A precarização do sistema prisional brasileiro: uma análise pela perspectiva de necropolítica de Mbembe
Por Janaína Martins Vilaça
Introdução
A temática dos sistemas prisionais e sua precarização no que diz respeito a sua estrutura e a garantia de dignidade humana é um problema que assola todo o globo. São diversas as dificuldades que assolam essa estrutura no hodierno, principalmente quando se vê o crescimento cada vez mais rápido e elevado da população prisional. Dentre os diversos países, o Brasil é um dos que mais sofre com complicações relacionados a esse sistema, principalmente no que tange ao estabelecimento de políticas públicas e entrega serviços de qualidade que possam assegurar as necessidades básicas dos cidadãos nele presentes.
Dessa forma, o presente trabalho pretende discutir sobre as condições precárias que existem no sistema carcerário brasileiro e como a negligência estatal afeta diretamente os cidadãos negros e pardos, que compõem a maior porcentagem da população carceraria no país. Ademais, será feita uma análise dessa situação com a garantia de direitos fundamentais em conjunto com a teoria de necropolítica, fundada pelo filosofo e cientista política camaronês, Achille Mbembe.
O sistema carcerário brasileiro
Primeiramente, é necessário compreender que o sistema carcerário brasileiro vem crescendo cada vez mais com o passar dos anos, só em 2023 se teve um aumento de 0,8% segundo o Senappen (Senappen, 2024). Quando se faz um recorte de cor em relação aos presos atuais, percebe-se que a maioria é composta por pessoas negras, um contexto que perdura no Brasil desde os primórdios do estabelecimento dos sistemas de punição no país e não demonstra muitos avanços até o ano de 2024, na qual de acordo com Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2024), pessoas pretas representam um total de 470 mil indivíduos (70%), dos 850 mil presos no país atualmente (Ribeiro, 2024). Essa realidade reflete, dentre uma série de fatores, o grande racismo presente nas relações sociais, fruto de um processo de colonização e escravidão presentes na história do país e que gera reflexos atuais nas dimensões políticas, jurídicas, sociais, econômicas e culturais.
Nesse sentido, o que se nota é que a discriminação racial na realidade brasileira, possui dentre outras características o fator estrutural. Ou seja, a falta de ações que garantissem a integração de negros e indígenas na sociedade e no mercado de trabalho desde os tempos coloniais, associado com as ideias de inferioridade em relação as pessoas negras, que foram sendo construídas socialmente ao longo do tempo, acabaram por produzir um corpo social que possui uma estrutura racista. Esse cenário é evidenciado pela forma discriminatória, na qual a maioria dos policiais pensam e agem em relação as abordagens e tratamento de pessoas negras (Freitas, 2021).
Partindo disso, outro elemento que pode- se citar em relação ao sistema prisional brasileiro é a temática de garantia de direitos. A maioria dos países, incluindo o Brasil, ratificaram uma serie de acordos que exigem o cumprimento dos direitos fundamentais. Esses são frutos de tratados internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, que determina normas e diretrizes a serem seguidos pelos países que o aderiram de proteger e garantir os direitos, considerados inalienáveis dos seres humanos. Dessa maneira, ficou-se acordado que todas as pessoas possuem acesso aos seus direitos preservando assim sua dignidade, sem o estabelecimento de hierarquias. Além disso, cabe aos Estados o estabelecimento de políticas públicas e instrumentos legais que possam garantir o cumprimento dos direitos humanos em toda a sociedade (UNICEF, 2015).
Foi baseando-se nisso que a Constituição Federal Brasileira de 1988 assegura em seu artigo 5º a igualdade de todos os cidadãos brasileiros perante a lei sem qualquer discriminação, incluindo aqueles privados de liberdade. Para mais, no mesmo artigo, são definidos os seguintes termos quanto a população prisional.
XLVIII – a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado;
XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral (Brasil, 1998)
Mais especificamente quanto a população carcerária, o aparato jurídico brasileiro estabeleceu a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984), responsável por assegurar os direitos básicos e fundamentais dos presos e sua dignidade. Ela também especifica a responsabilidade por parte do Estado de tanto garantir com que esses direitos sejam cumpridos, como prestar assistência social, jurídica e médica aos presos (Barros, Moura, 2022).
Entretanto, essa não é a realidade vista no cenário brasileiro atual, visto que há existência de extrema negligência que ocorre aos direitos dos detentos. Dentre alguns problemas, tem-se primeiramente a superlotação, na qual segundo dados da (Secretária Nacional de Políticas Penais, 2024) demonstram que o Brasil obteve um déficit de 166,7 mil vagas em 2023, ou seja, atualmente existem 649,6 mil pessoas presas em 482,9 mil lugares disponíveis (Senappen,2024). Quando se associa essa realidade com a falta de infraestrutura, o que se dá é a transformação dos presídios em locais de ampla aglomeração de pessoas em espaços pequenos e que não possuem estrutura necessária e adequada (Machado, Guimarães, 2014).
