Texto Conjuntural África Ocidental #21

A presença russa no continente africano: uma análise da atuação do grupo Wagner no Mali

18/01/2024

Por Ana Clara do Nascimento e Marcela Benitez Amaral

A República do Mali, ex-colônia francesa localizada na África Subsaariana, apresenta um histórico marcado pela fragilidade das instituições políticas e democráticas, além de uma intensa intervenção dos militares no governo do país. O Mali vivenciou quatro golpes de Estado (1991, 2012, 2020 e 2021) desde o final da Guerra Fria em 1989 (Elischer, 2022) e também enfrenta dificuldades econômicas e sociais, heranças do passado colonial. Os altos níveis de desemprego entre a população mais jovem, somados a conflitos étnicos, têm contribuído para um crescimento nas atividades de grupos extremistas e separatistas, agravando ainda mais a realidade da população malinesa (Idaewor, 2020).

No contexto em questão, a França optou por intervir militarmente no Mali em 2012 com o propósito de conter as insurgências no país, por meio das operações militares Serval e Barkhane. A incursão das forças armadas francesas ocorreu quase simultaneamente à Missão Multidimensional Integrada para Estabilização das Nações Unidas do Mali (MINUSMA), iniciada em 2013 (Parens, 2022). No entanto, as atividades empreendidas não conseguiram estabilizar completamente a situação de segurança do país, alimentando um sentimento anti-francês que já era latente entre os malineses (Elischer, 2022). Após tensões com a junta militar que liderou o último golpe de Estado em 2021, a França retirou suas tropas do território malinês (RFI, 2022). 

A redução da presença francesa e de outros parceiros de segurança tradicionais abriu caminho para a entrada de um novo protagonista interessado em atuar sobre a dinâmica do Mali: o grupo Wagner. Entretanto, a atuação dessa organização paramilitar no país pode ser interpretada como parte de um projeto geopolítico de expansão russa no continente africano. O ressurgimento do interesse de Moscou pelos países africanos pode ser explicado, entre outros fatores, pelas implicações da invasão da Crimeia em 2014 e o início da Guerra da Ucrânia em 2022, como a perda de zonas de influência e isolamento do país (Mensah; Aning, 2022). Isso gerou não somente a busca por novos parceiros econômicos, diante das sanções impostas à Rússia por diversas nações, mas também apoio político nos fóruns internacionais, onde a participação dos países africanos encontra-se em crescimento (Mensah; Aning, 2022). 

Nesse sentido, a projeção de influência russa na África se manifesta em três dimensões: econômica, político-ideológica e cooperação técnica e militar. No âmbito econômico, a Rússia formalizou acordos bilaterais visando investimentos em recursos energéticos e minerais. Na esfera político-ideológica, ocorre o restabelecimento de laços antigos construídos durante a Guerra Fria ao mesmo tempo que promove uma retórica antiocidental e oferece apoio a líderes impopulares, ilegítimos ou eleitos inconstitucionalmente. Adicionalmente, na área militar e de cooperação técnica ocorre a distribuição de armamentos e equipamentos militares, incluindo a presença de Empresas Militares Privadas (EMPs), como o Grupo Wagner (Mensah; Aning, 2022).

A atuação do Grupo Wagner materializa a estratégia geopolítica russa, uma vez que permite o acesso facilitado a recursos naturais, a exportação de ferramentas de combate, e influencia as diretrizes domésticas dessas nações (Elischer, 2022). Diante do exposto, este texto conjuntural tem como objetivo analisar os impactos da atuação do grupo Wagner no Mali e discutir sobre como ele se configura como um instrumento na execução da política externa russa. 

Contextualização

O Grupo Wagner foi criado por Dmitri Utkin, no qual deu o nome Wagner ao grupo com base em seu nome de guerra no exército. Utkin é um veterano das guerras da Chechênia, ex-oficial das forças especiais e tenente-coronel da GRU, a agência do serviço de inteligência militar da Rússia (BBC, 2023). Yeygeny Prigozhin, é o líder mais conhecido, também conhecido como co-fundador do grupo. Sugere-se que o ano de criação do Grupo Wagner tenha sido em 2014 coincidindo com o início do apoio de forças separatistas pró-Rússia no Leste Europeu e na Crimeia. Atualmente, a organização atua também em regiões da África, Oriente Médio e na América do Sul (Venezuela).  

