O papel do poder russo na reconfiguração da segurança no Mali
Maria Luiza de Carvalho Allo
Maria Paula Barbosa Rangel
Resumo
A presente análise busca compreender a atuação de empresas militares privadas, financiadas pela Rússia, que atuam no Mali. São considerados, então, os diferentes fatores que favorecem a expansão de poder desses atores no país, sendo avaliados os fatores socioeconômicos, políticos e de desequilíbrio Estatal, que culminaram para o país da África Ocidental tornar-se suscetível a tais ações. Ademais, são analisados os interesses da Rússia e do Grupo Wagner no território, sendo esta uma importante peça na afirmação do poder russo frente ao seu desgaste perante a Guerra na Ucrânia. Sendo, assim, serão compreendidas as estratégias de hard power e soft power na propagação de ideologias pró-Rússia e contra o Ocidente, no Mali.
1. Contextualização do Estado do Mali e relações de poder no país
Sendo o Mali um país da África Ocidental povoado por diferentes grupos étnicos, o fato ao mesmo tempo que promove uma riqueza cultural, promove uma falta de coesão nacional. Tal questão gera desigualdades dentro do próprio Estado, marginalizando certos grupos em detrimento de outros. Além disso, desde sua independência da França nos anos 60, eles enfrentam problemas crônicos de governança como a corrupção, os golpes e os altos níveis de desigualdades socioeconômicas. Os imbróglios demonstram a fragilidade das instituições, bem como a incapacidade do governo central de estender sua autoridade sobre todo território e de garantir o acesso a serviços básicos a toda população (Martini, 2013). Nesse sentido, a falta de centralidade de poder e de liderança abrem precedentes para o surgimento de golpes, insurgências armadas, atuação de grupos militares privados e grupos não-estatais, o que gera um aumento da violência na região.
Outrossim, vale ressaltar o fato de que desde sua independência a estrutura estatal do Mali, ou seja, todo o aparato necessário para um bom funcionamento do Estado, nunca foi bem consolidada. Isso promoveu desconfianças dentro da própria população, a qual em parte não se sente bem representada pelo governo central. A questão é explicitada ao tratar dos povos da região Norte, os quais em sua grande maioria são nômades ou seminômades, o que diverge dos povos do sul, e sendo estes últimos parte majoritária no governo, é ressaltado a falta de coesão e centralidade de interesses. Essa falta de representação política promove a marginalização social e econômica de comunidades inteiras, particularmente os tuaregues no norte (Parenti, 2020), além de aumentar o sentimento de insatisfação da população, alimentando, assim, um ciclo de revoltas. Dessa forma, a crise em curso corroeu a legitimidade do Estado, levando os cidadãos a dependerem de intervenientes não estatais para ter acesso a serviços básicos, aumentando tensões na região (Martini, 2013).
Nesse sentido, desde 2012, o Mali enfrenta um crescente número de insurgências armadas lideradas por grupos jihadistas, os quais se aproveitaram do vácuo de poder estatal e das frágeis instituições para aumentar sua influência e cooptar pessoas para seus grupos. A insatisfação popular em conjunto com o aumento da influência de forças não estatais no Norte, bem como o alto número de rebeliões no país, culminaram para que, ainda em 2012, o país sofresse um golpe militar. Esse golpe foi liderado por soldados das forças armadas malianas que estavam insatisfeitos com a falta de apoio estratégico e logístico do governo central às forças militares que combatiam a série de rebeliões no país. Isso demonstrou a fragilidade e a instabilidade política que o Mali passava, permitindo que grupos paramilitares passassem a controlar vastas áreas do território, além de tornar o Mali em um epicentro de violência e insegurança socioeconômica. A má gestão, os elevados níveis de corrupção e as mudanças abruptas de poder enfraqueceram ainda mais as instituições de governança no país (Bøas, 2013), tornando-o suscetíveis a maior influência de empresas militares privadas e, subsequentemente, da influência de poder de Estados como a Rússia.
