A Crítica Crise Humanitária do Sudão do Sul
Por Ana Clara Miyoshi Costa
Introdução
A história do Sudão do Sul, localizado na África Oriental, tem sido marcada por diversos conflitos desde antes mesmo de sua consolidação como um território independente, dada a grande variedade de povos que residem no local. Nesse viés, tal cenário conflituoso encontra sua origem na rivalidade existente entre tribos africanas e árabes em busca do poder da região. Os primeiros estavam situados majoritariamente em Darfur, estado que hoje compõe o território do oeste do Sudão, e tinham suas casas invadidas pelos segundos, os quais se organizavam em grupos nômades vindos tanto do norte quanto do sul, visando fugir do ambiente do deserto do Saara e conquistar terras férteis para garantia de subsistência. Com o decorrer do tempo, novos conflitos eclodiram, levando a discussões internacionais acerca da existência de genocídio no local e a necessidade de preservar a vida dos civis (Rapoport et al., 2023).
O país então passou por um processo de independência, concluído em 2011, visto que anteriormente seu território era acoplado à República do Sudão. Todavia, a medida não foi suficiente para pôr um fim às disputas e instaurar a paz: uma violenta guerra civil assolou a região entre 2013 e 2018, e suas consequências negativas impactam o cotidiano da sociedade até o hodierno. Em adição a isso, desastres naturais – como intensas inundações advindas das chuvas e secas – e as críticas características socioeconômicas locais colocam a população sul-sudanesa em uma posição ainda mais vulnerável (Rapoport et al., 2023).
Assim, torna-se importante a apresentação de alguns dados relevantes: o Sudão do Sul se classifica como um dos países menos desenvolvidos do mundo e seu Índice de Desenvolvimento Humano é 0,385 (Country Economy, s.d.); no período de 2009 a 2021, a taxa média de inflação do país foi de 77,6% ao ano (Dados Mundiais, 2021); o índice de corrupção local é 13, considerado como muito ruim pelos especialistas (Dados Mundiais, 2023); aproximadamente, 6000 indivíduos se refugiaram do país em 2022 (Dados Mundiais, 2022) e cerca de 60% da população vem enfrentando uma severa insegurança alimentar (Nações Unidas, 2022).
Mediante ao exposto, o Sudão do Sul possui uma das mais preocupantes crises humanitárias do mundo desde abril de 2023, segundo o Escritório para Assuntos Humanitários da ONU (OCHA). Nesse âmbito, mais informações acerca de sua história e consequências do conflito serão discutidas a seguir.
A História do Sudão do Sul
Até o século VI, o território do Sudão do Sul era conhecido como “Núbia” e ocupado por três diferentes reinos. Na época, a maioria de sua população estava no processo de se converter ao cristianismo, influenciados pelo clero do Egito e, até então, o contato com árabes estava restrito às trocas comerciais. Entretanto, tal circunstância sofreu significativas mudanças a partir do século VII, tendo em vista que, no ano de 642, os árabes muçulmanos foram até Núbia e se instauraram lá, iniciando assim uma “era de arabização”. No século XIV, o primeiro príncipe núbio muçulmano foi coroado e, logo em seguida, o cristianismo perdeu a posição de religião predominante no local, que passou a se organizar através de protetores árabes, marcando a grande influência destes que vigorava na região (Rapoport et al., 2023).
Posteriormente, no século XIX, os britânicos aliaram-se aos egípcios e invadiram a região em referência, visando conquistar acesso ao Canal de Suez, a maior fonte de renda petrolífera existente no mundo. Desse modo, tal aliança reforçou a elite árabe existente, concentrada na capital Cartum e enfatizou as diferenças regionais (Rapoport et al., 2023).
A partir da segunda metade do século XX, a cooperação anglo-egípcia negociou a independência do território sudanês e, então, diversas guerras civis travadas por minorias contra as determinações autoritárias impostas pela elite árabe emergiram. Entre 1960 e 1980, tribos árabes itinerantes – muitas das quais fugiam do deserto do Saara – atacaram intensivamente grupos étnicos sudaneses, em busca de terras férteis para plantação, envolvendo todo o ambiente em questão no conflito. Já no fim do século, períodos de seca e crises financeiras incentivam a imigração de árabes para a região e, em adição a isto, o presidente da época, Al-Bashir, fortaleceu o poder do povo árabe, colaborando para a intensificação dos conflitos no Sudão (Rapoport et al., 2023).
