plantação de coca no Peru

Texto Conjuntural Países Amazônicos #15

COCA CULTIVADA E TRÁFICO DE DROGAS NO PERU: UM DESAFIO ENTRE DESENVOLVIMENTO E CONTROLE ESTATAL

03/12/2024

Por: Isabela Buters Godinho

O cultivo de coca no Peru representa uma questão central e multifacetada nas dinâmicas políticas, econômicas e sociais do país, especialmente desde o século XX. Enquanto a coca é uma planta nativa da região andina, profundamente enraizada nas práticas culturais e medicinais de comunidades indígenas, sua crescente associação ao narcotráfico transformou-a em um símbolo de conflito entre tradições locais e pressões globais. A produção de cocaína, destinada ao mercado internacional, projeta essa planta para o centro de debates sobre segurança nacional, desenvolvimento econômico e direitos humanos, criando um cenário de desafios interligados.

A prática ancestral do cultivo de coca remonta às civilizações pré-colombianas na região andina, onde as folhas de coca desempenhavam papéis centrais em contextos culturais, espirituais e medicinais. Considerada sagrada por muitas comunidades indígenas, a coca era usada em rituais religiosos, como um símbolo de conexão com a natureza e os deuses, além de servir como uma ferramenta para resistir aos efeitos da altitude e da fome. No período colonial, os colonizadores espanhóis permitiram o cultivo de coca devido à sua utilidade para os trabalhadores indígenas nas minas, consolidando seu papel como uma cultura de subsistência. Já no século XX, o uso tradicional da coca passou a ser eclipsado pela sua utilização como matéria-prima para a produção de cocaína, especialmente à medida que a demanda global por drogas ilícitas crescia. O cultivo da planta se expandiu para regiões mais remotas, onde a presença estatal era limitada, transformando a coca em uma mercadoria estratégica para economias ilegais. Essa transição do uso tradicional para o cultivo voltado para o narcotráfico reflete o impacto da globalização e das dinâmicas de mercado que pressionam as práticas locais, alterando o equilíbrio entre a preservação cultural e as pressões externas.

Durante os anos 1980 e 1990, organizações insurgentes como o Sendero Luminoso, um movimento maoísta que buscava a derrubada do governo peruano, e o Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA) passaram a explorar o cultivo e tráfico de cocaína como uma fonte de financiamento. Essas organizações cobravam “impostos revolucionários” de agricultores ou diretamente gerenciavam rotas de tráfico para financiar suas operações. O Sendero Luminoso, em particular, aproveitou o isolamento de regiões como o Vale dos Rios Apurímac, Ene e Mantaro (VRAEM) para estabelecer uma presença significativa, conectando-se ao narcotráfico e ampliando seu controle territorial. A forma como essas facções insurgentes utilizaram o cultivo de coca destaca a convergência entre movimentos políticos radicais e as redes criminosas do narcotráfico, além de revelar a vulnerabilidade das regiões mais isoladas do país, onde a presença do Estado é limitada.

O Vale dos Rios Apurímac, Ene e Mantaro (VRAEM) é emblemático dessa problemática. Localizado em uma área remota e de difícil acesso, o VRAEM concentra a maior produção de coca do país e enfrenta desafios estruturais que vão além do narcotráfico. A região não apenas abriga plantações destinadas à produção de cocaína, mas também é palco de atividades de facções criminosas e remanescentes insurgentes que exploram a vulnerabilidade econômica e social da população local. Dados regionais revelaram que a coca representa 55% do Valor Bruto da Produção Agrícola (VBPA), superando cultivos lícitos como café (16%) e cacau (12%). Essa predominância econômica destaca a dificuldade de implementar políticas de diversificação, já que a coca continua sendo a opção mais rentável para muitas famílias. A falta de infraestrutura e a escassez de alternativas de mercado tornam a dependência da coca uma realidade difícil de combater, e as políticas de desenvolvimento alternativo se veem limitadas pela falta de efetividade na promoção de culturas alternativas sustentáveis (PEDRAGLIO, 2017).

Principais cultivos no VRAEM (%VBPA).

(PEDRAGLIO, 2017).

