Os desafios para a garantia de direitos dos povos indígenas colombianos em meio ao conflito armado no país
Por Giovanna Ornelas e Vitor Samuel Botelho
Introdução
A Colômbia vivencia um dos mais longos conflitos armados da história, que perdura há décadas. Tendo surgido no auge da Guerra Fria e da Doutrina de Segurança Nacional dos Estados Unidos na década de 60, o conflito que inicialmente tinha como protagonistas grupos guerrilheiros de esquerda e organizações paramilitares de direita, passou por uma grande diversificação de motivações, atores e formas de atuação com o decorrer do tempo. Também desencadeou o surgimento de outros fenômenos, como os ganhos econômicos ilícitos com o narcotráfico, o tráfico de armas e o contrabando. Nesse sentido, o conflito se tornou ainda mais complexo e adquiriu um caráter de guerra irregular crônica, que tem como consequência diversas tragédias humanitárias para a sociedade civil colombiana que, em sua maioria, não é atuante nos combates. (SANTOS, 2011)
As autoridades judiciais e forças de segurança falham em proteger a população colombiana de forma efetiva, e em fornecer acesso à justiça para aqueles afetados pelo conflito. A violência contra a sociedade civil é frequente, e as comunidades indígenas são particularmente afetadas, sendo um dos principais focos de preocupação com as violações de direitos humanos no país. As denúncias incluem casos de deslocamento forçado, sequestros, assassinatos, recrutamento forçado de crianças por parte dos grupos armados, existência de níveis de pobreza elevados pelas comunidades afetadas, entre outros.
Diante dessas informações, essa análise de conjuntura tem como objetivo analisar os impactos dos conflitos armados nas comunidades indígenas colombianas, e as severas violações dos direitos humanos sofridas por essas populações, e como essa dinâmica dificulta a sua busca por autonomia.
O histórico de violência no Estado Colombiano
Marcado por dinâmicas de cultura política de violência, limitação de participação política e acesso desigual aos recursos naturais, o Estado colombiano enfrentou grandes dificuldades de consolidação da unidade nacional ao longo de sua história. Esse fato pode ser demonstrado pela incapacidade estatal de garantir o monopólio do uso legítimo do uso da força e monopólio fiscal, soberania, mediar conflitos sociais e o funcionamento efetivo do Estado de Direito em muitas partes de seu território. (SANTOS, 2011) Diante dessa realidade, não é uma surpresa que o país possua um longo histórico de conflitos armados, surgimento de atividades econômicas clandestinas e de organizações guerrilheiras.
Os movimentos de guerrilha na Colômbia começam a ser rastreados a partir da chamada La Violencia (1948-1957), período que teve início com o assasinato de Jorge Eliécer Gaitán, líder do Partido Liberal em 9 de abril de 1948. A morte de Gaitán intensificou os confrontos entre os membros dos dois principais partidos políticos colombianos, o Partido Liberal e o Partido Conservador, em que o conflito gerou a morte de aproximadamente 200.000 pessoas e a disputa pelo controle do poder estatal. Ambos os partidos compartilham de um
extenso histórico de tensões e conflitos que marcaram a história colombiana e influenciaram a fortificação da violência organizada e a formação de milícias de autodefesa. Foi entre 1950 e 1960 em que estas organizações foram tomando forma e se envolveram em conflitos além do partidário, como vendetas familiares, disputas sobre direitos da terra e o controle da produção do café. Além disso, alguns destes grupos se posicionaram politicamente em defesa da reforma agrária e melhores condições trabalhistas, que de acordo com BAGLEY (1988), tais circunstâncias levaram à formação de grupos identificados como “guerrilhas revolucionárias” nas zonas rurais colombianas.