Mapa interativo. Estados onde o Grupo Wagner atua: Ucrânia, BieloRússia, Síria, Mali, Sudão, Sri Lanka, República Centro Africana, Líbia e Venezuela. Fonte: G1, 2023. 

De modo geral, o grupo é formado por ex-militares e/ou mercenários com alta formação militar, mas acredita-se que com a expansão realizada por Prigozhin, foram também recrutados  prisioneiros, civis russos e estrangeiros (G1, 2023). Em 2022, o grupo se registrou como “empresa militar privada” (EMP), ou seja, uma organização que pode oferecer serviços de segurança e defesa para Estados, empresas ou indivíduos, não se enquadrando em parâmetros jurídicos estabelecidos pelo direito internacional. Dentre outros benefícios e controvérsias para o Estado Russo, essa denominação isenta a Rússia como responsável pelo grupo militar, isto é, caso crimes contra os direitos humanos ou crimes de guerra sejam cometidos pelo Grupo Wagner, estes não são atribuídos a Rússia e, dessa forma, dificultam o processo jurídico em meio internacional. 

O Grupo Wagner proporcionou um conjunto alternativo de tropas estrangeiras de apoio a países da África Ocidental, em especial o Mali, e possibilitou a continuação da construção de pensamento antiocidental, principalmente assumindo uma posição agressiva em relação à França e outros parceiros ocidentais. Além da aproximação diplomática de Vladimir Putin nos últimos anos, há também o apoio a governos autoritários estabelecidos nas regiões da África Ocidental, Sahel africano e África Subsaariana. De forma geral, a estratégia russa pode ser entendida como pautada em dois objetivos principais: 1) exportar armas manufaturadas; 2) obter acesso aos recursos naturais locais. 

Dessa forma, o envolvimento do Grupo Wagner no Mali faz parte de uma estratégia russa mais ampla no continente africano. Além dos fatores principais citados, as últimas atualizações da atuação da empresa militar privada foi resumida na tentativa de reparação dos complexos conflitos militares e terroristas locais com os quais os governos africanos têm lutado – o Mali está enfrentando uma insurgência jihadista islâmica, além das tentativas de golpes de Estado, uma em 2020 e outra em 2021, por exemplo. Além disso, o grupo oferece  também a estes governos a capacidade de conduzir operações de contrainsurgência e contraterrorismo sem as restrições das responsabilidades em matéria de direitos humanos, direitos nos quais o Grupo Wagner é acusado de violar.  

Com a saída das tropas francesas em 2022 e da Missão da ONU no Estado do Mali (Minusma) no ano de 2023, após tentativas fracassadas de estabilizar o país, o Grupo Wagner assume o papel de organização “estabilizadora” (BCC, 2023). De acordo com a ONU (2023) em comunicado, especialistas em direitos humanos citam violações cometidas por forças do governo e pelo grupo de mercenários Wagner: há relatos de tortura, estupros, saques, detenções arbitrárias além de centenas de execuções. 

Diagrama no formato linha do tempo: escalada de violações de direitos humanos. Fonte: ONU News (2023). 

Logo, o acometimento de crimes de guerra, violações de direitos humanos e crimes contra humanidade tornam-se presentes no Mali em conjunto com a atuação da EMP, garantindo uma falsa sensação de segurança e estabilidade nacional. Em suma, a utilização de EMP, como o Grupo Wagner, pode agravar a situação de violência e impunidade, além de dificultar o acesso das vítimas ao apoio jurídico, principalmente em casos de violência sexual. 

