Texto Conjuntura Cone Sul #25

Crise e Abuso de Poder no Governo Boric: O Caso Monsalve e Seus Reflexos na Governança Chilena

Por Isabela Caroline Souza de Jesus

Introdução

O governo de Gabriel Boric, no Chile, enfrentou um momento de crise em outubro de 2024, quando o subsecretário do Ministério do Interior e da Segurança Pública, Manuel Monsalve, foi acusado de abuso e assédio sexual por uma funcionária da mesma repartição (Pallazo, 2024). As denúncias revelaram que, antes de se tornarem públicas, o caso já era de conhecimento interno no ministério há cerca de um mês, sem que medidas preventivas ou investigações formais tivessem sido iniciadas. Diante da crescente pressão social e política, Monsalve optou por renunciar ao cargo, o que abriu caminho para o início das investigações oficiais (Pallazo, 2024).

A ampla repercussão do caso foi intensificada pela relevância estratégica do cargo ocupado por Monsalve e pelo compromisso declarado do governo Boric com uma agenda feminista e progressista. Desde o início de seu mandato, Boric promoveu a defesa dos direitos humanos e da igualdade de gênero como pilares centrais de sua administração (AFP, 2023), o que contrastou diretamente com a forma como o caso foi tratado. Esse episódio evidenciou não apenas falhas na gestão de crises éticas dentro do governo, mas também revelou as fragilidades estruturais de um sistema que parece incapaz de responsabilizar figuras públicas de alto escalão por abusos de poder.

Além disso, através do caso é possível levantar questões mais amplas, como o risco à segurança das mulheres no país – especialmente em espaços institucionais, onde a desigualdade hierárquica muitas vezes permite que homens em posições de poder abusem de sua autoridade. A falta de ações contundentes para coibir e punir tais práticas perpetua a impunidade e reforça um ambiente de vulnerabilidade, desprotegendo as mulheres e enfraquecendo os princípios democráticos e de justiça social.

1. Manuel Monsalve – Subsecretário do Ministério do Interior e Segurança Pública do Chile


Fonte: El Correo Financeiro

Repercussão Política e Social

O caso da renúncia de Manuel Monsalve, subsecretário do Ministério do Interior e da Segurança Pública no Chile, gerou uma repercussão política e social significativa no país. O governo de Gabriel Boric, que assumiu o poder com um forte compromisso com pautas sociais e se autodenominava feminista, enfrentou críticas severas pela maneira como lidou com as acusações (AFP, 2023). As denúncias de assédio e abuso sexual contra Monsalve, uma figura central em um ministério responsável por garantir a segurança pública, a ordem social e liderar esforços contra o crime organizado no país (Chile, 2025), colocaram em xeque os valores proclamados pelo governo. A situação evidenciou não apenas a gravidade das acusações, mas também a aparente inércia institucional em agir prontamente diante de um caso de tamanha seriedade. Embora Monsalve tenha renunciado por iniciativa própria, não foi demitido por superiores ou afastado de imediato, mesmo com o conhecimento prévio das denúncias por colegas do departamento e pela cúpula do governo (Pallazo, 2024). A vítima, funcionária do mesmo ministério, já havia reportado o caso, o que indica uma falha no tratamento da questão internamente e expõe contradições entre o discurso progressista e as práticas institucionais (Pallazo, 2024).

O abuso de poder no ambiente de trabalho, especialmente quando exercido por homens em posições hierárquicas elevadas, reflete uma dinâmica de desigualdade profundamente enraizada nas relações laborais. Conforme destacado por Higa (2016), o assédio sexual não apenas viola a dignidade humana, mas também reproduz normas de gênero que subordinam mulheres e consolidam a autoridade masculina em espaços institucionais. Nesse contexto, a ineficiência de ação diante do caso de Manuel Monsalve no Chile encontra semelhanças com outro episódio recente no Brasil, envolvendo o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida (CNN, 2024). Em ambos os casos, denúncias de assédio sexual feitas por mulheres que atuavam no mesmo ambiente de trabalho expuseram o uso indevido de poder por parte de figuras que ocupavam cargos de relevância e responsabilidade ética. Essa contradição é especialmente alarmante quando se considera os postos que esses homens ocupavam: Monsalve, encarregado da segurança e ordem pública, e Almeida, responsável pela promoção dos direitos humanos e da cidadania. Ambas as situações não apenas traem os valores que seus cargos simbolizam, mas também reforçam uma hipocrisia institucional que mina a confiança pública e perpetua o sentimento de impunidade.

