Colonialismo, saúde e AIDS: como ser uma zona cinzenta compromete o bem estar namibiano?
Por Érika Fóscolo
Introdução
A Namíbia é o segundo país menos populoso do mundo: conta com 2,5 milhões de habitantes, dos quais 8.9% têm AIDS. Em 2013, a mortalidade da doença era de 20% (WHO, 2023), dados que levantam uma série de questões: o que, afinal de contas, faz Namíbia ocupar o quinto lugar no ranking mundial de letalidade de AIDS? A seção da história deste texto se propõe a discutir o contexto sociocultural namibiano e estabelecer as instituições formadas com a passagem dos anos, contribuindo, assim, para os elementos estruturais que precarizam o sistema de saúde do país. As seções de pós independência e da pandemia de AIDS estendem a discussão, e a seção de atualidade traz dados recentes sobre a doença e informações sobre as últimas políticas promovidas pelo governo namibiano.
História
Namíbia esteve colonizada por mais de um século. No total, foram 106 anos de violenta exploração dos seus povos, terras e recursos. No dia 21 de março de 1990, a Namíbia proclamou sua independência após a guerra sul-africana na fronteira, elegendo, pela primeira vez, Sam Nujoma. Ele serviu três mandatos de 4 anos – política marcada pela tentativa de descolonização da nação, historicamente submetida à propaganda anti-libertação ocidental (NHCL, 202[?]).
Antes disso, a Namíbia tinha outro nome: quando foi colônia germânica – por volta de 1880 – era chamada de África do Sudoeste Germânico. A Alemanha promoveu uma série de políticas de segregação e genocídio: incentivou a tomada de terras, escravização de locais e demarcação de propriedade por parte do fluxo de imigrantes alemães; promoveu o Genocídio dos Herero e Nama (povos coissãs da África Austral), totalizando uma média de 110 mil mortos; decretou deportação, desapropriação, escravização da população local restante e; e realizou a construção de campos de trabalho forçado (Madley, 2005).
Essencialmente, o desenvolvimento de práticas médicas sofreu uma desestruturação significante, visto que a maior parte do conhecimento médico era proveniente de conhecimentos tribais – identidade profundamente comprometida pelo apartheid e colonização europeia – e os centros de atendimento eram europeus e se desenvolviam estritamente nas áreas de ocupação alemã/branca. Recursos, meios de pesquisa e desenvolvimento eram concentrados nas mãos imperialistas: o primeiro profissional de saúde namibiano se formou recentemente, em 2016 (NAKALE, 2016). Uma das políticas lançadas pelos alemães durante seu domínio constatava que o policiamento “(…) deveria ser restrito à menor área possível, concentrando-se nas regiões onde os nossos interesses econômicos tendem a coalescer” (Resolution des Deutschen Reichstags vom, 1905, tradução própria)*. O alocamento de quaisquer outras necessidades seguia a mesma regra.
Pós Independência
As tradições médicas das ricas comunidades étnicas da Namíbia foram submetidas, como dito anteriormente, a um processo de desestruturação devido à marginalização e negação dos conhecimentos geracionais. De acordo com Meincke (2018), uma política regional e internacional de integração da medicina tradicional no auxílio da prática da medicina moderna começou a ser realizada a partir dos anos 1970, mas a Namíbia é um dos únicos países africanos a não oficializá-la como medicina auxiliar.
A razão da existência da política de integração das práticas medicinais formais e informais é a insuficiência de recursos para investir na profissionalização de mão de obra especializada o suficiente para atender tanto às áreas urbanas (priorizadas sistematicamente) e as áreas rurais.
O serviço de saúde público namibiano sofre de má gestão, falta de profissionais de saúde, longas filas e disparidade na qualidade de acesso nas regiões rurais e urbanas. Se não há recursos para a expansão da rede de saúde, não há recursos para a modernização da rede já existente – instalações precárias, falta de equipamentos, comprometimento da infraestrutura, que resultam em um cenário propenso a encontrar dificuldades ao gerir políticas de contenção de doenças virais, como a AIDS, a malária, a hepatite viral, a febre de lassa e a febre de marburg (IHME et al, 2016).
O Impacto da Pandemia de AIDS
De acordo com o Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde (IHME), apesar da redução da mortalidade da AIDS na Namíbia desde 2005, a doença permaneceu sendo a causa de morte mais recorrente para todas as idades até 2013 (IHME et al, 2016).
Certas razões têm origem estrutural: a primeira universidade de medicina construída na Namíbia se chama UNAM. Foi concluída em 2009, e sua primeira leva de profissionais se formou em 2016. dois anos depois, foi lançado o curso de farmácia (UNAM). Isso significa que, antes de 2016, o país – e o combate às pandemias virais, incluindo da AIDS – estava completamente dependente de ajuda humanitária estrangeira, incapaz de lidar com questões de saúde internas de forma autônoma. Não bastasse a ausência de profissionais, existia uma deficiência nas instalações. Namíbia era considerada uma zona cinzenta** (UNAM, 202[?]).
Em 1966, o regime apartheid da África do Sul construiu uma instalação médica no Norte da Namíbia. De acordo Catharina Nord (2014), os serviços médicos para a população local eram ofertados especialmente por missionários, que tinham como seu centro médico uma instalação na mesma região, considerada pioneira nos serviços oferecidos para a população. Os dois hospitais, no entanto, estavam intrinsecamente envolvidos na lógica de guerrilha devido à Guerra de Independência, controlados pelos dois extremos que tomavam parte no conflito. Foram esses dois hospitais que o governo herdou em 1990. A pandemia de AIDS se deu no mesmo ano.