Ademais, a falta de fornecimento de serviços de saúde básica também é outra problemática, visto que a população em situação de cárcere enfrenta falta de médicos e medicamentos e péssimas condições de saúde, como escassez de produtos de higiene básica. Associado a isso, as cozinhas nos presídios também estão sem manutenção e não possuem áreas de armazenamento correto de alimentos. Ao todo, essa realidade de precariedade e falta de assistência e cuidado por parte do Estado contribui para que haja um aumento na violência dentro dos sistemas prisionais, devido as condições de superlotação, assim como o aumento da proliferação de doenças e até mortes pela falta de condições de saúde básica (Machado, Guimarães, 2014).
Tendo em vista essa conjuntura, fica notório uma deficiência por parte do aparelho Estatal em estabelecer um ambiente digno e respeitoso no sistema prisional. Nessa perspectiva, é possível analisar essa desconsideração por parte do governo segundo a noção de necropolítica do filósofo Mbembe. Seu conceito foi baseado na ideia de poder do autor Foucault, que entende que ele pode ser difundido e estabelecido por meio das relações sociais entre pessoas e instituições.
Nesse âmbito, o biopoder estaria relacionado à dispositivos responsáveis por controlar as populações, por meio de instituições sociais e conhecimento, cujo qual o discurso seria um instrumento de controle dos corpos e das condutas consideradas validas na sociedade. Esse discurso pode vir tanto na forma de falas, afirmações, como também através de leis e políticas públicas de caráter discriminatório. Partindo disso, Mbembe cunhou o conceito de necropolítica, que segundo a pesquisadora Mariana Castro (2020) é definido da seguinte forma.
“Necropolítica é a capacidade de estabelecer parâmetros em que a submissão da vida pela morte está legitimada. Para Mbembe, a necropolítica não se dá só por uma instrumentalização da vida, mas também pela destruição dos corpos. Não é só deixar morrer, é fazer morrer também […].”
Nesse sentido, segundo o autor, seria por meio dessas políticas de necropolítica, que o Estado possuiria a capacidade de decidir “quem irá viver e quem irá morrer”, negligenciando o acesso de direitos e necessidades básicas que garantam a vida digna das pessoas.
Dessa forma, o racismo estrutural do Estado associado a negligência no sistema carcerário brasileiro se configura como uma forma de necropolítica, visto que o Estado estaria realizando ações que “matam” a população negra nos presídios. Isso ocorre devido ao acesso escasso aos serviços de saúde, responsável por ocasionar a morte de vários detentos por disseminação de doenças, sendo 62% das causas de óbito segundo dados de coletado em 2023 pelo Conselho Nacional de Justiça (Agência Brasil, 2023).
Ademais, vale frisar que o ato de matar também pode ser estabelecido de forma simbólico, na qual “[…]consideramos que o ato de matar poderia estar associado ao homicídio, mas também à exposição à morte, à replicação dos riscos de morte, à invisibilização, expulsão, estigmatização e exclusão social de algumas populações […] (Morera, Padilha, 2018, p.2). Dessa forma, o descaso estatal ao deixar a população negra vivendo em condições subumanas nos presídios, também é uma forma de destruir esse grupo, que ficam em um status, nas palavras de Mbembe, de “morto-vivo”, sem acesso a seus direitos e consequentemente a sua dignidade, o que deveria ser um dever do Estado.
Conclusão
Portanto, a partir da discussão realizada acerca do sistema prisional atual do país, nota-se que a maioria da população carceraria no Brasil é composta por negros e pardos, o que reflete diretamente a uma estrutura racista que foi construída desde o período da colonização. Consequentemente, o Estado brasileiro, também pautado por esse pensamento, acaba por estabelecer ações, definidas pelo filosofo Mbembe, como necropolítica, que acaba por desumanizar e negligenciar a população negra no sistema carcerário, visto que não oferece acesso aos serviços e necessidades básicas que garantem a vida e a dignidade desse grupo. Dessa forma, é necessário que haja o estabelecimento de políticas públicas que sejam capazes de reverter o descaso e a discriminação existente com a população carceraria e que respeite e garanta os direitos à todos os cidadãos brasileiros independente de sua cor, situação de liberdade.

Fonte imagem: CNJ/Agência Brasil
Referências
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Morera, Jaime; Padilha, Maria. NECROPOLÍTICA TRANS: DIÁLOGOS SOBRE DISPOSITIVOS DE PODER, MORTE E INVISIBILIZAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE. 2018. Disponível em< https://www.scielo.br/j/tce/a/TYJ397gFMBrfCcdch9JZdtf/?format=pdf&lang=pt>
Ribeiro, Renato. Estudo: 70% da população carcerária no Brasil é negra. Agência Brasil. 2024. Disponível em< https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/direitos-humanos/audio/2024-07/estudo-70-da-populacao-carceraria-no-brasil-enegra#:~:text=Dos%20mais%20de%20850%20mil,Anu%C3%A1rio%20Brasileiro%20de%20Seguran%C3%A7a%20P%C3%BAblica.>
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