Texto Conjuntural África Austral #37

Entre o Trono e o Povo: A Tensão Política e as Reformas em Essuatíni

Por Marina Borges Faria

Introdução

Essuatíni, anteriormente conhecida como Suazilândia, é uma das últimas monarquias absolutas do mundo, onde o rei detém amplos poderes políticos e legislativos. Nos últimos anos, o país tem sido palco de intensos protestos populares que exigem reformas políticas e uma transição rumo à democracia. A população, composta em grande parte por jovens, clama por mais participação política, liberdade de expressão e limites ao poder monárquico. No entanto, o governo tem respondido com repressão, agravando as tensões internas. Esse cenário reflete os complexos desafios de democratização na África Austral, onde tradições monárquicas se chocam com pressões internas e externas por maior abertura política. Nesta análise conjuntural, busco entender, por meio de uma lente pós-colonial, as dinâmicas históricas e a persistência das estruturas de poder em Essuatíni, analisando como as estruturas coloniais ainda afetam as instituições políticas e sociais no país, incluindo a manutenção de formas tradicionais de governo, como a monarquia absolutista, e os desafios contemporâneos de democratização.

Tradição, Colonialismo e os Desafios da Democratização 

Essuatíni é um pequeno país localizado na África Austral, que não possui saída para o mar e faz fronteira com a África do Sul e Moçambique. Com uma área total de 17.364 km² e uma população de aproximadamente 1,2 milhão de habitantes, Essuatíni é predominantemente rural e enfrenta desafios significativos relacionados à pobreza, desigualdade, e alta prevalência de HIV/AIDS – a mais alta do mundo, com quase 28% dos adultos infectados (Central Intelligence Agency, 2024). 

A economia do país depende fortemente do comércio com a África do Sul, seu principal parceiro comercial, e enfrenta limitações devido à baixa diversificação econômica, altas taxas de desemprego e uma distribuição desigual de recursos. Ademais, a população do país é composta majoritariamente por swazis, com pequenas comunidades zulus e de ascendência europeia. Os idiomas oficiais são o siSwati, amplamente falado, e o inglês, utilizado nos negócios governamentais, e a religião predominante no país é o cristianismo, muitas vezes integrado a práticas tradicionais africanas (Central Intelligence Agency, 2024). 

Classificado como um país de renda média baixa, Essuatíni sofre com desafios estruturais herdados do colonialismo, agravados por práticas econômicas ultrapassadas – como por exemplo a baixa diversificação econômica e a dependência excessiva da agricultura de subsistência e do comércio com a África do Sul – degradação ambiental e instabilidade climática. Além disso, desde o final do século XIX, muitos swazis, particularmente homens do sul rural, migraram para trabalhar em minas na África do Sul, o que gerou repercussões sociais e econômicas significativas, como a perda de mão de obra qualificada e uma fuga de cérebros nas áreas de saúde e educação. Desse modo, dinâmicas sociais e econômicas como a migração, a perda de mão de obra qualificada, e a desigualdade e vulnerabilidade sociais causadas pela má distribuição de recursos moldam a realidade contemporânea de Essuatíni, evidenciando a persistência de estruturas de poder tradicional em um cenário socialmente frágil (Central Intelligence Agency, 2024; Dlamini, 2019). 

Nesse contexto, o Reino de Essuatíni é uma das últimas monarquias absolutistas do mundo e foi fundado pela dinastia Dlamini, que ainda hoje governa o país em um sistema que combina elementos tradicionais e modernos na governança. Dentre os elementos tradicionais, pode-se destacar a monarquia absolutista e a estrutura social baseada em clãs, que são liderados por chefes locais que respondem diretamente ao rei. Por outro lado, é possível observar também a presença de alguns elementos modernos na governança do país, como por exemplo o parlamento bicameral, composto pela Assembleia e pelo Senado, sendo esta  infraestrutura legislativa um elemento de governança moderno (Dlamini, 2019; Historical Society of Southern Africa, 2024).

Sob esta ótica, o reino tem raízes históricas profundas, sendo fundado no século XVIII, quando a população Swazi migrou do centro de África para a região onde está Essuatíni hoje. Sob a liderança de Ngwane III, o primeiro rei da dinastia Dlamini, o reino começou a se estabelecer e expandir. Na década de 1820, Sobhuza I consolidou o poder, estabelecendo a identidade cultural e política dos Swazi. Esse período viu a criação da estrutura social baseada em clãs, chefiados por líderes locais que respondiam ao rei (Dlamini, 2019; Historical Society of Southern Africa, 2024).

