade do serviço prestado, além da redução das tarifas e das altíssimas taxas de desemprego e da desigualdade do país. Ainda, se o Plano de Recursos Integrados for executado com sucesso, alinhando as expectativas e a realidade do país aos recursos financeiros disponíveis, será possível observar ganhos econômicos e ambientais efetivos para a África do Sul e para a região da África Austral como um todo.
REFERÊNCIAS
AFDB. Transição energética da África do Sul precisa de completo apoio financeiro, diz o Presidente do Grupo Banco Africano de Desenvolvimento. Grupo Banco Africano de Desenvolvimento, 28 mar. 2022. Disponível em: https://www.afdb.org/pt/noticias-e-eventos/comunicados-de-imprensa/transicao-energetica-da-africa-do-sul-precisa-de-completo-apoio-financeiro-diz-o-presidente-do-grupo-banco-africano-de-desenvolvimento-50718. Acesso em: 27 out. 2023.
DEPARTMENT OF ENERGY REPUBLIC OF SOUTH AFRICA. Executive Summary of the Draft Integrated Electricity Resource Plan for South Africa – 2010 to 2030 IRP 2010. The Inter Ministerial Committee (IMC) has approved this executive summary of the findings and conclusions, drawn from a scenario modelling process, as well as the recommended Balanced Scenario, which is the basis for the Draft IRP 2010 that is to be used for public consultation. 22 out. 2010. Disponível em: https://www.energy.gov.za/irp/irp%20files/Executive_Summary_Draft_IRP2010_22Oct2010.pdf. Acesso em: 9 nov. 2023.
DEPARTMENT OF MINERAL RESOURCES AND ENERGY. Integrated Resource Plan (IRP2019). Department: Energy Republic of South Africa, 17 out. 2019. Disponível em: https://www.energy.gov.za/irp/2019/IRP-2019.pdf. Acesso em: 9 nov. 2023.
GABRIELLI, José Sérgio. África do Sul: rica e desigual enfrenta mais desafios na transição energética. Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (INEEP), 18 nov. 2020. Disponível em: https://ineep.org.br/africa-do-sul-rica-e-desigual-enfrenta-mais-desafios-na-transicao-energetica/. Acesso em: 27 out. 2023.
IEA. South Africa. 2020. Disponível em: https://www.iea.org/countries/south-africa. Acesso em: 7 nov. 2023.
MOFFETT, Michael. Eskom of South Africa’s Death Spiral. Thunderbird School of Global Management, 2020. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7512802/mod_resource/content/1/EC3.%20Eskom%20of%20South%20Africas%20Death%20Spiral.pdf. Acesso em: 9 nov. 2023.
NATIONAL PLANNING COMMISSION. National Development Plan 2030 Our Future-make it work. Department: The Presidency Republic of South Africa, 2011. Disponível em: https://www.gov.za/sites/default/files/gcis_document/201409/ndp-2030-our-future-make-it-workr.pdf. Acesso em: 10 nov. 2023.
WORLD BANK. South Africa: World Bank Backs Reforms to Advance Energy Security and Low Carbon Transition. Press Release. Washington, 25 out. 2023. Disponível em: https://www.worldbank.org/en/news/press-release/2023/10/25/south-africa-afe-world-bank-backs-reforms-to-advance-energy-security-and-low-carbon-transition. Acesso em: 9 nov. 2023.
WYK, Andre van. South Africa: World Bank Development Loan to Bring Change to Coal-Dependent South Africa?. All Africa, 26 out. 2023. Disponível em: https://allafrica.com/stories/202310260551.html#google_vignette. Acesso em: 27 out. 2023.