A renúncia do subsecretário do Ministério do Interior no Chile, sob tais acusações, aponta para uma impunidade que reflete as fragilidades institucionais chilenas na gestão de crises éticas e políticas. A aparente ausência de mecanismos robustos para lidar com denúncias de abuso de poder por figuras públicas em posições estratégicas evidencia uma lacuna no sistema de accountability do país. A impunidade em casos de assédio sexual é frequentemente facilitada por estruturas institucionais que, ao invés de responsabilizar os agressores, priorizam preservar a reputação das organizações e proteger seus membros mais influentes (Higa, 2016)​. No caso de Monsalve, sua renúncia, embora vista como um ato de responsabilidade pessoal, não foi acompanhada de uma resposta clara e efetiva por parte do governo ou de mecanismos institucionais que garantissem a devida responsabilização (Ayala et al., 2024). Essa omissão reforça uma cultura de tolerância à violência de gênero e à corrupção ética, mesmo em governos que se autodeclaram comprometidos com agendas feministas e progressistas. Ao não enfrentar adequadamente o caso, o governo Boric arrisca comprometer sua credibilidade e expõe as limitações estruturais que dificultam a implementação de reformas éticas e sociais no país.

Uma ameaça à segurança humana?

A violação dos direitos das mulheres, aliada à impunidade dos responsáveis, pode configurar em uma grave ameaça à segurança humana. Como destacado nos Estudos Feministas de Segurança, a segurança humana deve ser entendida como a proteção das pessoas contra ameaças físicas e estruturais que comprometem sua dignidade e direitos fundamentais, independentemente de gênero (Buzan; Hansen, 2012). A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948, consagra a dignidade e os direitos humanos como universais, exigindo igualdade de tratamento para todas as pessoas. No entanto, a ausência de punições efetivas para violações desses direitos, como os casos de Manuel Monsalve no Chile e Silvio Almeida no Brasil, rompe com esses princípios ao permitir que homens em posição de poder abusem de sua autoridade sobre mulheres. Essa dinâmica perpetua desigualdades de gênero e reforça estruturas patriarcais, criando um ambiente onde figuras poderosas não esperam enfrentar consequências à altura de seus atos. Assim, a impunidade nesses casos não é apenas uma falha ética, mas também um atentado contra a segurança humana, ao desproteger sistematicamente grupos vulnerabilizados.

Além de representar uma ameaça à segurança humana, a impunidade em casos de abuso e assédio sexual reforça narrativas de dominação e subordinação no espaço público e institucional. Como aponta Tickner (2001), a ausência de medidas concretas para responsabilizar abusadores em cargos de autoridade perpetua a ideia de que os espaços de decisão política permanecem seguros para os perpetradores, mas hostis para as vítimas, especialmente mulheres. Essa dinâmica enfraquece a confiança nas instituições ao criar um ambiente em que a denúncia é desincentivada, sinalizando que as vozes que se levantam contra violações podem ser ignoradas ou silenciadas quando são direcionadas contra homens que ocupam cargos de grande escalão. Em governos que se apresentam como progressistas e defensores de direitos humanos, como o de Gabriel Boric (AFP, 2023), essa contradição entre discurso e prática não apenas compromete a credibilidade do governo, mas é possível também que intensifique a desconfiança popular. Quando os princípios do próprio governo não são seguidos, a percepção pública pode ser de hipocrisia e de uso instrumental de valores éticos e feministas, levando à corrosão da legitimidade institucional e dificultando a implementação de reformas que buscam construir uma sociedade mais equitativa.