O embate entre liberais e conservadores chegou ao fim em 1958, com a implementação do acordo de Frente Nacional, que tinha como objetivo principal a redução da violência . Neste pacto, ambas as vertentes alternavam o controle da presidência até o ano de 1974, em que este embate foi uma das principais causadoras de guerrilhas, e em seguida o aumento da ocorrência da violência no Estado. (OFFSTEIN, NORMAN, 2003)
Eventualmente, o presidente no poder, Lleras Camargo criou em 1958, um programa de reforma agrária e de ação comunitária, pois a insatisfação dos agricultores estava em grande parte na raiz da violência. Esta reforma tinha como objetivo a redistribuição de terras para pequenos produtores rurais, enquanto as ações visavam fortalecer o progresso nestas áreas, conjuntamente ao fortalecimento do Estado. Apesar de todos estes esforços para atender as necessidades da população, a corrupção, a escassez e morosidade do acesso a recursos contribuíram para o aumento do descontentamento populacional e gerou cada vez mais revoltas. A luta governamental para conciliar o cumprimento do acordo, junto com problemas sociais como a falta de emprego e moradia, permitiu que grupos com ideologias políticas divergentes se unissem e se tornassem guerrilhas. Atualmente, na Colômbia, existem duas principais guerrilhas que influenciam o cenário político e lutam pela libertação: o Exército de Libertação Nacional (ELN) e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC).
A origem do Exército de Libertação Nacional (ELN) está profundamente enraizada no contexto histórico do país, principalmente por conta do período de La Violencia. O ELN foi fundado em 1964 por um grupo de estudantes, intelectuais e ativistas sociais sob forte influência de ideais marxistas e pela Teologia da Libertação, movimento insurgente da Igreja Católica na América Latina, com o propósito de auxiliar as camadas sociais menos favorecidas. (MEDINA, 1996)
Seguindo como inspiração a Revolução Cubana e os movimentos revolucionários ocorrentes em toda a América Latina, o ELN não buscava somente derrubar o governo colombiano, mas também promover uma transformação em todo o sistema, lutando contra a exploração capitalista e injustiças sociais. (MEDINA, 1996)

Fábio Vasquez Cãstano, Fundador do ELN
(Imagem retirada do livro: ELN: una historia contada a dos voces, MEDINA, CARLOS GALLEGO, 1996)
Inicialmente, o ELN foi criado com motivações ideológicas marxistas e revolucionárias, acabou se envolvendo em atividades criminosas e violentas como uma ferramenta de resistência ao Estado. Eventualmente, segundo Gustavo Duncan (2015) esta característica se tornou definidora, à medida em que o grupo passou a se financiar por atividades ilícitas, como o tráfico de drogas e o controle de rotas, especialmente em áreas ricas em recursos naturais. A luta pelo controle destas rotas e o envolvimento com o mercado ilegal, não só intensificaram as tensões com o governo colombiano, mas gerou uma onda de violência que afetou diretamente as populações locais.
No ano de 2016, um acordo de paz firmado entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), que são um dos principais atores do conflito, trouxe o início do declínio da violência no país. Entretanto, as medidas não foram duradouras e a violência segue ocorrendo em níveis alarmantes. Atualmente diversos grupos armados atuam no território colombiano. Além da ELN, há mais de 30 grupos dissidentes das FARC, e o grupo formado após a desmobilização de grupos paramilitares no início do século XXI, chamados de Forças de Autodefesa Gaitanistas da Colômbia (AGC) ou Clã do Golfo. (HUMAN RIGHTS WATCH, 2024).
É importante ressaltar que a violência não se dá apenas por parte dos grupos armados ilegais. No ano de 2021, a Human Rights Watch lidou com indícios que associavam a polícia colombiana ao assassinato de 25 manifestantes e espectadores, além de prisões arbitrárias e ferimentos que ocorreram em um cenário de manifestações pacíficas. Nenhum dos policiais acusados foi condenado. Ademais, apesar dos esforços do Ministério da Defesa de reformar os protocolos policiais em um processo que envolveu a participação de grupos da sociedade civil, o governo falhou em consolidar as reformas nas forças de segurança. (HUMAN RIGHTS WATCH, 2024).
A realidade dos povos indígenas em meio aos conflitos
Por conta de sua cultura de violência e de baixa integração, o Estado colombiano enfrenta muitos obstáculos para garantir liberdades civis, Direitos Humanos e resolução de conflitos. Além disso, o papel central que as atividades de pecuária, agricultura e extração de recursos naturais desempenham na economia do país deu origem a diversos conflitos acerca do controle da terra, provocando deslocamentos, migrações e mortes, principalmente de indígenas. (SANTOS, 2011)
As diversas ofensivas violentas contra os indígenas datam desde o início da colonização espanhola com a expulsão de comunidades de sua região de origem e permanecem até os dias atuais, no qual adquiriu novas formas. Atualmente, são um dos grupos da sociedade civil colombiana que é mais afetado pelo complexo conflito armado da região.