Atualidade
Estima-se que por volta de 220 mil pessoas vivam com HIV na Namíbia, de acordo com estatísticas disponibilizadas pela UNAIDS (2021). Segundo relatórios da USAID, por causa da dispersão da população namibiana pelo território do país, o acesso às populações para prestação de assistência médica é dificultado.
Nesse sentido, o plano lançado pelo governo de Namíbia em conjunto com o Plano de Emergência do Presidente dos Estados Unidos para o Alívio da AIDS (PEPFAR) em abril de 2022 tem por objetivo:
(…) sustentar o impacto de anos de investimento e cooperação com o governo de Namíbia e outros aliados ao adotar medidas inovadoras e objetivas na prevenção de novas infecções, reduzir as taxas de mortalidade e fortalecer o sistema de saúde para que possa resistir ao impacto de choques externos enquanto permanecer providenciando serviços focados no cidadão. (PEPFAR, 2022, p. 2, tradução própria)***.
Considerações Finais
A pandemia de AIDS na Namíbia é influenciada por uma série de fatores socioculturais, socioeconômicos e epidemiológicos. O país austral sofre com insuficiência da profissionalização da mão de obra e disparidade de acesso a facilidades médicas. É uma questão que pode ser entendida como sistêmica, como coloca Aníbal Quijano “(…) como parte do novo padrão de poder mundial, a Europa concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento” (Quijano, 2005, p. 121). Além disso, se “(…) as relações de exploração e de dominação têm caráter colonial” (Quijano, 2005) e são resultantes de um extenso processo global de conquista europeia, países que sofreram colonização são subjugados a um projeto de poder projetado pelas potências centrais, e suas questões atreladas à qualidade de vida e bem-estar são negligenciadas.
O governo de Namíbia está buscando se aliar às organizações filantrópicas, ONGs e outros Estados para o fortalecimento do sistema de saúde existente e para a melhorar a oferta de cuidados médicos para a população local, mas a capacitação dos centros nacionais, a construção de uma massa profissional capaz de atender regionalmente e a melhora da infraestrutura médica são essenciais para o combate à pandemia de AIDS.
REFERÊNCIAS
GERMANY. Resolution des Deutschen Reichstags vom, 19. Juli 1917. Disponível em: <https://www.1000dokumente.de/index.html?c=dokument_de&dokument=0099_fre&object=pdf&st=&l=de>. Acesso em: 20 dez. 2023.
MADLEY, B. From Africa to Auschwitz: How German South West Africa incubated ideas and methods adopted and developed by the Nazis in Eastern Europe. European history quarterly, v. 35, n. 3, p. 429–464, 2005. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0265691405054218. Acesso em: 19 dez. 2023.
MEINCKE, M. Public health and traditional medicine in Namibia. 2018. Disponível em: https://www.njas.fi/njas/article/view/268. Acesso em: 19 dez. 2023.
NAKALE, Albertina. UNAM’s New Graduate Doctors Now Registered. All Africa, Cidade do Cabo, 12 maio 2016. Disponível em: https://allafrica.com/stories/201605121006.html. Acesso em: 19 dez. 2023.
NAMIBIA HIGH COMMISSION LONDON (NHCL). A Brief History of Namibia. NHCL: 202[?]. Disponível em: https://www.namibiahc.org.uk/history.php Acesso em: 19 dez. 2023.
NORD, Catharina. Healthcare and Warfare. Medical Space, Mission and Apartheid in Twentieth Century Northern Namibia. 2014. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4103386/. Acesso em: 19 dez. 2023.
PEPFAR. Namibia Country Operational Plan. 2022. Disponível em: https://www.state.gov/wp-content/uploads/2022/09/Namibia-Signed-COP22-Approval-Memo_.pdf. Acesso em: 19 dez. 2023.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales: 2005. Disponível em: https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf. Acesso em: 20 dez. 2023.
UNIVERSITY OF NAMIBIA (UNAM). Faculty of health sciences & veterinary medicine. UNAM: 202[?]. Disponível em: https://www.unam.edu.na/faculty-of-health-sciences Acesso em: 20 dez. 2023.
United States Agency for International Development (USAID). Global health HIV/AIDS Namibia. 2021. Disponível em: <https://www.usaid.gov/namibia/global-health>. Acesso em: 18 dec. 2023.
IHME, UNIVERSITY OF WASHINGTON, WHO. Namibia: State of the Nation’s Health (Findings from the Global Burden of Disease). [s.l: s.n.]. Disponível em: https://www.healthdata.org/sites/default/files/files/policy_report/2016/PolicyReport_Namibia_2016.pdf. Acesso em: 19 dez. 2023.
WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Country Disease Outlook Namibia. WHO: 2023. Disponível em: https://www.afro.who.int/sites/default/files/2023-08/Namibia.pdf . Acesso em: 19 dez. 2023.
* (…) Should be restricted to the smallest possible area focusing on those regions where our economic interests tend to coalesce.
**De acordo com a terminologia do Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos, uma zona cinzenta é um espaço de interações competitivas entre atores estatais e não-estatais que se encontram entre a guerra tradicional e a dualidade da paz. Em outras palavras, alta instabilidade e tensões militares comprometiam o estabelecimento de uma rede de assistência à população.
***Funding and targets for Namibia’s COP 2022 will support PEPFAR Namibia, in partnership with the Government and the people of Namibia, to advance priorities for sustaining the impact of PEFPAR investments, efficiently identify people living with HIV through targeted testing and screening, ensure all newly diagnosed PLHIV are immediately linked to treatment, and retain all PLHIV on treatment to achieve and maintain viral suppression.
