A inserção da Etiópia no BRICS e suas implicações econômicas e geopolíticas
Por Isadora Silveira de Almeida
Mikael Tabatas Carvalho e Silva
1. Introdução
A Etiópia, frequentemente lembrada por sediar a União Africana, desponta nos últimos anos como um ator relevante na política regional. Em meio às transformações do sistema internacional, o convite para integrar o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) refletiu tanto o interesse de potências emergentes em ampliar sua influência na África quanto o esforço etíope de consolidar um projeto de desenvolvimento baseado em múltiplas parcerias. Desde o fim do regime de Mengistu Haile Mariam, em 1991, o país vivenciou amplas transformações sociais e institucionais, direcionadas à construção de um modelo de federalismo étnico capaz de acomodar sua marcante diversidade interna. Embora essa configuração tenha gerado expectativas de maior inclusão, persistem tensões regionais e étnicas, ao passo que, em paralelo, a Etiópia obteve taxas de crescimento acima da média do continente, estimuladas por investimentos em infraestrutura e por políticas de industrialização voltadas à substituição de importações (Shiferaw, 2017, p. 5-8). É nesse cenário em que aparece a aproximação ao BRICS, um bloco que procura contrabalançar a influência das potências tradicionais e oferecer alternativas de financiamento, cooperação e projeção global.
A crescente relevância dos países em desenvolvimento na esfera global encontra no BRICS uma das mais expressivas manifestações, à medida que esse grupo, formado por potências de diferentes continentes, expressa anseios de reformar as estruturas financeiras e institucionais historicamente voltadas aos interesses das nações desenvolvidas. Dentro dessa lógica, a ampliação do bloco para além de seus cinco membros fundadores revela a intenção de construir novos pólos de poder que possam equilibrar a hegemonia das instituições ocidentais. Nesse contexto, a Etiópia surge como um país estratégico: com mais de 110 milhões de habitantes, um crescimento econômico e localização privilegiada no Chifre da África, ela atrai parceiros que buscam expandir investimentos e presença geopolítica no continente (Mekonnen, 2024, p. 64). Por outro lado, do ponto de vista etíope, a inserção no BRICS representa a oportunidade de diversificar parcerias, reduzir a dependência de organismos como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, e acessar novas fontes de financiamento e tecnologias capazes de sustentar as ambições de modernização do Estado. Ainda que os índices de crescimento econômicos sejam notáveis, a Etiópia enfrenta gargalos estruturais e conflitos étnicos que podem dificultar a realização plena de seu potencial de desenvolvimento no longo prazo.
2. Contextualização Histórica e Política da Etiópia
A Etiópia possui uma história peculiar no contexto africano. Diferentemente de muitos países do continente, não sofreu colonização direta prolongada pelas potências europeias, fato que projetou uma imagem de independência e resistência. Até o início do século XX, a monarquia etíope se estruturou em torno de imperadores que mantinham controle relativamente centralizado, embora enfrentassem tensões recorrentes com diferentes grupos étnicos e principados regionais. Essa estabilidade monárquica, entretanto, começou a ruir em meados do século XX, culminando na queda do imperador Haile Selassie, em 1974, e na ascensão do regime de Mengistu Haile Mariam.
O regime de Mengistu governou de forma autoritária até 1991 onde teve sua derrocada, que abriu caminho para a implementação de um federalismo étnico, a cargo de uma coalizão política conhecida como Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (EPRDF). Esse modelo estabeleceu estados regionais dotados de certa autonomia para legislar e administrar recursos, com o intuito de abrigar a pluralidade de grupos étnicos presentes no país. No entanto, a natureza complexa dessa configuração federativa evidenciou, ao longo do tempo, dificuldades de integração e conflitos que emergiram em diferentes partes do território etíope.
A ascensão de Abiy Ahmed ao poder, em 2018, gerou expectativas de consolidação de reformas que pudessem impulsionar a abertura econômica e acalmar tensões históricas. Abiy buscou pacificar conflitos com países vizinhos, como a Eritreia, e iniciou uma agenda de liberalização de setores-chave, como telecomunicações e aviação. Todavia, problemas de governança e os embates na região do Tigré, em particular, mostraram que a unificação política ainda não foi alcançada. Nesse ambiente de tensões internas, a Etiópia constrói sua política externa apoiada tanto na necessidade de reduzir vulnerabilidades regionais quanto no desejo de manter laços internacionais multifacetados. Ser sede da União Africana lhe confere certo prestígio diplomático, mas também a responsabiliza pela busca de soluções pacíficas para conflitos em todo o Chifre da África, amplificando suas obrigações e interesses regionais.