Impactos sociopolíticos da atuação do Grupo Wagner no Mali

Segundo a organização não governamental Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED, 2022), o Grupo Wagner desponta como o principal agente em ataques contra civis no Mali durante o período entre dezembro de 2021 e julho de 2022. A entidade atribui ao grupo a responsabilidade por 71% dos incidentes de violência, contrastando com as forças estatais, que representam 20%, e os grupos insurgentes, responsáveis por 27%. É relevante observar que, mesmo as operações conduzidas pelo exército malinês, detentor da menor porcentagem, tornaram-se mais agressivas quando realizadas em colaboração com a EMP russa, conforme evidenciado pelo gráfico abaixo:

Fonte: ACLED (2022)

Na medida em que as autoridades malinesas continuam a negar a contratação dos serviços da organização, sua relação com a população, amedrontada pela violência, fica fragilizada, acentuando o descontentamento e desconfiança em relação às forças estatais malinesas (ACLED, 2022). Além disso, o relatório da ACLED (2022) destaca que o Grupo Wagner tem perpetuado perseguições étnicas contra a comunidade fulani, majoritariamente muçulmana, associando-a de maneira arbitrária com o apoio e proteção de grupos terroristas islâmicos. Todavia, os desdobramentos da atuação do Grupo Wagner no Mali ultrapassam o aumento dos ataques contra a população local e minorias étnicas. 

Diferentes atores, entre organizações não governamentais e países – como a França e os Estados Unidos – têm denunciado a participação do Grupo Wagner na formulação de campanhas de desinformação que visam disseminar mensagens pró-Rússia e anti-Ocidente, além de fortalecer regimes autoritários em toda a extensão do continente africano (African Center for Strategic Studies, 2022). A disseminação de propaganda estratégica pelo Grupo Wagner também está ligada à tentativa de manipular a opinião pública sobre a necessidade da presença da organização nos países onde opera, bem como tentar melhorar a sua imagem (African Center for Strategic Studies, 2022). De acordo com o African Center for Strategic Studies (2022), a Rússia desempenha um papel central no financiamento dessas campanhas na África, como ilustra o mapa a seguir: 

Fonte: African Center for Strategic Studies (2022).

Apesar das iniciativas para conter a indústria de fake news, como a criação de agências de verificação, exemplificadas pelos portais Africa Check e Mali Check (MediaTalks, 2023) a batalha contra a manipulação das informações encontra desafios significativos por conta da falta de uma abordagem mais proativa na detecção e denúncia das notícias falsas em tempo real por parte das plataformas digitais (African Center for Strategic Studies, 2022). Essa interferência estrangeira nos espaços sociais africanos faz-se problemática em vários níveis, gerando sérias consequências para o exercício político da população local.

Em primeiro lugar, as estratégias de desinformação podem contribuir para uma maior polarização entre os usuários, apoiando-se nas divisões já existentes entre os grupos da sociedade (African Center for Strategic Studies, 2022). Esse cenário provoca uma crescente fragmentação em países que geralmente já enfrentam conflitos étnicos ou políticos. Outro efeito dessas práticas é a indução de um sentimento de apatia ou afastamento dos cidadãos em relação à política, pois estes podem se sentir sobrecarregados pela quantidade de informações e a dificuldade de verificá-las, levando muitos a se afastarem do envolvimento político (African Center for Strategic Studies, 2022) . Em suma, “a consequente confusão em decifrar os factos a partir da ficção teve um efeito corrosivo na confiança social, no pensamento crítico e na capacidade dos cidadãos de se envolverem de forma justa na política — a força vital de uma democracia em funcionamento” (African Center for Strategic Studies, 2022).

Assim, levando em consideração o panorama político dessas nações historicamente dominadas por juntas militares, como é o caso do Mali, as táticas de desinformação promovidas pela Rússia revelam implicações extremamente prejudiciais para a participação dos civis na política. Portanto, é essencial não apenas abordar as questões ligadas à presença militar, mas também desenvolver estratégias eficazes para combater a manipulação das informações por esses atores e promover a transparência, fortalecendo, dessa forma, a participação popular e a imprensa local.

Conclusão

A partir do que foi exposto é possível concluir que, a existência do Grupo Wagner, enquanto empresa militar privada, prejudica a fiscalização, a condenação e a condução de processos jurídicos internacionais. A invisibilidade que se confere ao grupo, deixando isentos de responsabilidades ao tocante de direitos humanos e, também, responsabilidades atribuídas ao Estado Russo, pode facilitar a expansão do monopólio da força em pequenos grupos, para pequenas parcelas de interesse, prejudicando populações civis das quais acabam por estar presentes em conflitos. 

