A eleição de Javier Milei na Argentina: e a possível conjuntura sul-americana
André Filiks
1. A situação socioeconômica argentina e a Eleição de Milei
No dia 19 de Novembro de 2023, os argentinos foram às urnas para eleger seu novo presidente, que os guiaram pelos próximos 4 anos em meio a indicadores econômicos catastróficos e um crescente aumento da pobreza no país. O eleitor argentino dispunha da escolha entre dois candidatos: Javier Milei, economista autodeclarado anarcocapitalista, e crescente expoente da extrema direita libertária ultraliberal (OLIVA, 2023); e Sergio Massa, advogado, candidato da base governista e sucessor da linha peronista (CNN, 2023) que dominou a política argentina quase que ininterruptamente nos últimos 34 anos (PODER 360, 2023). Ainda no mesmo dia, o vencedor já era conhecido, Javier Milei havia vencido Massa e a corrente peronista (G1, 2023), que sofria nova derrota após as eleições de 2015.
Considerando o histórico político recente argentino, ver o peronismo derrotado numa eleição é algo quase inédito, ocorrendo apenas uma vez em 2015 quando Mauricio Macri, um candidato de centro-direita foi o vencedor (G1, 2015). Por isso, convém entendermos o que é o peronismo, e a situação socioeconômica argentina para entendermos a razão para o recente fracasso dessa corrente política e dessa guinada tão brusca de orientação política do estado argentino.
Segundo Soprano e Lal Basu (2020), o peronismo surge na Argentina nos anos 50, em meio a proliferação das diferentes ideologias socialistas pelo mundo, e em seu espectro, o peronismo se posicionaria como uma ideologia intermediária entre as inúmeras correntes socialistas de esquerda e direita. Os mesmos autores vão além ao descrever o peronismo e afirmam que:
Os postulados desta filosofia política – estilo de vida – são a justiça social, a soberania política e a independência econômica, estabelecendo-se uma doutrina para a execução concreta destes postulados, buscando a inclusão de setores marginalizados do consumo e bem-estar produzido pelo avanço da sociedade , de que poucos aproveitavam, para maior equidade social (SOPRANO, LAL BASU, 2020, P. 3. TRADUÇÃO PRÓPRIA)[1].
Assim, podemos observar que o peronismo, assim como grande parte das correntes de pensamento socialista, tem seus pilares na democratização dos benefícios obtidos com o avanço da sociedade, empenhado em trazer para toda a população, em especial os grupos marginalizados os ganhos de bem-estar e um maior poder de consumo, retirando a exclusividade das elites à esses direitos (SOPRANO, LAL BASU, 2020). Um forte apelo à uma justiça social e a uma maior igualdade entre as classes sociais surge com o peronismo, e, buscando alcançar tais objetivos, surge a cartilha de medidas peronistas, que persistiu por grande parte dos últimos 30 anos (PODER 360, 2023), se intensificando no período Kirchnerista.
As medidas adotadas pelos governos peronistas, tinham como foco principal atender as demandas da população independentemente dos custos. Assim, os governos peronistas frequentemente gastavam quantias massivas de capital para incentivar a ascensão socioeconômica da população argentina (Banco Mundial, 2018). gerando uma grande demanda agregada por bens de consumo que sua indústria incipiente não era capaz de prover internamente. Consequentemente, as demandas por produtos importados decolavam, e as exportações do enfraquecido setor produtivo argentino não conseguiam repor as divisas perdidas nas crescentes importações (Banco Mundial, 2018) exigindo que os governos peronistas buscassem financiamento externo para suas políticas, frequentemente através do FMI ou Banco Mundial, até que tais organizações se negassem a continuar o financiamento das medidas peronistas, momento em que a economia argentina colapsaria (Banco Mundial, 2018).
