VENEZUELA E GUIANA: O PAPEL DO BRASIL NA MEDIAÇÃO DO CONFLITO
30/12/2023
Por: Marcello de Freitas Maia Mascarenhas
Introdução
O aumento das tensões entre Venezuela e Guiana chamou a atenção internacional no segundo semestre de 2023 e gerou insegurança para o continente sul americano. As recentes declarações do presidente Nicolás Maduro e o passado recente das negociações fazem do conflito armado uma possibilidade distante. O Brasil, enquanto liderança regional e Estado que faz fronteira com ambos os países, exerce papel fundamental na mediação do conflito e pode alterar os rumos do caso. Dessa forma, o objetivo desta análise é entender a participação brasileira no conflito e apresentar motivos concretos do porquê o Brasil deve intermediar a disputa.
O que está acontecendo entre Venezuela e Guiana?
No dia 7 de dezembro de 2023, o presidente venezuelano Nicolás Maduro manifestou seu interesse em anexar a região de Essequibo, porção territorial rica em recursos naturais que atualmente pertence à Guiana. Após realizar um referendo com a população sobre a legitimidade das fronteiras da região, a Venezuela não apenas se auto classificou como detentora do território mas também criou um novo mapa de demarcação das fronteiras do país, incluindo Essequibo.
Fonte: France 24 – Gustavo IZUS / AFP
No entanto, ainda que os debates acerca do conflito tenham se popularizado nos últimos meses, a disputa territorial entre Guiana e Venezuela acontece há mais de um século. Em 1898, quando a Guiana ainda pertencia à Inglaterra, criou-se a Corte Arbitrária de Paris com o objetivo de solucionar o caso, e, após mais de um ano de negociações – em outubro de 1899 – os cinco juízes da corte definiram por laudo que a região de Essequibo era parte do território guianense (BURR, 1900). Apesar da insatisfação venezuelana, o caso ficou relativamente esquecido, até que em 1949 o advogado norte-americano Mallet-Prevost – escolhido pelo congresso americano para defender os interesses venezuelanos na corte de 1899 – publicou um relatório alegando que a decisão da corte foi fraudada. A Venezuela, com novos documentos, recorreu à ONU em 1962 e iniciou novos debates com os ingleses, que ainda eram detentores do território da Guiana. A nova negociação resultou no Acordo de Genebra de 1966, definindo que as fronteiras da Guiana incluíam a região de Essequibo (ONU, 1966). Neste mesmo ano, a Guiana conseguiu sua independência e passou a administrar seu território sem interferência inglesa.
Em 2015, a empresa norte-americana ExxonMobil descobriu novas reservas de petróleo na costa de Essequibo e mudou as dinâmicas do conflito. Segundo a própria petrolífera, as reservas equivalem a 11 bilhões de barris, quantidade superior às reservas totais de grandes exportadores de petróleo, como a Noruega, que possui cerca de 8 bilhões (TGE, 2021). Em termos comparativos, o Anuário Estatístico Brasileiro do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis 2023 apresentou que as reservas brasileiras equivalem a 26,9 bilhões de barris. Isso significa que a Guiana, território menor do que o estado de Minas Gerais, possui quase metade de todas as reservas brasileiras (ANP, 2023). Essas novas descobertas chamaram a atenção venezuelana ao ponto do presidente Nicolás Maduro retomar os discursos sobre a anexação de Essequibo e realizar um referendo com a população sobre a veracidade das fronteiras entre Guiana e Venezuela. Nesse sentido, ainda que o país passe por alta instabilidade e polarização política, o povo venezuelano possui alta convergência de interesses no que se refere à Essequibo, ou seja, independentemente da ideologia política, a maioria esmagadora da Venezuela considera que a região não pertence a Guiana. Este conflito funciona, tendo em vista o aumento do nacionalismo e do sentimento de pertencimento da população venezuelana, como um instrumento político benéfico ao Governo Maduro.
Os fatos acima levaram a um aumento generalizado das tensões no continente sul americano que vai além da região de Essequibo, exigindo que o Brasil, enquanto maior potência regional, exerça papel de liderança e de mediação do conflito a fim de assegurar a estabilidade regional. Dessa forma, assumindo a possibilidade de se entender o tema sob a ótica da Teoria da Estabilidade hegemônica, a próxima seção analisa o papel brasileiro sob a perspectiva teórica.