Dessa forma, a tensão se prorrogou até o século XXI, quando em abril de 2003 um processo de genocídio iniciou-se na região: o Exército de Libertação do Povo do Sudão (SPLA – sigla em inglês) ecomeça a exigir a separação dos poderes árabes entre os africanos de Dafur. Assim, o governo criou a Força de Defesa Popular (FDP) e, por conseguinte, iniciou-se uma limpeza étnica no país (Rapoport et al., 2023).
Mediante a tantos conflitos, o Movimento de Libertação do Povo do Sul (SPLM – sigla em inglês) introduziu uma luta em busca de uma maior autonomia e equilíbrio para o território. Desse modo, as autoridades buscaram pela independência das regiões e, então, em 09 de julho de 2011, uma votação ocorreu no local, registrando 99% dos votos a favor da separação dos Estados. Por fim, a República do Sudão se dividiu, originando a República do Sudão do Sul, o mais novo país existente no sistema internacional (Rapoport et al., 2023).
A Perpetuação dos Conflitos e suas Consequências
Quando a independência do Sudão do Sul foi proclamada, um sentimento de esperança preencheu não só a população, como também Estados próximos, organizações internacionais e a África como um todo. Contudo, o país continuou a enfrentar diversas dificuldades e, por conseguinte, sua situação se encontra ainda mais crítica na atualidade: a violência e corrupção locais estão exorbitantes, uma crise econômica preocupa tanto a nação quanto seus parceiros comerciais, a crise de refugiados está em níveis alarmantes e a insegurança alimentar e desnutrição na região atingiu os piores níveis desde 2011, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU) (Presse, 2021).
Posto isto, logo no início da era independente, o cargo de presidente e vice-presidente do Sudão do Sul eram compostos respectivamente por Salva Kiir – da etnia dinka – e Riek Machar – da etnia nuer. Logo, alguns fatores referentes à administração e diplomacia de ambos podem ser vistos como o princípio da Guerra Civil, ocorrida entre 2013 e 2018. Em primeiro lugar, Salva Kiir tomou a liberdade de tomar decisões com base na recomendação de conselheiros de sua cidade natal, ignorando o gabinete do governo e criando discórdias na política interna. Em segundo lugar, o governo passou a cometer crimes contra os direitos humanos, revoltando a população geral e, principalmente, o SPLM. Em terceiro lugar, em meados de 2013, Machar e outros líderes governamentais foram demitidos por Kiir e, então, o ex-presidente acusou o governo em questão de possuir um caráter ditatorial (Universidade Federal de Pernambuco, 2021).
Assim, o segundo semestre de 2013 foi marcado por disputas políticas entre Kiir e Macha, ganhando maiores proporções quando o exército nacional e as forças opositores do governo se envolveram na situação. A grande violência e massacres advindos dessas relações transformaram o Estado em uma cenário de Guerra Civil, sendo pertinente pontuar que, apesar das principais motivações para a guerra terem um caráter político e de disputa de poder, há como pano de fundo tensões derivadas da diversidade étnica local (Universidade Federal de Pernambuco, 2021).
Nesse viés, cerca de 400.000 seres humanos foram mortos em conflitos envolvendo o exército do governo e sua oposição, entre dezembro de 2013 e agosto de 2015. O período foi marcado por inúmeros crimes contra a humanidade cometidos, violência sexual contra mulheres e crianças, propriedades e bens de civis saqueados, alé, de preconceitos étnicos. Ademais, foi constatado, entre 2017 e 2019, que ambas as partes envolvidas no conflito utilizaram a fome dos civis como arma de guerra, para assim, pressionar o adversário. Em 2018, o governo sul-sudanês e seu adversário foram coagidos por atores internacionais a estabelecerem um acordo de paz no país pelo bem da população, passando então a vigorar um cessar-fogo (Universidade Federal de Pernambuco, 2021).
Entretanto, episódios de extrema violência continuaram sendo registrados no Estado e o povo sofre diretamente com as consequências até a atualidade. O atual conflito sul-sudanês se caracteriza por um jogo político entre grupos armados, os quais buscam fazer alianças para exercerem um poder sobre as questões étnicas e regionais. Nesse sentido, tais grupos aterrorizam as populações locais de maneira extremamente violenta, através de massacres, abusos, incendeio de vilarejos e saques, no intuito de controlarem a política e a composição étnica existente no território (Martins, 2023).