Dessa forma, vale ressaltar a importância do Grupo Wagner e sua crescente atuação não somente no Mali como, também, em toda África Ocidental. Essa empresa militar privada russa foi criada, em 2014, por um magnata russo e um ex-oficial das forças especiais russas, com o objetivo de apoiar ações separatistas pró-Rússia no território ucraniano – durante o conflito entre ambos os Estados a respeito da região da Crimeia -, sendo uma forma de o kremlin promover suas pautas e seus interesses políticos em diversas partes do mundo. No entanto, a Rússia negou o envolvimento com o grupo (Duarte, 2023), contudo, em 2023, o presidente Vladimir Putin confirmou o financiamento por parte do governo perante a empresa, o que segundo alguns especialistas pode representar uma estratégia do kremlin para reivindicar o poder e aumentar sua influência, bem como seu hard power. Ademais, esse grupo é composto por ex-militares russos ou pessoas atraídas pelos seus altos salários, com o objetivo de fornecer serviços de segurança, treinamento militar e apoio logístico a governos instáveis em troca de concessões econômicas e minerais (Neethling, 2023).
No caso do Mali, a presença do Wagner em seu território pode demonstrar a estratégia russa de expandir sua influência na África. Substituindo, assim, a tradicional presença ocidental na região, especialmente em um contexto no qual a aliança militar histórica entre o Mali e a França foi quebrada, o que gerou um vazio no país. Nesse sentido, a Rússia se coloca como uma opção para preencher esse espaço, minando a presença ocidental no continente e ampliando, assim, a influência russa. Para além de que em um contexto no qual a potência oriental enfrenta diversas sanções devido a presente guerra da Ucrânia, essa influência na África Ocidental representa o acesso a amplos recurso naturais como o ouro, o lítio e o urânio, os quais são cruciais para as indústrias russas, bem como para sua economia (BBC,2024a). No entanto, as operações de Wagner têm sido controversas, com relatos de abusos de direitos humanos e exploração de recursos (Klen, 2023).
Além disso, após a morte de um dos fundadores e líderes do Wagner, Yevgeny Prigozhin, em 2023, o grupo ficou sob um comando maior do kremlin (BBC, 2024a), mantendo suas operações na África. Entretanto, o braço africano do Wagner recebeu uma nova nomeação. Sendo conhecido como África Corps, esse nome faz alusãoo ao frente de batalha do exército nazista, o qual atuava no Norte da África durante a Segunda Guerra Mundial. Este período viu um envolvimento significativo de colônias africanas no conflito, com consequências duradouras para o continente (Alves, 2024), o que gera uma discussão a respeito do aumento de movimentos da extrema direita e influências nazistas, as quais ainda persistem não só no continente africano.
Entre o período de 2020 a 2024, o Mali enfrentou diversos desafios sociais, econômicos e, em especial, políticos, os quais demarcam um período de instabilidade governamental, mudanças de alianças e crises (Filippov, 2021). Dessa forma, em 2020, o então presidente Ibrahim Keïta sofreu um golpe militar, impulsionado por insatisfações populares relacionadas a problemas crônicos do país como a má gestão, a corrupção, a violência e a falta de representatividade. A junta militar que assumiu, apesar de ter prometido uma transição para o governo civil de forma rápida e pacífica, realizou um segundo golpe no início de 2021, reforçando o controle militar no país, sendo esse golpe apoiado pela Rússia.