É importante destacar, nesse contexto, que
“A Etiópia atualmente ocupa a 70ª maior economia no mundo. Com uma média de crescimento de produto interno bruto (PIB) de cerca de 9,9% entre 2004 e 2011, esta foi uma das mais rápidas economias em crescimento do mundo, superando a média africana de cerca de 5,4% assim como ultrapassando a taxa mínima de crescimento de 7% requerida pelas Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.” (Ademuyiwa; Onyekwena; Taiwo; Uneze, 2014, p. 6).
Esse desempenho reforça a percepção de que o Estado, apesar dos desafios políticos e institucionais, apresenta potencial considerável de desenvolvimento, especialmente se contar com parcerias que ampliem sua capacidade de investimento em setores estratégicos.
3. Panorama Econômico
O crescimento econômico etíope, frequentemente superior a 8% ao ano em diversos períodos das duas últimas décadas, colocou o país em evidência entre as nações de desenvolvimento acelerado na África. Diversos fatores explicam esse desempenho, em primeiro lugar, a agricultura continua sendo um pilar do PIB e do mercado de trabalho, dada a extensão territorial adequada à produção de grãos e à criação de gado. Em segundo lugar, grandes investimentos em infraestrutura — patrocinados tanto pelo Estado quanto pelo capital estrangeiro, especialmente chinês — resultaram em melhorias nas áreas de transporte, energia e indústria (Ademuyiwa; Onyekwena; Taiwo; Uneze, 2014, p. 7).
Entre os projetos mais emblemáticos destaca-se a Grand Ethiopian Renaissance Dam (GERD), uma usina que busca fazer do país um importante fornecedor de energia hidrelétrica para a região. A obra, além de sua dimensão econômica, traz implicações geopolíticas, pois envolve disputas com o Egito e o Sudão acerca da gestão das águas do Rio Nilo. Outro elemento de destaque é a adoção, por parte do governo, de parques industriais voltados à exportação, nos quais se tenta fomentar a produção de têxteis, calçados e outros bens manufaturados, de modo a reduzir gradualmente a dependência de importações.
Apesar desses avanços, podem persistir desafios significativos. A inflação, em variados momentos, ameaça o poder de compra da população, e a infraestrutura, apesar de avanços pontuais, ainda não atinge parcela considerável das áreas rurais. O endividamento externo, impulsionado por empréstimos destinados a financiar projetos de grande porte, representa outro foco de preocupação, visto que pode expor o país a flutuações econômicas globais e pressões cambiais. Da mesma forma, a diversificação de parceiros comerciais, ainda que venha sendo ampliada, não assegura um equilíbrio, já que grande parte das importações de tecnologia permanece concentrada em poucas fontes, notadamente a China. Nesse sentido, a aproximação com o BRICS pode abrir perspectivas para uma expansão de mercados e para negociações mais favoráveis em termos de crédito.
4. BRICS e seus Benefícios Potenciais para a Etiópia
A formação do BRICS e seu posterior fortalecimento como foro de cooperação sul-sul refletem o desejo das economias emergentes de construírem mecanismos financeiros e políticos à parte dos estabelecidos pelas potências tradicionais. Dessa forma, a instituição do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) e o estabelecimento de linhas de crédito e de projetos de infraestruturas conjuntas são vistos como alicerces de uma nova ordem econômica internacional, na qual países em desenvolvimento possam exercer influência proporcional ao seu potencial econômico.
Para a Etiópia, a participação neste bloco pode trazer ganhos consideráveis em diversas áreas que podem andar em paralelo com os recentes investimentos em infraestrutura. Como em relação ao acesso a recursos financeiros, onde os juros são potencialmente menos onerosos do que os praticados pelas instituições financeiras ocidentais ou pelo mercado privado. Isso tende a aliviar a pressão sobre as contas públicas etíopes, sobretudo em um contexto de expansão da infraestrutura elétrica e logística. Também no que se relaciona à cooperação tecnológica, levando em conta a transformação econômica da Etiópia. Além da grande projeção diplomática, pois no BRICS, a Etiópia passa a integrar um bloco global de países que buscam reformular instâncias multilaterais de governança, ampliando sua influência em negociações de âmbito econômico, ambiental, de segurança, entre outros (Mekonnen, 2024, p. 64 e 73).
A China, já consagrada como principal parceiro econômico de Adis Abeba, poderia fortalecer ainda mais laços de comércio e investimento, tendo em vista seu papel de liderança no BRICS. O mesmo se aplica à Índia, que nos últimos anos demonstra crescente interesse em estreitar relações econômicas, sobretudo na área de tecnologia da informação, fármacos e equipamentos de baixo custo (Mekonnen, 2024, p. 64). A ampliação desses relacionamentos, entretanto, não dispensa a necessidade de um planejamento criterioso por parte do governo etíope, que deve zelar pela transparência na contratação de empréstimos e pela mitigação de desequilíbrios na balança comercial. O desafio consiste em assegurar que esses investimentos não resultem em dependência excessiva ou em negociação desigual, na qual a Etiópia comprometeria seus recursos naturais ou sua autonomia regulatória.