Conclusão

É possível perceber pela recente crise política ocorrida no Chile, após a repercussão do caso de Manuel Monsalve, que a má gestão de assuntos sensíveis pode gerar profunda desconfiança e comprometer a legitimidade do governo vigente. Em uma nação democrática, é essencial que a população participe ativamente das discussões políticas e critique de forma livre as ações dos líderes que ocupam cargos de poder. No entanto, quando há contradições entre o discurso progressista e as práticas efetivas, como evidenciado pela falta de ação decisiva no caso Monsalve, surgem controvérsias que fragilizam o ambiente político e deterioram a relação entre o governo e seus cidadãos. A incapacidade de lidar de forma consistente com acusações de abuso e assédio sexual não apenas deslegitima a liderança do governo, mas também impede a construção de um espaço público seguro e equitativo.

Além disso, o caso destaca falhas estruturais mais profundas, como a ausência de mecanismos eficazes de accountability para lidar com denúncias de abuso de poder. A omissão em tratar tais casos de maneira justa e transparente reflete não apenas uma falha administrativa, mas também um rompimento com os princípios fundamentais de proteção aos direitos humanos e à segurança humana. Quando figuras públicas em posições estratégicas abusam de seu poder sem consequências proporcionais, perpetua-se uma cultura de impunidade que prejudica especialmente os grupos mais vulnerabilizados, como as mulheres. Nesse contexto, o governo Boric, que se autodenomina progressista e feminista, precisa enfrentar o desafio de alinhar discurso e prática para recuperar a confiança da população e demonstrar um compromisso genuíno com as reformas sociais e institucionais que prometeu implementar.

REFERÊNCIAS

AFP. O protagonismo feminino no governo de Boric no Chile. Estado de Minas, Belo Horizonte, 10 mar. 2023. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2023/03/10/interna_internacional,1467113/o-protagonismo-feminino-no-governo-de-boric-no-chile.shtml . Acesso em: 13 jan. 2025.

AYALA, Leslie; BATARCE, Catalina; ANDREWS, Juan Pablo; GONZÁLEZ, Esteban. La denuncia en contra del exsubsecretario Monsalve. La Tercera, 17 out. 2024. Disponível em: https://www.latercera.com/nacional/noticia/la-denuncia-en-contra-del-exsubsecretario-monsalve/LRCTWAD675FHZC6NX4AIMPKP7U/ . Acesso em: 14 jan. 2025.

BUZAN, Barry; HANSEN, Lene. Ampliando e aprofundando a segurança. In: BUZAN, Barry; HANSEN, Lene. A evolução dos estudos de segurança internacional. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2012. Cap. 7, p. 315-327.

CHILE. Ministerio del Interior y Seguridad Pública. Funciones ministeriales. Disponível em: https://www.interior.gob.cl/funciones-ministeriales/ . Acesso em: 13 jan. 2025.

CNN. Quem é Silvio Almeida, ministro acusado de assédio sexual. CNN Brasil, 6 set. 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/quem-e-silvio-almeida-ministro-acusado-de-assedio-sexual/ . Acesso em: 13 jan. 2025.

HIGA, Flávio da Costa. Assédio sexual no trabalho e discriminação de gênero: duas faces da mesma moeda?. Revista Direito GV, v. 12, p. 484-515, 2016.

NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 dez. 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos . Acesso em: 14 jan. 2025.

PALLAZO, Mauricio. Terremoto político en Chile por la renuncia del subsecretario de Interior acusado de violación. Infobae, 18 out. 2024. Disponível em: https://www.infobae.com/ . Acesso em: 13 jan. 2025.

TICKNER, J. Ann. Gendering World Politics: Issues and Approaches in the Post-Cold War Era. 4/15/01 ed. New York: Columbia University Press, 2001.

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