Dessa forma, após a série de golpes, a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) impôs uma série de sanções econômicas e comerciais ao Mali, realizando uma pressão para o retorno da ordem democrática e constitucional do país. No entanto, a aproximação dos governos militares com empresas privadas e, consequentemente, com a Rússia faz com que o Mali mantenha sua posição, sendo estes governos apoiados financeiramente pelo grupo. Além disso, a economia maliana encontrou diversos desafios, devido, especialmente, à pandemia da Covid-19, a qual resultou, em 2020, em um contração do PIB em 1,2% (Banco Mundial, 2024). Ademais, as sanções impostas pela CEDEAO, bem como a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, exacerbaram a fragilidade econômica já existente no país, limitando o acesso do Mali a mercados regionais e internacionais. Nesse sentido, a guerra que se iniciou em 2022 afetou significativamente o Mali, uma vez que o país dependia da importação de cereais e fertilizantes da Ucrânia (BTI, 2024) para a produção da base alimentar maliana, gerando, assim, o aumento da insegurança alimentar no território.
2. A atuação do Grupo Wagner e a expansão do poder russo no Mali
Ao trabalhar a relação entre o Grupo Wagner e a Rússia, são desenvolvidas diversas possibilidades para a atuação do Estado russo por intermédio do grupo, além de questionamentos perante a posição da empresa militar privada. A definição do Grupo Wagner como uma empresa militar privada por si já é questionada, sendo levantados argumentos de que não enquadra-se no conceito analisar a forma de atuação do grupo, sendo a ligação com a Rússia uma das questões que coloca em xeque a definição. O grupo frequentemente é relacionado a outros termos, como “uma organização representante (proxy) do Estado russo”, “uma rede nebulosa que combina força militar com interesses comerciais e estratégicos”, “uma empresa militar ‘pseudoprivada” e ‘um grupo informal de segurança semiestatal” (Spearin, 2023).
Relacionando as ações desempenhadas pelo grupo paramilitar, com um financiamento e controle por parte do Kremlin perante este, a atuação armada parece tratar-se mais de um braço de guerra dos oligarcas russos, com estes investindo recursos financeiros no exército mercenário, assim como atuam no controle do Kremlin. Ao pensar nos retornos da delegação das ações a um grupo de mercenários, é calculada a posição da Rússia no cenário internacional, de modo que, relegar as acusações de crimes de guerra, cometidos pelo grupo Wagner, acaba por simplificar suas atividades desempenhadas no ambiente internacional.
Outra articulação do Grupo Wagner, de modo a destoar-se de outras empresas militares privadas, é o fato de os mercenários receberem concessões de licença para exploração mineral. O fato tornar-se essencial para a atuação do grupo no Mali e demais países do continente, com uma bacia de recursos, dentre eles ouro e lítio. Em conjunto com a instabilidade política, país da África Ocidental representa uma oportunidade para o desenvolvimento da milícia. Diante de tal contexto, o Wagner promove uma atuação no Mali que fere os direitos humanos, em troca de recursos minerais e expansão de poder. O Estado maliano, por tratar-se de um aparato frágil, fica suscetível ao controle dos mercenários e por conseguinte, o da Rússia. A abordagem, no entanto, não restringe-se apenas ao controle do Estado por parte da Rússia, mas também de um apelo a um tempo em que a Rússia e o país possuíam relações estreitas e o Mali provia de maior estabilidade. Assim, são resgatados como forma de controle, a Rússia – e o Wagner – como uma resposta para a fragilidade que assola a população maliana, tentando garantir maiores recursos de atuação perante alguma forma de aceite popular (BBC, 2023a).
Sob essa ótica, é necessário explicitar a forte estratégia de controle exercida pela Rússia perante o Grupo Wagner, fato constatado com a revolta fracassada do então líder da organização, Yevgeny Prigozhin, em 2023. Após revoltar-se perante o Estado russo e declarar uma ofensiva contra Putin, com a intitulada “marcha pela Justiça” – que propunha que o exército de mercenários caminhasse da Ucrânia até Moscou, em recusa a um suposto plano de Putin de acabar com o Wagner, anexando ele ao aparato estatal russo – tendo Putin classificado o ato como traição. O chefe de Estado, não processou Prigozhin, mas o fundador da empresa militar privada e o co-fundador, Dmitry Utkin, dentre outros membros do grupo, sofreram um acidente de avião suspeito e morreram. Com a traição de Prigozhin, as operações na África, antes gerenciadas pelo Wagner, passam a ser controladas pela “Força Expedicionária” russa. Segundo Jack Walting, especialista em guerra terrestre do Royal United Services Institute (Rusi), esse foi um movimento claro de Putin saindo das sombras do Wagner no controle da África (Inwood, Tacchi, 2024).