É este mesmo cenário que a Argentina enfrentava – e ainda enfrenta – em suas eleições quando Javier Milei foi eleito. O PIB argentino sofreu uma queda vertiginosa nesta década, sendo 9% menor do que era 10 anos atrás, e atualmente enfrenta uma nova queda de 4,9% em relação ao mesmo período do ano anterior (INDEC,2023 apud LAMBERTUCCI, 2023). A inflação chegou a exorbitantes 142% neste ano, e projeções estimam um valor final de 185% ao ano; 40% da população já vive em condições de pobreza (INDEC,2023 apud LAMBERTUCCI, 2023). As taxas de câmbio são confusas com múltiplas taxas não oficiais como o “dólar blue”, e o Peso argentino sofreu intensa desvalorização, sendo a taxa de câmbio atual 1 Peso argentino oficialmente 364 Dólares estadunidenses e extra-oficialmente 950 Pesos argentinos por 1 Dólar estadunidense (INDEC,2023 apud LAMBERTUCCI, 2023). Por fim, o Banco Central argentino sofre com a escassez de suas reservas de moeda estrangeira, tendo essa caído em 53% somente no ano anterior, fazendo com que o país tenha grandes dificuldades em honrar seus pagamentos em transações internacionais, incluindo o pagamento de sua dívida com o FMI, que atualmente é de U$ 44 Bilhões (INDEC,2023 apud LAMBERTUCCI, 2023).
É neste caótico cenário socioeconômico que surge a figura de Javier Milei, uma figura polêmica, mas carismática que bebendo das fontes de Donald Trump e Jair Bolsonaro, se utilizava de discursos mais radicais e que apelava às massas. Sua retórica de combater o que chamava de “casta política” argentina (SETA, 2023) com certeza seduziu os corações de um povo tão combalido e desgostoso com as figuras políticas que governavam no momento, dentre essas especialmente, os peronistas. Assim, o resultado das eleições de 19 de Novembro não chegam a ser tão surpreendentes assim.
2. Iniciativas de Milei e seus possíveis impactos para a conjuntura argentina e sul-americana
1 Imagem: Presidente da Argentina, Javier Milei

Com a confirmação do início de uma nova era na política argentina, o povo argentino agora se pergunta sobre o que virá a seguir, e aqui analisaremos as medidas que Milei pretende implementar em seu governo para encontrarmos a resposta (SETA, 2023).
As medidas mais polêmicas que o recém eleito presidente pretende implementar são extinguir o Peso argentino e dolarizar a economia argentina, além de fechar o Banco Central argentino. No entanto, essas não são as únicas grandes mudanças que Milei almeja, ele pretende cortar drasticamente os gastos públicos, inclusive diminuindo o número de ministérios de 18 para 9. Além disso, pretende privatizar empresas estatais, eliminar todas as restrições cambiais e de exportação, realizar reformas tributárias e trabalhistas, e cortar gastos com aposentadorias (SETA, 2023).
No futuro próximo, – excluindo as medidas mais polêmicas mencionadas acima – as medidas de Milei causarão um grande surto inflacionário, e os preços ficarão drasticamente mais caros, no entanto, caso as previsões do governo estejam corretas e a política econômica adotada seja frutífera, o déficit fiscal argentino será controlado gradativamente, e o país passará a arrecadar mais do que gasta, regularizando a economia, taxa de câmbio e inflação (MARTINS, 2023). No entanto, caso as medidas falhem, há a possibilidade de o país entrar em um período prolongado de hiperinflação.
Ademais, se o governo de Milei for adiante com as propostas de dolarização da economia e extinção do Banco Central, riscos adicionais farão parte desta equação. Primeiramente, o governo argentino perderá sua prerrogativa de emitir moeda e elaborar sua política monetária, efetivamente cedendo parte de sua soberania aos Estados Unidos, além disso, tais medidas enfraquecem a capacidade do governo de lidar com ataques especulativos (C). Outro problema com essas medidas é uma das raízes da crise econômica atual argentina, os cofres públicos sofrem com escassez aguda de Dólares estadunidenses, o que tornaria a criação de uma reserva de moeda adequada extremamente complicada, já que o governo não poderia emiti-la e precisaria adquiri-la de outras fontes, a um custo alto (MARTINS, 2023).
