Forças Militares Britânicas no Quênia: Entre Cooperação e Controvérsia
Anna Cecília de Souza Rodrigues
1. Introdução:
O Quênia é um país localizado na África Oriental. Durante o período de imperialismo europeu, que se estendeu pelos séculos XIX e XX, o Quênia, assim como muitos outros países africanos, foi submetido a um processo intenso de colonização. Desse modo, esse período foi marcado pela ambição das potências europeias de expandir seus impérios e explorar os recursos naturais do continente africano. Como resultado, novas fronteiras e sistemas administrativos foram impostos, alterando profundamente a estrutura política, econômica e social da região (Visentini, 2011).
Nesse sentido, durante esse período, o Quênia tornou-se uma colônia britânica, o que trouxe transformações profundas para o Estado, impactando significativamente sua estrutura política, econômica e social (Visentini, 2011). Essas mudanças deixaram legados que ainda influenciam o país até hoje. Sob o domínio britânico, a legitimação do poder colonial foi assegurada por meio de várias medidas, incluindo:”a expropriação da terra, a entrada de novos discursos e valores, a imposição da língua inglesa e da educação formal desnorteiam a pessoa africana e desarticulam suas sociedades a ponto de conduzi-las a um estágio de loucura, morte e desolação” (Rodrigues,2014). Logo, esse processo teve um impacto duradouro e marcante na história, na antropologia, na sociologia e na política do Quênia.
Diante disso, a presença britânica no Quênia continua a ser um tema controverso. Desde 2015, um acordo de cooperação em defesa permite a presença de unidades militares britânicas no país, conhecidas como BATUK (British Army Training Unit). Essas unidades são responsáveis por auxiliar no treinamento e no desenvolvimento de capacidades para combater o terrorismo, além de promover assistência humanitária e participar de treinamentos voltados para a redução do comércio ilegal de vida selvagem (Authority of the House of Lords, 2022). Contudo, apesar do compromisso de respeitar a cultura local e de não causar danos ao Estado ou à população, surgiram sérias alegações contra os soldados britânicos do BATUK. O governo do condado de Laikipia acusou-os de violar direitos humanos, incluindo assassinatos, incêndios criminosos e explosões, cometidos contra cidadãos quenianos e seu território (Kariuki, 2023).
Essas acusações levantam questões sobre o impacto real da presença militar britânica no Quênia. Sendo assim, esta análise conjuntural procurará explorar a complexidade da presença militar britânica no Quênia, examinando não apenas as funções e os objetivos das unidades britânicas, mas também as implicações sociais e políticas de suas ações. A análise abordará a validade das acusações, o impacto das operações militares sobre a segurança e a estabilidade local, e as possíveis consequências para as relações bilaterais entre o Quênia e o Reino Unido.
2. Um Olhar Crítico Ao Acordo De Cooperação Em Defesa Entre Quênia E Reino Unido:
Em 2021, o governo do Quênia e o Reino Unido formalizaram um novo acordo de cooperação em defesa, com o objetivo de estreitar a parceria bilateral em uma série de áreas estratégicas. Este acordo visa a colaboração em políticas de segurança e defesa, promovendo uma abordagem coordenada para enfrentar ameaças e desafios de segurança. Um dos focos principais é a formação das forças armadas quenianas, com o Reino Unido oferecendo treinamento especializado para aprimorar a eficácia e as capacidades operacionais dos militares quenianos (Secretary of State for Foreign, Commonwealth and Development Affairs, 2021).
Além disso, o acordo inclui a luta contra a pirataria, especialmente nas águas costeiras do Quênia, e a promoção de atividades militares voltadas para a manutenção da paz em regiões instáveis. Também abrange iniciativas para a proteção ambiental, assegurando ações militares para a dimuição de crimes ambientais tais como a caça ilegal. A cooperação se estende ao combate ao terrorismo, com esforços conjuntos para melhorar a segurança e a resposta a ameaças terroristas (Secretary of State for Foreign, Commonwealth and Development Affairs, 2021).
Nesse contexto, é preciso olhar de uma maneira mais crítica essa cooperação. Voltando à história da colonização britânica no Quênia, é crucial lembrar que a Rebelião Mau Mau, um movimento de resistência anticolonial que ocorreu entre 1952 e 1960, foi brutalmente reprimida pelas forças britânicas. Essa repressão deixou um legado de trauma e ressentimento que persiste até hoje. O historiador Huw Bennett, em seu livro Fighting the Mau Mau: The British Army and Counter-Insurgency in the Kenya Emergency, argumenta que, embora a campanha militar britânica tenha evitado uma guerra genocida total, ela se baseou em táticas coercitivas e violentas contra a população civil, incluindo deslocamentos forçados, espancamentos, estupros, tortura e execuções sumárias (Bennett, 2012).