5. Desafios e Limitações
Embora a perspectiva de ingresso no BRICS apresenta atrativos, há limitações internas e externas que podem comprometer ou retardar os potenciais benefícios. Internamente, a Etiópia convive com tensões que permeiam sua forma de organização federativa. Conflitos regionais exemplificam como tais rivalidades podem escalar, comprometendo tanto a estabilidade social quanto a confiança de investidores estrangeiros. Além disso, em um país de base produtiva ainda largamente agrária, a transformação industrial requer mão de obra qualificada, energia e logística integrada, fatores que nem sempre estão disponíveis nas regiões mais remotas.
Em âmbito regional, a construção da GERD exacerbou tensões diplomáticas com o Egito e com o Sudão, dada a importância que o Rio Nilo representa para todos esses países. Essa disputa gera instabilidade política e pode levar a divergências em fóruns multilaterais, inclusive em espaços que o BRICS pretende influenciar. O bloco, por sua vez, também abriga contradições, uma vez que as prioridades e interesses de países como China e Índia não são necessariamente convergentes. Em situações de conflito de interesses, a Etiópia poderia enfrentar dificuldades para obter apoio unânime do bloco, cabendo a sua diplomacia manejar tais divergências com habilidade. Some-se a isso o risco de sobre-endividamento, caso o país assine contratos vultosos sem a devida transparência e análise de viabilidade, e tem-se um quadro delicado em que potenciais ganhos podem se transformar em comprometimentos de médio e longo prazo (Mekonnen, 2024, p. 72).
6. Possíveis Cenários Futuros
Em um cenário otimista, o país conseguiria atenuar conflitos internos por meio de reformas e acordos políticos, consolidar a capacidade de produção hidrelétrica da GERD e garantir um ambiente relativamente seguro para investimentos. Nesse contexto, a adesão ao BRICS forneceria o capital adicional necessário para completar grandes projetos de infraestrutura e industrialização, viabilizando uma transformação econômica que, gradualmente, integraria a Etiópia em cadeias produtivas globais de maior valor agregado. A eficiência logística, amparada em ferrovias e estradas construídas ou modernizadas com financiamento estrangeiro, permitiria a exportação competitiva de bens manufaturados, aumentando a arrecadação estatal e melhorando o nível de emprego (Mekonnen, 2024, p. 71).
Em resumo, a Etiópia, ao aderir ao BRICS, ensaia um movimento ambicioso de inserção global, ancorado em um passado de independência política, em um presente de reformas econômicas e em um futuro que demanda soluções inovadoras para problemas de governança e infraestrutura. As contradições internas e as conjunturas regionais ditarão, em grande parte, o grau de sucesso ou fracasso dessa empreitada. Contudo, é inegável que, ao se apresentar como candidata ao bloco, a Etiópia não apenas se coloca no centro de debates sobre o desenvolvimento africano, mas também sinaliza a articulação de uma política externa pragmática e voltada à expansão de parcerias. O equilíbrio entre abrir-se a novos investimentos e preservar a autonomia regulatória e a estabilidade política será fundamental para converter as expectativas associadas ao BRICS em conquistas reais para a população etíope.
Referências
ADEMUYIWA, Idris; ONYEKWENA, Chukwuka; TAIWO, Olumide; et al. Ethiopia and BRICS: A Bilateral Trade Analysis. Policycommons.net. Disponível em: <https://policycommons.net/artifacts/1451849/ethiopia-and-brics/2083660/>.
INTERNATIONAL HYDROPOWER ASSOCIATION. International Hydropower Association. Hydropower.org. Disponível em: <https://www.hydropower.org/sediment-management-case-studies/ethiopia-grand-ethiopian-renaissance-dam-gerd>.
MEKONNEN, Wondimu. Ethiopia and BRICS: Prospects and Challenges. Journal of Political Science and International Relations, v. 7, n. 3, p. 59–74, 2024. Disponível em: <https://www.sciencepublishinggroup.com/article/10.11648/j.jpsir.20240703.12>.S
HIFERAW, Admasu. Productive Capacity and Economic Growth in Ethiopia. United Nations, 2017. Disponível em: <https://www.un.org/development/desa/dpad/wp-content/uploads/sites/45/publication/CDP-bp-2017-34.pdf>.