Assim, a crise de refugiados do Sudão do Sul já se configura como uma das maiores existente em todo o continente: há cerca de 2 milhões deslocados internos e uma quantia maior que esta de refugiados, sendo a maioria destes mulheres e crianças em situações excessivamente vulneráveis, sendo recebidos principalmente pela Uganda, Etiópia e Sudão (ACNUR, 2020). Depoimentos de civis sobreviventes relatam assassinatos, ferimentos, violência de gênero, sequestros, extorsão, roubos e queima de propriedades, de acordo com Arafat Jamal, representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Além disso, em junho de 2022, o Programa Mundial de Alimentos enfrentou sérias dificuldades para enviar alimentação para as pessoas necessitadas por falta de recursos, fomentando um estado de insegurança alimentar que vivido pela população, que já estava crítico anteriormente: mais de 60% da população sul-sudanesa passou pela insegurança alimentar em 2023 e, sem o apoio do programa, o risco de fome aumentou para mais 1,7 milhão de pessoas (Nações Unidas, 2022).
Conclusão
Nesse sentido, até mesmo o supremo líder da Igreja Católica, Papa Francisco, fez um apelo no início de 2023 aos dirigentes do Sudão do Sul. O líder solicitou que novos avanços em favor da paz ocorram, em prol de todos aqueles habitantes que tanto sofrem (Agência Lusa, 2023).
Por meio de tudo o que foi exposto, fica visivelmente clara a gravidade da crise humanitária na República do Sudão do Sul e a necessidade de discutir sobre o assunto. Encontra-se proclamado no artigo 3o da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) que todos têm o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, sendo assim, as autoridades sul-sudanesas, juntamente com a comunidade internacional, devem recorrer a uma solução para o caos no país, enfrentado por tantos inocentes.

Fonte: Finbarr O’Reilly/VII Photo
Referências
AGÊNCIA LUSA. Papa pede a dirigentes do Sudão do Sul um “novo avanço” em favor da paz. Observador, 04 fev. 2023. Disponível em: https://observador.pt/2023/02/04/papa-pede-a-dirigentes-do-sudao-do-sul-um-novo-avanco-em-favor-da-paz/. Acesso em: 13 jul. 2023.
ACNUR. Sudão do Sul. ACNUR Brasil, 31 jul. 2020. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/sudao-do-sul/. Acesso em: 13 jul. 2023.
COUNTRY ECONOMY. Sudão do Sul – Índice de Desenvolvimento Humano. Country Economy, s.d. Disponível em: https://pt.countryeconomy.com/demografia/idh/sudao-do-sul. Acesso em: 13 jul. 2023.
DADOS MUNDIAS. Evolução das taxas de inflação no Sudão do Sul. Dados Mundiais, 2021. Disponível em: https://www.dadosmundiais.com/africa/sudao-do-sul/inflacao.php. Acesso em: 13 jul. 2023.
DADOS MUNDIAIS. Pedidos de asilo e refugiados do Sudão do Sul. Dados Mundiais, 2022. Disponível em: https://www.dadosmundiais.com/africa/sudao-do-sul/refugiados.php. Acesso em: 13 jul. 2023.
DADOS MUNDIAIS. Sudão do Sul. Dados Mundiais, 2023. Disponível em: https://www.dadosmundiais.com/africa/sudao-do-sul/index.php. Acesso em: 13 jul. 2023.
MARTINS, Rosa. Sudão do Sul: a violência sexual como principal arma de guerra. Vatican News, 18 dez. 2023. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/mundo/news/2023-12/sudao-do-sul-a-violencia-sexual-como-principal-arma-de-guerra.html. Acesso em: 18 set. 2024.
NAÇÕES UNIDAS.Falta de financiamento leva PMA a suspender entrega de alimentos no Sudão do Sul. ONU News, 14 jun. 2022. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2022/06/1792262. Acesso em: 13 jun. 2023.
NAÇÕES UNIDAS. Violência no Sudão do Sul continua deslocando milhares de pessoas. ONU News, 08 dez. 2022. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2022/12/1806457. Acesso em: 13 jul. 2023.
PRESSE, France. Sudão do Sul completa 10 anos de independência; história do país é marcada por guerras e crises devastadoras. G1 Globo, 09 jul. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/07/09/sudao-do-sul-completa-10-anos-de-independencia-historia-do-pais-e-marcada-por-guerras-e-crises-devastadoras.ghtml. Acesso em: 13 jul. 2021.
RAPOPORT, Izabel Duva; LOURENÇO, Artur. DA CRISE A DIVISÃO: ENTENDA A SITUAÇÃO DO SUDÃO DO SUL. Aventuras na História, 02 abr. 2023. Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/da-crise-divisao-entenda-a-situacao-do-sudao-do-sul.phtml. Acesso em: 13 jul. 2023.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO. 10 anos de Sudão do Sul: da independência à guerra civil. Observatório de Crises Internacionais, 02 ago. 2021. Disponível em: https://sites.ufpe.br/oci/2021/08/02/10-anos-de-sudao-do-sul-da-independencia-a-guerra-civil/. Acesso em: 13 jul. 2023.