Ao sair das sombras do Wagner no Mali, e em todo o continente, a Rússia passa a enfrentar uma maior pressão internacional, porém amplia sua rede de poder, podendo ser pensada como uma expansão para contornar as sanções impostas pela Guerra da Ucrânia, em busca de maior influência e exercício de pressão. Nesse sentido, a busca por apoio no Sul Global e em suma, a busca por recursos econômicos para lidar com as perdas advindas das sanções, tornam a exploração de recursos minerais e influência russa na região da África Ocidental. O fator, corrobora, assim, para maior estabilidade da Rússia perante a guerra na Ucrânia, com as ações na África podendo ser tidas como uma forma de financiamento do conflito. As consequências impostas pela comunidade internacional perante a atuação da Rússia e Wagner, podem em certa medida serem caracterizadas como limitadas, visto as tentativas de maior intervenção do Conselho de Segurança da ONU diante dos atos atribuídos ao Wagner e que ferem os direitos humanos, sendo vetados pela Rússia. O poder de veto do país ex-soviético desencadeia diversas implicações para o mal desempenho em conter os crimes cometidos pelos mercenários no Mali e em outros países, não tendo uma melhor provisão após a Rússia assumir financiar o grupo, em 2023.
Paralelo ao exposto, ao explicitar o controle no Mali, dentre os outros países africanos, com o gerenciamento da atuação sendo designado a “Força Expedicionária”, coordenada pela inteligência militar russa, o GRU (Glavnoye Razvedyvatelnoye Upravlenie), a Rússia reforça sua posição de poder no sistema internacional. O fato de assumir financiar o Wagner atribui a Rússia responsabilidade perante os crimes cometidos no Mali, sendo estes violações claras dos direitos humanos. Relatores de direitos humanos da ONU pediram, em 2023 uma investigação a respeito dos crimes cometidos pelos mercenários no país, explicitados em “Desde 2021, os relatores estão recebendo denúncias de execuções terríveis, valas comuns, atos de tortura, estupro e violência sexual. São casos de saques, detenções arbitrárias e desaparecimentos forçados na região de Mopti, que fica no centro do Mali, e outras partes.” (UN News, 2023) . Contudo, as consequências para a Rússia perante os atos cometidos não são latentes, e podendo ser consideradas como uma demonstração do poder exercido pelo Kremlin e os oligarcas russos, uma resposta à visão de uma Rússia com poderio fragilizado perante a Guerra da Ucrânia.
Perante ao abordado, ao analisar as áreas de influência do Wagner no Mali, e por conseguinte o exercício de poder do Kremlin, o imbróglio ganha uma maior dimensão, devido ao número expressivo de atuação. Como expresso pelo mapa a seguir:
Mapa de Stanyard, Vircoulon e Rademeyer, The Grey Zone: Rusia’s Militiary, Member, and Criminal Engagement in Africa [Genebra: Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional, fevereiro de 2023] (INWOOD, TACCHI, 2024).
A questão torna-se mais latente ao analisar o fato de o Grupo Wagner atuar com outros nomes, algo muito recorrente na forma de atuação dos mercenários. Assim, ao considerar outras vertentes do Wagner, movidas pelos mesmo recursos e interesses, o grupo Africa Corps ganha notoriedade, sendo classificado pelo Reino Unido como “responsável por ameaçar a estabilidade e a segurança em toda a África”, segundo o Ministro das Relações Unidas (Al Jazeera 2024). O país foi o primeiro integrante do G7 a sancionar diretamente o Africa Corps, reforçando a impunidade dos países do sistema internacional perante a máquina de guerra financiada pela Rússia.