A relação entre o Quênia e o Reino Unido pode ser examinada sob a ótica da teoria da dependência. Essa teoria sustenta que a estrutura do sistema internacional, criada durante o período colonial, ainda mantém a dependência econômica e política dos países que foram colonizados. Assim, o desenvolvimento dos países em desenvolvimento não é determinado apenas por condições econômicas, mas também por fatores sociais, institucionais e ideológicos. Desse modo, o Quênia, apesar de sua independência política, continua a ser influenciado economicamente pelo Reino Unido e por outras nações ocidentais. O Acordo de Cooperação em Defesa de 2021 pode ser interpretado como um mecanismo que reforça essa dependência, limitando a autonomia do Quênia em questões de segurança e defesa e perpetuando um relacionamento desigual (Duarte; Graciolli, s.d).
3. Alegações de Abusos e Danos Ambientais Causado por Soldados do BATUK
O Acordo de Cooperação entre o Reino Unido e o Quênia estabelece que as forças militares visitantes devem cumprir e respeitar a Constituição da nação anfitriã em todos os momentos, e que, em certos casos, podem ser submetidas a julgamento. Dessa forma, a presença militar britânica no Quênia, além das implicações políticas e econômicas já discutidas, também foi marcada por sérias alegações de abusos de direitos humanos. As fontes consultadas revelam um padrão preocupante de violações que incluem assassinato, abuso sexual, negligência e abandono, além de danos ambientais e à propriedade.
O assassinato de Agnes Wanjiru em 2012 é o caso mais emblemático. A jovem queniana foi encontrada morta após ter sido vista com soldados britânicos. Apesar de um inquérito queniano ter apontado soldados britânicos como responsáveis, ninguém foi acusado até o momento (The Guardian, 2023; Lawal, 2024; Kigo, 2024). Além disso, diversas mulheres quenianas acusam soldados britânicos de estupro e outras formas de violência sexual. Em 2021, um soldado foi demitido e multado por levantar a saia de uma mulher queniana em público. A impunidade em relação a esses crimes tem sido motivo de grande indignação entre a população local (Lawal, 2024).
Há também relatos de crianças quenianas abandonadas por seus pais britânicos, soldados que serviam na BATUK. Essas crianças enfrentam dificuldades socioeconômicas e discriminação por sua ascendência mista, e muitas mães lutam por reconhecimento e apoio financeiro para seus filhos (Madowo, 2024). As atividades militares britânicas também têm sido associadas a danos ambientais, como incêndios florestais causados por produtos químicos letais utilizados nos treinamentos dos exércitos, como fósforo branco e a presença de bombas não detonadas em áreas acessíveis ao público, colocando em risco a vida da população local (The Guardian, 2023; Lawal, 2024; Kigo, 2024).
Perante essas alegações, durante a primeira semana de junho de 2024, o Quênia iniciou audiências públicas para apurar esses crimes. Dessa maneira, os legisladores quenianos irão recolher provas dos depoimentos, avaliá-los e dialogar com o governo britânico acerca de medidas reparatórias (Lawal, 2024)
Esses casos revelam um padrão preocupante de desrespeito à vida e à dignidade da população queniana por parte de alguns soldados britânicos. É evidente a violação de direitos humanos fundamentais, como o direito à vida e à segurança, conforme estabelecido pelo Artigo 3, bem como o direito à proteção da honra e da reputação, de acordo com o Artigo 12 (Assembleia Geral das Nações Unidas, 1948). Sendo assim, a persistência dessas violações e a aparente impunidade dos perpetradores geram indignação e ressentimento, prejudicando a imagem do Reino Unido no Quênia e colocando em xeque a legitimidade da presença militar britânica no país.
4. Considerações Finais
A presença militar britânica no Quênia, embora justificada por objetivos como o combate ao terrorismo e a promoção da estabilidade regional, revela uma complexa teia de relações históricas, políticas e sociais que demandam uma análise crítica e aprofundada. O legado colonial, marcado pela violência e pela exploração, ainda ecoa nas relações entre os dois países. A persistência de desigualdades socioeconômicas e a dependência do Quênia em relação ao Reino Unido, evidenciada pela teoria da dependência, lançam sombras sobre a narrativa de parceria e cooperação.