No decorrer da história da formação nacional colombiana, o conflito se apresenta como integrador de territórios e populações, e é nessa dinâmica que a expansão da fronteira agrícola e novos territórios estruturam a ordem econômica, social e política. Esse fenômeno é referido por muitos estudiosos como colonização armada, no qual há a existência de novas formas de controle social que são permeadas ou mesmo mediadas pelo poder armado. Simultaneamente, essa realidade deixa os povos indígenas marginalizados, na medida em que a intensificação do conflito torna seus territórios em um espaço onde diferentes atores disputam por controle e poder. Nesse sentido, os embates pelo controle territorial fazem com que a população indígena se torne um empecilho na consolidação do projeto de poder de todos os envolvidos no conflito. (VILLA; HOUGHTON, 2005)
A Organização Nacional Indígena Colombiana (ONIC) é um dos movimentos mais ativos na busca pelos direitos indígenas no país. Segundo a própria organização, a conquista de autonomia é um de seus principais pilares, e desempenha um papel central no caminho trilhado pelos indígenas na garantia de seus direitos, e deve ser entendida a partir de suas identidades e particularidades. A autonomia buscada por eles envolve não apenas a variável territorial, mas também a jurídica, a administrativa, a política, entre outras. Autonomia essa que é fortemente disputada com o Estado, com os grupos armados legais e ilegais, e com as elites econômicas. (CALVO, 2017, apud ONIC, 1989)
De acordo com um relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), no ano de 2023, 134 crianças foram recrutadas ou utilizadas no conflito por grupos armados e organizações criminosas, sendo 71 delas pessoas indígenas.
No ano de 2023, no estado de Nariño, localizado no sul do país, os indígenas Awá foram vítimas de deslocamento forçado devido a ameaças, confinamentos, sequestros e assassinatos. Já no estado de Cauca, os indígenas Nasa foram ameaçados ou mortos por se oporem às violações causadas pelos grupos armados. Por sua vez, as ameaças de grupos armados e os riscos de fogo cruzado deixaram 64.000 pessoas, a maioria indígenas, em uma situação denominada de confinamento, entre janeiro e outubro do mesmo ano, no qual foram impedidas de saírem de suas comunidades. (HUMAN RIGHTS WATCH, 2024)
Conclusão
Os longos conflitos armados na Colômbia são uma dura e complexa realidade que afetam fortemente a sociedade civil, que em sua grande maioria não participa diretamente dessas dinâmicas e são vítimas de severas violações de direitos humanos. A violência manifestada principalmente pelos confrontos entre o governo e grupos insurgentes, como o ELN, constitui um reflexo das limitações estruturais e institucionais do Estado na resolução de questões que estão enraizadas em sua realidade, como desigualdades sociais e o narcotráfico.
O relator oficial da ONU sobre pobreza extrema e direitos humanos, Oliver de Schutter, afirmou que a pobreza é uma das principais causas para a continuidade dos conflitos armados no país, que simultaneamente tem limitado fortemente o seu desenvolvimento socioeconômico. Combinada com a grande dificuldade de mobilidade social, a falta de acesso a bons empregos tem levado pessoas em situação de pobreza em busca de melhores condições a se tornarem alvos de recrutamento por parte dos grupos armados. (OHCHR, 2024).
A interação do narcotráfico, grupos insurgentes e pessoas em situações socioeconômicas difíceis proporcionam que a criminalidade organizada e a violência política formem um quadro ainda mais complexo, onde a construção de um Estado de Direito e tentativas de resoluções contra a violência, bem como a formulação de um acordo de paz duradouro, sejam extremamente difíceis de serem consolidadas, conjuntamente com as falhas governamentais em proteger sua população civil e em especial as comunidades indígenas contra as graves violações de direitos humanos.
Portanto, a busca de uma solução para este delicado cenário que é uma realidade na Colômbia a décadas, exige uma abordagem multifacetada, no qual é necessária não apenas a desmobilização armada, mas também um tratamento no qual o governo consiga combater as questões estruturais causadoras da violência, como desigualdades socioeconômicas, exclusão política e social, entre outras. Assim, para que não apenas a sociedade civil, mas em particular os povos indígenas possam conquistar sua autonomia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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