O grupo, com nome em alusão ao grupo nazista, Afrika Korps, recebe pouca atenção na mídia internacional. Assim, sendo uma ramificação do Wagner e com uma carga histórica, o grupo expande sua atuação no Mali, garantindo uma maior aderência ao repercutir um passado já conhecido. A estratégia de exercer maior influência na população é um dos pontos centrais de movimentos de extrema direita, como o Wagner e Africa Corps, com ambos carregando em seus nomes uma bagagem do nazismo, proliferando a mensagem em canais do telegram. A atuação mais sutil, empregando soft power, como a difusão de informações no telegram, em conjunto com o uso de hard power, nos diversos ataques, garante mais camadas à atuação dos mercenários, e, consequentemente, maior sucesso em suas ações. Os ideais propagados, partem, no entanto, em suma do Estado Russo e suas políticas extremistas em busca da unificação do seu poderio.
Em conjunto com a atuação em busca de aumentar o poderio russo, por meio do Grupo Wagner, são difundidas práticas de soft power no Mali. São atribuídas a aliança, diferentes tipos de práticas recreativas, no intuito de corroborar para a alienação desses, dentre as atividades ofertadas aos malianos, estão apresentações musicais e teatrais, segundo Dmitri Sytyi, autointitulado “embaixador informal da política russa”. Os fatos são acompanhados pela venda de “pacotes de sobrevivência”, ofertados ao Estado, no intuito de controlar rebeliões e gerenciar a permanência da influência do chefe de Estado, sendo o caso mais emblemático o da República Centro-Africana, além de controlar as ameaças das revoltas jihadistas. Segundo Hager Ali, “Isso pode incluir expertise e experiência, assim como o apoio direto na repressão a possíveis insurgências em meio à população civil, na extração de recursos naturais, e assim por diante.” (DW, 2024).
Sob tal perspectiva, o conjunto de propaganda pró-Rússia, antiocidental, combinado com a atuação militar do Wagner no Mali, é muito bem caracterizado com o grupo Yèrèwolo, que significa “filhos dignos”, em bambara. O nome aborda a exclusão propagada pelo grupo, o qual é liderado por Adama Diarra e é tido como uma das influências da expulsão da missão da ONU no Mali – Minusma – e de países ocidentais do continente, nutrindo em especial ódio sobre a França. Nesse sentido, é comum o uso de simbolismos ligados ao Wagner e a Rússia em reuniões do grupo, assim como a queima de símbolos da França e ONU. O grupo foi citado como um dos participantes na execução de 500 civis, em uma operação realizada em Moura em 2022, sendo forças russas também apontadas como autores do crime (BBC, 2023b).
Devem ser, assim, analisadas as motivações militares e econômicas da Rússia, como o fato de as concessões de mineração no Mali, e outros países da África Ocidental, terem financiado a Guerra na Ucrânia. Com o Grupo Wagner, três concessões de ouro acompanharam a chegada do grupo, segundo Spearin (2023), especialista de segurança. “ […] a Rússia expressou interesse contínuo nos recursos do Mali, e observações revelam mudanças na legislação sobre mineração do Mali, permitindo a expansão das atividades extrativas russas.” (Spearin, 2023). Junto com o interesse russo, são acompanhados os atos contra os direitos humanos deferidos pelo Wagner e suas vertentes, colocando em perigo a população civil e perdurando a instabilidade na região.