Com a chegada dos britânicos e bôeres no século XIX, o reino sofreu pressões externas, e, em 1894, tornou-se um protetorado da colônia do Transvaal, antes de ser colocado sob administração britânica em 1903. Apesar do domínio colonial, a monarquia manteve um papel central entre os Swazi, visto que o sistema administrativo britânico reconhecia, até certo ponto, as autoridades locais, de modo que essa convivência permitiu a preservação de algumas tradições culturais e políticas, tais como a organização dos clãs, alguns rituais e celebrações tradicionais e o própria papel da monarquia (Dlamini, 2019; Historical Society of Southern Africa, 2024).

Durante o período colonial, os britânicos introduziram sistemas legais e políticos europeus, que coexistiram, nem sempre de forma harmoniosa, com as estruturas tradicionais de governança locais. O rei Sobhuza II, que reinou por 82 anos, desempenhou um papel crucial nesse período, negociando constantemente com os britânicos para preservar aspectos da monarquia, da cultura e das práticas locais, como por exemplo o sistema de liderança tradicional baseado em chefias locais, e o Sibaya, fórum tradicional onde membros da comunidade se reúnem para debater e aconselhar o rei. Dessa forma, a manutenção de um sistema dual – monárquico tradicional e colonial – foi uma das características mais marcantes do período, deixando um legado de tensão entre modernidade e tradição (Dlamini, 2019).

Com a independência em 1968, muitas das instituições coloniais, como a estrutura econômica e o sistema jurídico, foram nacionalizadas, mas elementos como a centralização do poder e a repressão política, herdados do período colonial, permaneceram. Sobhuza II aboliu a constituição parlamentar em 1973 e restabeleceu a governança tradicional, consolidando a monarquia absolutista. Em 1986, seu filho Mswati III assumiu o trono e, em 2018, mudou o nome do país para Essuatíni, reafirmando sua identidade cultural. Assim, cabe citar que esta identidade é muito caracterizada pela própria monarquia absolutista e suas tradições, pela organização social baseada em clãs (cujos líderes desempenham papeis importantes em cerimônias culturais) e pela preservação do idioma siSwati (Dlamini, 2019; Laterza, 2023).

Atualmente, Essuatíni é governado por um sistema dual que combina um parlamento, conhecido como Libandla, e estruturas tradicionais lideradas pela monarquia. O rei detém autoridade executiva significativa, mas é aconselhado pelo Conselho Nacional de Ligwalagwala, composto por líderes tradicionais. Embora a monarquia seja alvo de críticas por movimentos democráticos que emergiram nos anos 1990, ela permanece central para a identidade cultural de Esssuatini. Contudo, a proibição de partidos políticos e o controle monárquico sobre os processos eleitorais representam desafios significativos à democratização (Dlamini, 2019).

Tendo em vista que o Essuatíni vive sob uma governança autoritária, na qual os partidos políticos são proibidos desde 1973, e a liberdade de expressão, bem como a mídia independente, é fortemente reprimida, torna-se necessário entender mais sobre os movimentos pró-democracia que existem no país. O regime liderado pelo Rei Mswati III tem sido acusado de corrupção, má administração de recursos públicos e repressão violenta contra dissidentes. Essa concentração de poder e ausência de mecanismos democráticos têm gerado insatisfação crescente, especialmente entre os jovens que enfrentam altos índices de desemprego, pobreza extrema e desigualdade social (Bongwe, 2022).

Sob essa ótica, os movimentos de resistência à monarquia remontam ao período pós-independência, quando alguns setores da população começaram a questionar a centralização do poder real. Contudo, esses movimentos começaram a ganhar força na década de 1990, sendo um dos mais proeminentes o People’s United Democratic Movement (PUDEMO), fundado em 1983, que defende a transição para uma democracia multipartidária. Com o passar do tempo, os protestos se intensificaram, especialmente na última década, com manifestações de larga escala ocorrendo em 2021. Esses protestos frequentemente resultaram em repressão estatal violenta, incluindo detenções arbitrárias, tortura de ativistas e uso excessivo da força por parte da polícia (Bongwe, 2022; Dlamini, 2021).

Atualmente, a oposição em Essuatíni é composta por diversos grupos que desafiam o autoritarismo do rei, sendo o PUDEMO o mais influente. No entanto, organizações como o Swaziland Youth Congress (SWAYOCO) e o Swaziland Solidarity Fund também desempenham papeis significativos. Apesar de milhares de pessoas participarem de protestos e atividades relacionadas aos movimentos pró-democracia, com a juventude desempenhando um papel central, a percepção da população sobre a necessidade de uma transição democrática é dividida. Enquanto muitos jovens e setores urbanos apoiam mudanças, populações rurais mais tradicionalistas permanecem leais à monarquia, em parte devido ao papel histórico do rei na preservação da cultura Swazi (Bongwe, 2022; Dlamini, 2021).

