O retrocesso argentino: os efeitos da eleição de Milei para o presente e futuro do país
09/01/2024
Por Ana Clara Miyoshi Costa
1 Introdução
Recentemente, em 19 de novembro de 2023, o ultraliberal de extrema direita Javier Milei venceu as eleições argentinas com 55,95% dos votos, contra o ex-ministro da Economia Sergio Massa, que obteve 44,04% de vitória nas urnas (NINJA, 2023).
O novo presidente começou a ter mais destaque em sua carreira política a partir de 2018, quando seu discurso “liberal libertário” foi divulgado nos principais meios de comunicação do país. Em 2020 houve uma ascensão do mesmo, quando anunciou sua candidatura à Presidência nas eleições de 2023. Isso permitiu que seu partido, La Libertad Avanza (LLA), conquistasse duas cadeiras na Câmara dos Deputados em 2021 (TOLEDO, 2023).
Milei tem como vice a até então deputada federal e também advogada Victoria Villarruel, 48, filha e neta de militares. O conservadorismo familiar é facilmente identificado em Villarruel: essa se define como “uma profunda defensora da vida” e defende com orgulho a revogação da lei do aborto, chegando a mencionar que tal medida “foi desastrosa para a República Argentina” (CASTRO, 2023). Em diversos momentos, a conservadora critica abertamente as políticas de direitos humanos adotadas pelos governos argentinos das últimas décadas. Ademais, é interessante ressaltar que, em 2019, a advogada se reuniu com líderes do Vox, partido de extrema-direita espanhol (CASTRO, 2023). Em seguida, a mais nova vice-presidente compartilhou uma nota em um meio de comunicação argentino, intitulada “As lições do Vox que os argentinos podem aprender”, destacando a defesa de valores e princípios como a família, a liberdade, o direito à vida e a propriedade privada (CASTRO, 2023).
Ambos os políticos destacados inauguraram a LLA em dezembro de 2021, coligação que tem crescido significativamente nos últimos anos, juntamente com a força da extrema direita. Atualmente, o partido em questão tem 40 dos 257 deputados e 7 dos 72 senadores do Congresso (EXAME, 2023). Assim, Milei e Villarruel tomaram posse em 10 de dezembro de 2023 e, apesar de estarem só no início do mandato, inúmeras polêmicas já englobam a presidência atual (EXAME, 2023).
2 As medidas de Milei
Após eleito, Javier Milei anunciou uma série de medidas de caráter neoliberal: o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU). Tal projeto de lei foi encaminhado ao Congresso e contém 664 artigos, os quais pretendem modificar ou revogar diversas leis visando restringir o Estado e fortalecer o mercado (EXAME, 2023).
Nesse viés, de acordo com publicações oficiais do próprio governo mencionado, as principais reformas do megapacote propõem: 1) uma “declaração de emergência em temas econômicos, financeiros, fiscais, sociais, de previdência, segurança, defesa, tarifários, energéticos e sociais”, podendo ser prorrogada até o fim de 2027, permitindo que o presidente concentre em suas mãos os poderes do Executivo e do Legislativo dentro do período determinado. 2) A privatização de empresas estatais, tais como a petrolífera YPF, os correios, a empresa de água AYSA, o Banco Nación, a Aerolíneas Argentinas, entre outras 40. Ademais, ordena o encerramento e fundição de instituições públicas, exceto as universidades. 3) O endurecimento das condenações das manifestações públicas, de modo a aumentar a pena para até 6 anos de prisão àqueles que participarem de protestos que bloqueiam as ruas, tendo como principal foco reprimir os movimentos sociais. 4) A eliminação de penas para aqueles que utilizarem armamentos “no cumprimento de um dever ou no exercício legítimo do seu direito, autoridade ou cargo”. É crucial enfatizar que, no hodierno, o Código Penal do Estado argentino apenas permite o uso de armas por forças de segurança, caso a vida de alguém esteja em risco (SMINK, 2023). 5) A liberalização da economia, de forma a retirar quaisquer taxações existentes das importações, permitindo a entrada de qualquer quantidade de produtos estrangeiros, sem limite de valor. 6) A exigência de um aval para reuniões acima de três pessoas em espaços públicos. 7) A eliminação das Eleições Primárias (Paso), na qual a população escolhe os candidatos dignos de se disputarem as vagas políticas oficiais. Assim, as eleições locais passariam a ter somente dois turnos (AGÊNCIA O GLOBO, 2023).
Em adição ao exposto, assim que tomou posse, 8) Milei alterou uma lei que proibia a nomeação de familiares em cargos públicos, ao nomear sua irmã, Karina Milei, como Secretária da Presidência (MAGALHÃES, 2023). Além disso, 9) seu governo anunciou em 26 de dezembro que não irá renovar os contratos de funcionários públicos que possuem menos de um ano de exerção do trabalho. Desse modo, de acordo com Manuel Adorni, porta-voz do governo, cerca de 5000 funcionários cujos contratos vencem em 31 de dezembro de 2023 serão dispensados. Entretanto, La Nación e Clarín (principais jornais do país), além do portal Infobae, afirmaram que na verdade podem ocorrer até 7000 demissões, tendo como base que o Estado possui 338.392 funcionários públicos trabalhando na administração federal, segundo o Indec (equivalente ao IBGE brasileiro) (G1, 2023).