O direito internacional estabelece cinco princípios fundamentais para garantir uma estabilidade do sistema internacional e manutenção de tratados e acordos, sendo desta forma, a igualdade jurídica entre os Estados, a solução pacífica de controvérsias, a não-intervenção, autodeterminação dos povos e a cooperação internacional (FERREIRA et al, 2017). O Estado Russo, bem como os outros Estados que aderiram ao Grupo Wagner – como o Mali – além de aprofundar os conflitos e insurgências em seu território, contribuem para o isolamento internacional devido às posturas ofensivas ao direito internacional. Portanto, é possível perceber que a chegada do Grupo Wagner no Mali apenas agrava a crise vivenciada pelo país, contribuindo muito mais para o fortalecimento do regime autoritário do que para a luta contra o terrorismo. 

A atuação da EMP russa intensifica a violência na nação e incide diretamente sobre a soberania popular dos malineses. Tendo em vista os indicadores socioeconômicos malineses, é necessário que as iniciativas de contraterrorismo no país sejam acompanhadas por uma agenda de desenvolvimento voltada para atender de maneira mais efetiva às necessidades da população local. Dessa forma, sem um projeto dedicado à construção e manutenção da paz, o Mali torna-se suscetível às intervenções de atores externos, desprovidos de uma compreensão realista da situação malinesa e que exploram a fragilidade do país em busca de benefícios próprios.

REFERÊNCIAS

ACLED. Wagner Group Operations in Africa: Civilian Targeting Trends in the Central African Republic and Mali, 30 ago. 2022. Disponível em: https://acleddata.com/2022/08/30/wagner-group-operations-in-africa-civilian-targeting-trends-in-the-central-african-republic-and-mali/. Acesso em: 24 dez. 2023. 

AFRICAN CENTER FOR STRATEGIC STUDIES. Mapeamento da Desinformação em África, 30 mai. 2022. 

BBC. A nação africana onde mercenários pró-Rússia do grupo Wagner operam. BBC News, 26 jul. 2023. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c90v1vq9vy4o 

ELISCHER, Sebastian. Populist Civil Society, the Wagner Group and post coup politics in Mali. West African Papers, Paris, n.36, jul. 2022. 

FERREIRA, Aloysio Nunes et al. Princípios do Direito Internacional Contemporâneo. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2017. 

G1. Grupo Wagner é considerado ativo em 30 países; saiba onde atuam os mercenários. G1, 27 jun. 2023. Mundo. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/06/27/grupo-wagner-e-considerado-ativo-em-30-paises-saiba-onde-atuam-os-mercenarios.ghtml 

G1. O que é o Grupo Wagner, formado por mercenários que combateram na Ucrânia. G1, 23 ago. 2023. Mundo. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/ucrania-russia/noticia/2023/08/23/o-que-e-o-grupo-wagner.ghtml 

IDAEWOR, O. O domínio do terrorismo: aspectos dos desafios sociopolíticos na África Ocidental pós-independência: Nigéria, Burkina Faso e Mali. Revista Brasileira de Estudos Africanos, [S. l.], v. 5, n. 9, 2020. DOI: 10.22456/2448-3923.96189. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/rbea/article/view/96189. Acesso em: 19 dez. 2023.

MENSAH, A.; ANING, K.  Russia Resurgent? Untangling the Role and Meaning of

Moscow’s Proxies in West Africa and the Sahel. Strategic Review for Southern Africa, v.44,n.1, 2022. 

PARENS, Raphael. The Wagner´s playbook in Africa: Mali, 2022.

ONU NEWS. Relatores da ONU pedem investigação de possíveis crimes de guerra no Mali. Nações Unidas, 31 jan. 2023. Paz e Segurança. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2023/01/1809022 

RFI. Tropas francesas deixam o Mali sob acusações de neocolonialismo. G1, 15 ago. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/08/15/tropas-francesas-deixam-o-mali-sob-acusacoes-de-neocolonialismo.ghtml. Acesso em: 20 dez. 2023. 

MEDIATALKS. Como ‘mercenários da desinformação’ a serviço da Rússia estão minando a liberdade de imprensa na África. MediaTalks, 06 abr. 2023. Disponível em: https://mediatalks.uol.com.br/2023/04/06/relatorio-mostra-influencia-da-russia-sobre-desinformacao-e-liberdade-de-imprensa-na-africa/. Acesso em: 24 dez. 2023. 

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