Embora o governo peruano tenha adotado estratégias de erradicação forçada, como a destruição manual de plantações e operações policiais e militares, combinadas com programas de desenvolvimento alternativo que promovem o cultivo de produtos lícitos como café e cacau, os resultados têm sido limitados. A substituição da coca por culturas lícitas enfrenta barreiras significativas, como o isolamento geográfico, a falta de infraestrutura, e o controle de territórios por organizações criminosas. Apesar de iniciativas como incentivos financeiros, programas de capacitação, microcréditos e melhorias na infraestrutura rural, essas ações têm sido insuficientes para reduzir a dependência econômica das comunidades em relação à coca. Além disso, a repressão direta ao cultivo muitas vezes ignora as necessidades das comunidades locais, gerando tensões que comprometem a eficácia das políticas estatais e a confiança no governo. A limitação das políticas de erradicação é, assim, um reflexo das complexas dinâmicas sociais e econômicas da região, onde a coca continua sendo uma das poucas fontes de renda para os agricultores. A resistência local a essas políticas também ilustra as falhas na implementação de alternativas que sejam culturalmente e economicamente viáveis para essas populações (UNODC 2023).

No cenário internacional, o Peru conta com o apoio de potências como os Estados Unidos para combater o narcotráfico, seja por meio de ajuda financeira ou do treinamento de suas forças de segurança. Um exemplo é o Plano Colômbia, uma iniciativa lançada em 2000 com o objetivo de combater o tráfico de drogas e grupos insurgentes na Colômbia, mas que serviu de modelo para ações similares no Peru. Embora o Plano Colômbia tenha proporcionado avanços no combate ao tráfico, como a erradicação forçada de plantações de coca e o fortalecimento das forças de segurança, ele foi amplamente criticado por seus impactos negativos, incluindo a destruição de meios de subsistência para agricultores e os danos ambientais causados pelo uso de herbicidas. Essas abordagens têm sido questionadas por priorizar ações repressivas em detrimento de soluções que promovam desenvolvimento sustentável e que considerem as necessidades das comunidades locais. A pressão internacional para conter o narcotráfico reflete também o impacto global da cocaína, que alimenta crises de saúde pública e violência em mercados consumidores, como Europa e América do Norte, intensificando as demandas por uma resposta eficaz nos países produtores.

A persistência do cultivo de coca no Peru evidencia as tensões entre demandas locais e pressões globais, em um contexto onde o tráfico de drogas movimenta bilhões de dólares. Soluções sustentáveis exigem não apenas o fortalecimento das instituições estatais, mas também o desenvolvimento de alternativas econômicas que respeitem as tradições culturais e ofereçam caminhos viáveis para a inclusão social. Assim, o Peru enfrenta o desafio de equilibrar o combate ao narcotráfico com o respeito às necessidades de suas comunidades, buscando um modelo que una desenvolvimento, segurança e justiça social.

REFERÊNCIAS

PEDRAGLIO, E. La coca en el Perú: historia, cultura y narcotráfico. Lima: Editorial Universitaria, 2017.

HERNÁNDEZ, L. La cocaína y el terrorismo en Perú: Sendero Luminoso, el MRTA y el narcotráfico. Lima: Editorial Grupo Santillana, 2003.

JARAMILLO, F. Política de erradicación de cultivos ilícitos en Perú: perspectivas y desafíos. 2015. Disponível em: https://www.politicaserradicacion.pe. Acesso em: 3 dez. 2024.

UNITED NATIONS. Convención de las Naciones Unidas contra el Tráfico Ilícito de Estupefacientes y Sustancias Psicotrópicas. 1988. Disponível em: https://www.unodc.org. Acesso em: 3 dez. 2024.

UNITED NATIONS. Convención Internacional para la represión del financiamiento del terrorismo. 1999. Disponível em: https://www.unodc.org. Acesso em: 3 dez. 2024.

WMR. World Migration Report 2022. 2022. Disponível em: https://www.iom.int. Acesso em: 3 dez. 2024.

UNODC. Perú: Producción de cocaína y política de erradicación 2020. 2020. Disponível em: https://www.unodc.org. Acesso em: 3 dez. 2024

CONAMAQ. Alternativas al cultivo de coca en el Perú: políticas de desarrollo y erradicación. Lima: Ediciones CONAMAQ, 2019.RODRÍGUEZ, A. El narcotráfico en el Perú: historia, actores y consecuencias. Bogotá: Editorial Norma, 2011.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.