3 Análise dos efeitos da eleição de Milei
1. Presidente da Argentina, Javier Milei

A chegada do governo Milei ao poder representa explicitamente um retrocesso à democracia Argentina (MELLO, 2023). Ao começarmos pela análise de suas propostas citadas anteriormente, essas trazem junto consigo, respectivamente: 1) marcas de um autoritarismo exacerbado e avanço sobre as competências do Congresso (REDAÇÃO, 2023); 2) a capitalização de serviços básicos e públicos, dificultando que a sociedade tenha garantia ao acesso desses (SMINK, 2023); 3) limitações e censuras ao direito de liberdade de expressão (SMINK, 2023); 4) lacunas para que violências armadas sem justificativas plausíveis ocorram (SMINK, 2023); 5) desincentivos à economia nacional e aos produtores locais (AGÊNCIA O GLOBO, 2023); 6) restrições ao pleno uso de espaços públicos, primordialmente destinados à população (AGÊNCIA O GLOBO, 2023); 7) filtragem menos minuciosa de candidatos para alcançarem as vagas de poder (AGÊNCIA O GLOBO, 2023); 8) fomentação à prática nepotista e injustiça na posse de cargos (MAGALHÃES, 2023); e, por fim, 9) desamparo aos trabalhadores argentinos e suas famílias (LÉON, 2023).
De forma concomitante, as posturas do presidente e sua vice demonstram marcas de anti profissionalismo e desrespeito, tanto para com o povo e a história do país, quanto para com outros representantes políticos de outros Estados. Isso povo ser visto em algumas citações de Milei: “Hoje começamos formalmente o caminho da reconstrução”, disse o anarcocapitalista. “Esta doutrina que se costuma chamar de esquerda, coletivismo, comunismo, representa um fracasso que estamos afastando da Argentina” (REDAÇÃO, 2023). Em outra situação, Javier Milei criticou de forma ríspida o governo brasileiro e atacou diretamente o presidente Lula da Silva, ao chamá-lo de “totalitário, comunista e socialista”, além de afirmar que esse último apropria-se da liberdade de expressão, que foi o responsável pela tentativa de golpe de Estado e que as urnas eletrônicas utilizadas nas eleições brasileiras não são cabíveis de confiança, discurso similar àquele do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro (BALZA, 2023).
Além disso, as relações diplomáticas do atual presidente argentino com as demais autoridades de Estado estão se enfraquecendo rapidamente, principalmente com os países latinoamericanos. Milei defendeu a eliminação do Mercosul, fato que levou a uma das reuniões do bloco econômico ser marcada para dia 7 de dezembro, por fatores logísticos e, principalmente, para que ocorresse antes da posse do anarcocapitalista, em 10 de dezembro (ROUVENAT et al., 2023). Ademais, esse também declarou ser adverso a entrada de seu país no BRICS, posteriormente ocasionando na retirada da Argentina da lista de países que passaria a formar parte do grupo a partir de 1 de janeiro de 2024 (AGÊNCIA O GLOBO, 2023).
As declarações de Victória Villarruel também demonstram gravidade e devem ser vistas com preocupação: a vice-presidente descreve o período da ditadura argentina como “uma guerra” entre militares e forças de segurança e protestantes de esquerda, os quais enxerga como “terroristas” (CARMO, 2023). Em outro momento, ela questiona “Como você acha que poderá resolver a situação do país se não for com uma tirania?”. Assim, a mentalidade de Villarruel é refletida até mesmo nas falas de Milei, o qual já questionou a quantidade de vítimas sequestradas durante a ditadura durante um debate presidencial, insinuando que foram cerca de 8 mil desaparecidos e ignorando os outros 22 mil que também tiveram o destino de suas vidas alterado para sempre (CARMO, 2023). Tudo isso entra em contraposição com a história argentina, haja vista que o país já foi frequentemente elogiado por especialistas de direitos humanos e historiadores por ter julgado e punido os ditadores e torturadores da melhor forma possível. Todavia, a nova visão que o partido LLA traz é um risco para a segurança, bem-estar e garantia de direitos do povo argentino (CARMO, 2023).