3. Conclusão a respeito dos impactos da atuação russa e dos mercenários no Mali
A questão maliana elucida dificuldades enfrentadas por Estados frágeis na África Ocidental, demonstrando como uma história marcada por divisões étnicas, desigualdades socioeconômicas e má gestão deixam o país à mercê das ações de grupos mercenários e controle de Estados. Desde sua independência existe uma luta para consolidar as instituições democráticas, bem como promover uma maior coesão dentro do território, mas as instabilidades, as intervenções externas, a falta de representatividade e marginalização econômica criaram um espaço propício para o surgimento de violências, rebeliões e golpes.
Nesse sentido, a fragilidade das instituições criou um vácuo de poder, permitindo a ação de grupos externos, os quais tentaram conciliar sua própria agenda dentro do país, como grupos jihadistas e empresas militares privadas. Sendo, nesse contexto, importante a atuação do Grupo Wagner, o qual não representa apenas uma resposta ao colapso das estruturas de segurança dentro do país mas também, é parte importante da estratégia russa de expandir suas zonas de influência. As ações ganham notoriedade em um contexto no qual a potência encontra-se isolada, necessitando de acesso a recursos naturais para manter suas indústrias e sua economia girando, vistos os desgastes provenientes dos gastos com a Guerra na Ucrânia e sanções impostas em resposta a essa. Isso se deve ao fato do grupo ter uma ligação direta com o Kremlin, o qual desde 2023 tem exercido um maior poder sobre a empresa, usando-a como um instrumento para alcançar os objetivos políticos e econômicos da Rússia.
A presença do Wagner se tornou mais consolidada no Mali após o rompimento do acordo de segurança que o país possuía com a França, demonstrando um afastamento das tradicionais potências coloniais. Sendo estas, substituídas por alianças com potências do Sul Global, fato que deve-se ao crescente descontentamento com a presença colonizadora no território, bem como a eficácia de discursos antiocidentais pregados por grupos como o Wagner na região. Além disso, a atuação da empresa no Mali é marcada por denúncias de violações de direitos humanos, as quais levantam uma discussão a respeito da responsabilização da Rússia frente a essas acusações, uma vez que a mesma já declarou que o grupo é parte integrante das forças do país.
Portanto, a intervenção do Wagner no país, o insere em uma rede de dependência da Rússia, corroborando para a perpetuação da fragilidade e das desigualdades já enfrentadas. A questão é explicitada na crescente de grupos como o Yèrèwolo, e a busca por um passado idílico, em que o Mali possuía maior estabilidade, nas alianças do Estado maliano frente a Rússia e o Grupo Wagner. A fala de Diarra a respeito do alinhamento com o ex-país soviético sucinta a questão: “Eu venho dizendo isso há anos: minha inspiração, minha bússola, foi o relacionamento que nosso primeiro presidente teve com a União Soviética” (BBC, 2023a).
Diante de tal cenário, Diarra, resgata um período da história do Mali em que o país mantinha suas esperanças no acordo com a União Soviética, firmado pelo primeiro presidente do Mali, Modibo Keïta, em 1961. A aliança prometia uma esperança para o povo maliano, havendo uma associação da Rússia com a prosperidade e equilíbrio no Estado, fato usado pela Rússia para exercer influência no país. Parte do sucesso dessa estratégia, advém de um sentimentalismo histórico para aqueles que resgatam o período, sendo uma referência da libertação dos malianos, com a independência da França em 1960 (Marília, 2015). E em suma, para os que tinham na aliança a esperança de fortificação do Mali, com o fato ganhando margem com grupos fundamentalistas como o liderado por Diarra e seus discursos pró-Rússia, com estes mantendo laços estreitos com a Rússia.
Dessa forma, a resolução para a crise depende da construção de uma base institucional forte, a qual respeite as diversidades do país, visando a almejada estabilidade resgatada desse passado idílico, mas devendo ocorrer a desconstrução dessa aliança com a União Soviética e o espelhamento da esperança na Rússia. Para, assim, o Mali ver-se livre da dominação de outros Estados e grupos que atuam em favor destes, e caminhar em direção a estabilidade.
REFERÊNCIAS
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