Todos esses fatores contribuem para que o futuro argentino esteja envolto em um grande véu de incerteza, e, ainda que seja muito cedo para quaisquer previsões, é certo dizer que a nova política argentina é arriscada, porém se bem-sucedida poderá reabilitar a economia do país.
No campo internacional, Milei já deu sinais de como conduziria sua política externa. Em seus discursos de campanha declarou que seu governo apoiaria EUA e Israel (SPEKTOR, 2023), além de fazer duras críticas aos governos brasileiro – chamando o presidente Lula de “presidiário” e “comunista” – , chinês e russo, afirmando que não promoveria qualquer cooperação com comunistas (BBC NEWS BRASIL, 2023).
Nas cooperações multilaterais, Milei expressou o interesse de sair do Mercosul (BBC NEWS BRASIL, 2023), além de afirmar que não aderiria aos BRICS, e que planejava a entrada da Argentina na OCDE. Esses movimentos enviam uma mensagem de afronta ao resto do continente, e expressam que os interesses e alinhamentos argentinos sofreram uma brusca e repentina guinada (SPEKTOR, 2023).
4. Conclusão: Os impactos da eleição de Milei e sua influência no possível surgimento de uma nova conjuntura sul-americana
A recente reforma política argentina foi muito além de apenas um rompimento socioeconômico restrito ao território argentino. Acompanhadas de suas mudanças econômicas internas, vieram drásticas mudanças nos alinhamentos e interesses argentinos relacionados à sua política externa.
A Argentina de outrora mantinha laços amistosos com o Brasil e o resto do continente sul-americano, e pleiteava a entrada nos BRICS. Entretanto, com a chegada de Milei ao poder, a Argentina sofre uma completa e repentina reorientação em sua política externa.
Decididamente pró-EUA, a Argentina de Milei se alinhará com o mesmo em todas as pautas, como exemplificou ao se declarar em seus discursos ser também pró-Israel. Com tal política de alinhamento automático aos EUA, surgem novas tensões internacionais do país, principalmente com China e Rússia, mas também com o Brasil e boa parte da América do Sul.
A América do Sul, em sua maioria tem um posicionamento de distância em relação aos EUA, sendo o Brasil o principal expoente desse alinhamento político. Somando-se a isso o fato de que Milei não pretende se juntar aos BRICS, movimento patrocinado pelo Brasil, além de ter expressado desejo de sair do MERCOSUL, um dos instrumentos de maior importância de projeção de poder do Brasil na América do Sul, e é possível identificar o surgimento de tensões políticas entre as maiores potências do continente.
Confirmando-se esse alinhamento automático aos EUA, é possível que a Argentina se torne instrumento político dos EUA para projetar poder e influência na América do Sul, algo que o Brasil não vê com bons olhos, e que os BRICS também desejam evitar, em especial a China, que vinha se aproximando da Argentina aportando valores bilionários em iuanes para ajudá-la com sua dívida. Este é outro possível ponto de tensão que a Argentina terá que resolver.
Pode-se concluir, enfim, que décadas de má administração por parte de uma corrente política que dominou o governo argentino, levaram a sua população ao extremismo. De tal extremismo surgiu um candidato com discurso messiânico que prometeu salvar sua nação com medidas radicais, e não apenas no campo econômico. Essas medidas radicais agora estão a ponto de causar tensões no continente sul-americano e no tabuleiro de xadrez global, trazendo os holofotes para o continente sul-americano na forma de uma disputa não apenas da hegemonia regional, mas pela disputa de influência de duas superpotências globais. Só o tempo dirá quem colherá os melhores frutos dessa reorganização das peças no tabuleiro.