A nova mentalidade que se propaga no país muito pode ser explicada pela força do conservadorismo local e falta de conhecimento sobre o passado da Argentina, tendo em vista que os principais responsáveis pela grande relevância de Milei são os jovens da Geração Z (CARMO, 2023). Muitos desses conheceram o conservador através de programas televisivos e redes sociais, principalmente o Tiktok. Assim, os vídeos do candidato chamaram a atenção desse grupo – composto majoritariamente por homens jovens do interior, sem educação superior e desesperançosos em relação ao mercado de trabalho, ou seja, uma geração que não viveu os horrores do período ditatorial (CARMO, 2023). Para mais, entre os jovens de 16 a 21 anos, seis de cada dez valorizam a democracia, todavia, apesar de ser uma maioria, existe um número considerável que não possui interesse ou não tem uma opinião formada sobre o modelo democrático, representando um risco para as próximas gerações no Estado (CARMO, 2023).
Mediante ao exposto, na primeira manhã após a eleição do ultradireitista, houve uma desvalorização significativa do peso argentino. Este perdeu metade do seu valor em comparação com o dólar americano, que disparou mais de 20%. Os títulos argentinos caíram cerca de 10%, os ativos financeiros locais tiveram um reflexo negativo à posse de Milei e, por conseguinte, os juros básicos subiram em 21 pontos para 118% ao ano, a Bolsa de Buenos Aires teve queda inicial de mais de 3% do índice Merval e os títulos de dívida argentina caíram cerca de 13% em Nova York, além disso, após 10 dias da subida de Milei ao poder, o preço dos combustíveis aumentou mais de 60% (NAKAGAWA, 2023).
A catástrofe econômica não é a única que ocorre com a chegada da LLA, visto que no âmbito social diversos protestos têm preenchido o cotidiano do país. Os sindicatos se mostram fortemente insatisfeitos com as propostas divulgadas no DNU e, em 27 de dezembro de 2023, a Confederação Geral do Trabalho, maior central sindical da Argentina, liderou o terceiro e maior protesto, realizados apenas depois de 16 dias da chegada do novo governo, além de dois panelaços realizados pelo povo, havendo a possibilidade de uma greve geral de 24 horas ocorrer nos próximos tempos (RFI, 2023).
4 Conclusão
Em suma, a falta de interesse da nova geração argentina pela democracia local, as intensas crises econômicas do país que tendem a piorar com os recentes acontecimentos e a presença do partido ultradireitista no poder são evidências fortes de um possível retrocesso para a sociedade (CARMO, 2023).
Tendo em vista tudo que foi discorrido, fica evidente que o futuro da Argentina é incerto e até mesmo perigoso para a sua própria população. A figura de Milei e sua chapa – que recordam de forma nítida o ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump – enfatizam, em cada ação, marcas de um regresso para o país, que tende a se aproximar cada vez mais do movimento de avanço da extrema direita global e, caso não haja uma força contrária para impedir que isso ocorra, provavelmente veremos a República Argentina próxima das ruínas em um futuro breve (NINJA, 2023).
Referências
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AGÊNCIA O GLOBO. Milei envia carta anunciando retirada da Argentina do Brics. Exame, 29 dez. 2023. Disponível em: https://exame.com/mundo/milei-envia-carta-anunciando-retirada-da-argentina-do-brics/. Acesso em: 30 dez. 2023.
BALZA, Guilherme. Governo brasileiro acredita que vitória de Milei representaria ‘retrocesso diplomático’ nas relações entre Brasil e Argentina. G1, 20 out. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/blog/julia-duailibi/noticia/2023/10/20/governo-brasileiro-acredita-que-vitoria-de-milei-representara-retrocesso-diplomatico-nas-relacoes-entre-brasil-e-argentina.ghtml. Acesso em: 30 dez. 2023.
CARMO, Marcia. Quem é a vice de Milei, que defende revisar indenizações da ditadura na Argentina. BBC News Brasil, 20 nov. 2023. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxw1x1x4njxo. Acesso em: 30 dez. 2023.
CARMO, Marcia. Tiktok e economia: como a Geração Z virou o motor da campanha de Javier Milei na Argentina. BBC News Brasil, 18 out. 2023. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c725990rdkwo. Acesso em: 30 dez. 2023.
CASTRO, Manuela. ¿Quién es Victoria Villarruel, la compañera de fórmula de Javier Milei para las elecciones en Argentina?. CNN Español, 29 mai, 2023. Disponível em: https://cnnespanol.cnn.com/2023/05/29/elecciones-en-argentina-quien-es-victoria-villarruel-la-companera-de-formula-de-javier-milei-orix/. Acesso em: 30 dez. 2023.
EXAME. Milei envia novo pacote de reformas que declara emergência econômica até 2025. Exame, 27 dez. 2023. Disponível em: https://exame.com/mundo/milei-envia-novo-pacote-de-reformas-ao-congresso-que-declara-emergencia-economica-ate-2025/. Acesso em: 30 dez. 2023
G1. Governo Milei não renovará contrato de cerca de 5 mil funcionários públicos. G1, 26 dez. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/12/26/governo-milei-nao-renovara-contrato-de-cerca-de-7-mil-funcionarios-publicos-diz-imprensa-local.ghtml. Acesso em: 30 dez. 2023.
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