O papel do Brasil e a Teoria da Estabilidade Hegemônica
Segundo Robert Gilpin, importante entusiasta da teoria da estabilidade hegemônica, a presença de uma potência hegemônica é essencial para a manutenção da estabilidade do sistema internacional. Ao deter superioridade significativa em termos econômicos, militares e/ou políticos em relação às demais nações, a potência hegemônica desempenha um papel central na garantia da ordem e na prevenção de conflitos generalizados (GILPIN, 1983). O Brasil, apesar de não ser a maior potência do sistema, deve exercer seu papel de hegemonia regional e mediar o conflito, uma vez que uma escalada militar entre Venezuela e Guiana não seria, em nenhuma instância, benéfico para o Governo Brasileiro. Segundo Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV, o início de uma guerra na América do Sul resultaria na diminuição dos investimentos estrangeiros no subcontinente, tendo em vista que o passado de baixo risco geopolítico da região – argumento essencial para a atração de investimentos – chegaria ao fim. Ainda que os países sul americanos apresentam traços estruturais de instabilidade política, é importante notar que o caráter pacífico e de baixíssimo risco militar sempre foi um elemento-chave para o investidor estrangeiro, tanto na área especulativa quanto em IDE. Dessa forma, uma eventual escalada militar nas américas poderia reduzir significativamente os investimentos em todos os países da América do Sul, o que certamente afetaria o Brasil, detentor da maior bolsa de valores sul-americana. Além disso, um conflito armado colocaria em cheque a tentativa brasileira de unir politicamente o continente sulamericano. Desde que chegou ao poder, Lula tem tentado fortalecer o regionalismo americano por meio das organizações internacionais, como o Mercosul, a UNASUL e a CELAC, colocando as relações Sul-Sul como uma das prioridades da política externa brasileira. Contudo, uma vez iniciada a guerra em Essequibo, os governos seriam pressionados a tomarem lado no conflito, o que resultaria na polarização política do continente. Por fim, é importante mencionar que a eventual ocorrência de um conflito armado na região poderia gerar questionamentos da liderança brasileira na América do Sul, tanto política quanto militarmente. Isso porque a única forma dos militares venezuelanos adentrarem o território guianense por terra é atravessando o estado de Roraima, situação que envolveria a soberania brasileira e romperia as relações democráticas entre Brasil e Guiana.
Os três argumentos acima deixam clara a necessidade brasileira de não se omitir e se colocar como um ator importante no conflito. Nesse sentido, algumas medidas já foram tomadas pelo Governo brasileiro, como o envio de 28 blindados Guaicurus do Sul do país em direção à fronteira com a região de Essequibo, a fim de assegurar que os venezuelanos não utilizem o território brasileiro como forma de passagem além de confirmar que a Polícia Federal estará monitorando a região (G1,2023). Outrossim, o presidente Lula enviou seu Assessor Especial das Relações Exteriores, Celso Amorim, para conversar diretamente com Maduro e tentar convencê-lo a levar a situação de maneira democrática, além de uma série de telefonemas diplomáticos entre Brasília e Caracas. O Brasil recebeu chamadas de agradecimento do Departamento de Estado Americano por essas medidas, o que trouxe mais confiança internacional na liderança brasileira regional.
Após esta configuração de política externa brasileira, o Governo Maduro tem apresentado posições mais moderadas em relação ao conflito, dispostos a negociar com a Guiana de maneira geral. Não se pode dizer, entretanto, que o Brasil foi o único contribuinte para a mudança de comportamento dos tomadores de decisão venezuelanos, mas pode-se dizer que a diplomacia brasileira foi um elemento chave deste processo, conforme dita a teoria da estabilidade hegemônica.
REFERÊNCIAS
AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÓLEO, Anuário Estatístico Brasileiro do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis 2023. Disponível em: https://www.gov.br/anp/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/anuario-estatistico/anuario-estatistico-2023. Acesso em 16/12/2023.
BURR, George Lincoln. “The Guiana Boundary: A Postscript to the Work of the American Commission.” The American Historical Review, vol. 6, no. 1, 1900, pp. 49–64. JSTOR. Disponível em:https://www.jstor.org/stable/1834689?searchText=&searchUri=%2Faction%2FdoBasicSearch%3FQuery%3Dessequibo&ab_segments=0%2Fbasic_search_gsv2%2Fcontrol&searchKey=&refreqid=fastly-default%3Ab80c8212666b14e221c38bea038bd26e&seq=2 . Acesso em 6 Dec. 2023 às 19:50.
G1, Por que o Brasil está enviando blindados do exército para a fronteira com a Venezuela?,
GILPIN, Robert. War and change in world politics. United Kingdom: Cambridge University Press. 1983.
THE GLOBAL ECONOMY, Oil reserves – Country rankings – Oil reserves, billion barrels, 2021. Disponível em: https://www.theglobaleconomy.com/rankings/oil_reserves/Europe/ . Acesso em 15/12/2023.
UNITED NATIONS, Agreement to Resolve the Controversy over the Frontier between Venezuela and British Guiana (Geneva Agreement). Date: 17/02/1966 Country / Entity: Guyana; United Kingdom; Venezuela. Disponível em: https://peacemaker.un.org/guyana-venezuela-border66. Acesso em 15/12/2023 às 8:32.