Referências Bibliográficas
BANCO MUNDIAL. ARGENTINA: Escaping crises, sustaining growth, sharing prosperity. Washington: The World Bank, 2018. Disponível em: <https://documents1.worldbank.org/curated/en/696121537806645724/pdf/Argentina-Escaping-Crises-Sustaining-Growth-Sharing-Prosperity.pdf>. Acesso em: 18 dez. 2023.
JAVIER Milei é eleito presidente da Argentina com pauta ultraliberal e discurso radical antipolítica. G1, 2023. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/11/19/javier-milei-e-eleito-presidente-da-argentina-com-pauta-ultraliberal-e-discurso-radical-antipolitica.ghtml>. Acesso em: 18 dez. 2023.
LAMBERTUCCI, Constanza. The daunting economic landscape choking Argentine voters. El País, 2023. Disponível em: <https://english.elpais.com/international/2023-11-18/the-daunting-economic-landscape-choking-argentine-voters.html>. Acesso em: 18 dez. 2023.
MACRI é eleito presidente da Argentina e põe fim a 12 anos de kirchnerismo. G1, 2023. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/11/macri-e-eleito-presidente-da-argentina-e-poe-fim-12-anos-de-kirchnerismo.html>. Acesso em: 18 dez. 2023.
MARTINS, André. Javier Milei eleito na Argentina: quais são as propostas do ultraliberal para a economia?. Exame, 2023. Disponível em: <https://exame.com/mundo/javier-milei-eleito-na-argentina-quais-sao-as-propostas-do-ultraliberal-para-a-economia/>. Acesso em: 18 dez. 2023.
MILEI vence na Argentina: o que Brasil tem a ganhar ou perder? BBC News Brasil, 2023. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4n5de23q59o>. Acesso em: 18 dez. 2023.
OLIVA, Ayelén. A vida e carreira de Javier Milei, o anarcocapitalista que promete abalar o sistema com mudanças radicais na Argentina. BBC News Brasil, 2023. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgl3pv8j48do>. Acesso em: 18 dez. 2023.
PÓS-DITADURA, 8 dos 12 presidentes da Argentina foram peronistas. Poder 360, 2023. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/internacional/pos-ditadura-8-dos-12-presidentes-da-argentina-foram-peronistas/>. Acesso em: 18 dez. 2023.
SAIBA quem é Sergio Massa, candidato governista à Presidência da Argentina. CNN Brasil, 2023. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/saiba-quem-e-sergio-massa-candidato-governista-a-presidencia-da-argentina/>. Acesso em: 18 Dez. 2023.
SETA, Isabel. Javier Milei: quem é e quais são as propostas do presidente eleito da Argentina. G1, 2023. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/11/19/javier-milei-quem-e-e-quais-sao-as-propostas-do-presidente-eleito-da-argentina.ghtml>. Acesso em: 18 dez. 2023.
SOPRANO, P.; BASU, R. L. Julio Pereyra – Una visión fenomenológica del peronismo como filosofía igualitaria. Revista Científica Arbitrada de la Fundación MenteClara, v. 5, 6 mar. 2020. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/339766781_Julio_Pereyra_-_Una_vision_fenomenologica_del_peronismo_como_filosofia_igualitaria>. Acesso em: 18 Dez. 2020.
SPEKTOR, Matias. Governo Milei: o que muda nas relações diplomáticas com o Brasil?. FGV, 2023. Disponível em: <https://portal.fgv.br/artigos/governo-milei-muda-relacoes-diplomaticas-brasil>. Acesso em: 18 dez. 2023.
[1] No original: “Los postulados de esta filosofía –forma de vida- política son la justicia social, la soberanía política y la independencia económica estableciéndose una doctrina para la ejecución concreta de estos postulados buscando la inclusión de los sectores marginados del consumo y el bienestar producidos por el avance de la sociedad, que solo unos pocos aprovechaban, para una mayor equidad social”.