As graves alegações de abusos de direitos humanos cometidos por soldados britânicos no Quênia, incluindo assassinato, violência sexual, negligência e danos ambientais, aprofundam ainda mais essa desconfiança. A impunidade que frequentemente acompanha esses crimes reforça a percepção de injustiça e desigualdade, alimentando o ressentimento da população queniana. Diante desse cenário, a legitimidade da presença militar britânica no Quênia é questionável. A retórica de colaboração e apoio mútuo contrasta com a realidade de violações de direitos e a perpetuação de relações de poder desiguais. A busca por soluções efetivas para os desafios de segurança na região deve ser acompanhada de um compromisso inegociável com a justiça, a transparência e o respeito aos direitos humanos.
É fundamental que o Reino Unido reconheça e assuma a responsabilidade pelos crimes cometidos por seus soldados no Quênia, garantindo que os perpetradores sejam levados à justiça e que as vítimas recebam reparação adequada. Além disso, é essencial que a cooperação em defesa seja reavaliada, buscando um modelo mais equilibrado e respeitoso, que promova a autonomia e o desenvolvimento do Quênia, em vez de perpetuar sua dependência. A construção de um futuro de relações justas e equitativas entre o Quênia e o Reino Unido exige um esforço conjunto para superar o legado colonial e construir uma parceria baseada no respeito mútuo, na igualdade e na solidariedade. Somente assim será possível alcançar a paz, a segurança e o desenvolvimento sustentável para ambos os países.

Fonte: Thomas Mukoya/AP Photo, 2017
Referências Bibliográficas
Assembleia Geral das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em: 10 sep. 2024
Authority of the House of Lords. Scrutiny of international agreements: UK-Kenya Defence Cooperation Agreement. Disponível em:<https://committees.parliament.uk/publications/8522/documents/86248/default/>. Acesso em: 01 sep. 2024.
Bennett Huw. Fighting the Mau Mau: The British Army and Counter-Insurgency in the Kenya Emergency. Cambridge University Press; 2012
Duarte, Pedro; Graciolli, Edílson. A Teoria Da Dependência: Interpretações Sobre O (Sub)Desenvolvimento Na América Latina. Disponível em:< https://unicamp.br/cemarx/anais_v_coloquio_arquivos/arquivos/comunicacoes/gt3/sessao4/Pedro_Duarte.pdf>. Acesso em: 05 sep. 2024
Kariuki , Patrick. Inside the Defence Agreement between Kenya and UK. Disponível em:< https://kenyanforeignpolicy.com/inside-the-defence-agreement-between-kenya-and-uk/>. Acesso em: 01 sep. 2024.
Kigo, Gladys. Kenya hears ‘heartbreaking’ claims against UK soldiers. Disponível em:<https://www.bbc.com/news/articles/cedd92vn5lko>. Acesso em: 08 sep. 2024
Lawal, Shola. Why is Kenya investigating alleged abuse by UK soldiers?. Disponível em:<https://www.aljazeera.com/news/2024/6/1/why-is-kenya-investigating-alleged-abuse-by-uk-soldiers>. Acesso em: 08 sep. 2024
Madowo, Larry. The British Army trains in Kenya. Many women say soldiers raped them and abandoned children they fathered. Disponível em:<https://www.cnn.com/2024/06/17/africa/british-army-abandoned-children-kenya-intl/index.html>. Acesso em 08 sep. 2024
Rodrigues, Ângela. Pétalas de sangue: natureza, violência e redenção no Quênia pós-colonial Acta Scientiarum. Language and Culture, vol. 36, núm. 3, julio-septiembre, 2014, pp. 275-281
Secretary of State for Foreign, Commonwealth and Development Affairs. Agreement between the Government of the United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland and the Government of the Republic of Kenya concerning Defence Cooperation. Disponível em: <https://assets.publishing.service.gov.uk/media/6196720a8fa8f5037d67b69b/CS_Kenya_1.2021_Defence_Cooperation_Agreement.pdf>. Acesso em: 05 sep. 2024.
The Guardian. Kenya launches inquiry into claims of abuse by British soldiers at training unit. Disponível em: <https://www.theguardian.com/global-development/2023/aug/14/kenya-launches-inquiry-into-claims-of-abuse-by-british-soldiers-at-training-unit>. Acesso em: 08 sep. 2024
Visentini, Paulo. O Livro Na Rua: Quênia. Disponível em: <https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/loc_pdf/947/1/quenia>. Acesso em: 01 sep. 2024.