A resposta do governo a esses movimentos tem sido marcada por violência e repressão. Protestos são frequentemente dispersados com força letal, e incidentes como o massacre de 2021, no qual dezenas de manifestantes foram mortos e centenas feridos ou detidos, ilustram a brutalidade estatal. Além disso, também existem relatos de censura à mídia e perseguição a jornalistas que cobrem os protestos. Essa repressão não apenas viola os direitos humanos, como também demonstra a determinação do regime em manter seu controle absoluto. Assim, esse padrão de violência estatal reflete os desafios enfrentados por movimentos de resistência em regimes autoritários e destaca as barreiras para a democratização em Essuatíni (Bongwe, 2022; Dlamini, 2021; Laterza, 2023). 

Mediante o exposto, é possível compreender que a persistência da monarquia absolutista em Essuatíni, em um cenário pós-colonial, é um reflexo de como as estruturas políticas e sociais do país ainda são moldadas por legados coloniais. A monarquia, que remonta ao período pré-colonial, foi adaptada durante o colonialismo para servir aos interesses das potências coloniais, principalmente dos britânicos. Durante o período colonial, a monarquia de Essuatíni teve de negociar com os colonizadores para garantir sua sobrevivência, o que resultou em uma adaptação do sistema tradicional para acomodar os interesses coloniais. Esse processo, que combinava governança tradicional com estruturas coloniais, deixou um legado complexo de governança híbrida, que ainda persiste. Após a independência em 1968, a manutenção da monarquia absolutista como um pilar central da identidade nacional foi vista como uma forma de preservar a soberania interna frente às influências externas, mas também manteve as estruturas de poder que foram moldadas durante o colonialismo (Laterza, 2023; Dlamini, 2019).

Sob esta ótica, a transição democrática em Essuatíni é altamente complexa devido à interseção entre tradição e modernidade, e ao impacto das estruturas coloniais que ainda permeiam as instituições políticas do país. A centralização do poder nas mãos do monarca, enquanto outros países africanos adotaram modelos republicanos após a independência, pode ser vista como uma consequência da incapacidade das elites locais de se desvencilhar completamente dos arranjos coloniais, que muitas vezes favoreciam a estabilidade política por meio de uma monarquia centralizada. Para autores pós-colonialistas como Frantz Fanon, a luta por liberdade e autodeterminação em contextos pós-coloniais não é apenas uma luta contra a opressão externa, mas também contra as estruturas internas que foram imposta durante o colonialismo, como a manutenção de regimes autoritários e hierarquias sociais (Fanon, 1961). Esse fenômeno pode ser observado em Essuatíni, onde as tradições locais, apesar de profundamente enraizadas, foram adaptadas para atender aos interesses de poderosos elites coloniais e, mais tarde, das elites locais que mantiveram um regime autoritário.

A questão central é se seria possível para Essuatíni transitar para um sistema democrático sem desmantelar completamente suas tradições locais e o papel central da monarquia. A resistência de setores rurais à democratização é, em parte, sustentada por um vínculo profundo com as estruturas tradicionais de governança. Para muitos, o rei é visto não apenas como uma figura política, mas como o protetor da identidade cultural e das tradições do povo swazi. A viabilidade de uma transição democrática, portanto, depende da capacidade de encontrar um equilíbrio entre o respeito pelas tradições locais e a necessidade de reformas políticas que garantam a liberdade de expressão, a participação política e os direitos civis (Bongwe, 2022; Dlamini, 2021). 

Nesse contexto, a comunidade internacional, por meio de organismos como a União Africana (UA) e as Nações Unidas (ONU), tem um papel crucial na facilitação desse processo. A pressão internacional é imprescindível para ecoar os pedidos por democracia e denunciar as violações de direitos humanos em Essuatíni e para incentivar o regime a aceitar algum nível de abertura política. No entanto, a comunidade internacional deve ter cuidado para não impor uma agenda que desconsidere as particularidades culturais e sociais de Essuatíni, por isso, o equilíbrio entre o respeito às tradições locais e a promoção da democracia é um desafio constante. Dessa maneira, a promoção de uma democratização inclusiva deve respeitar as tradições culturais, ao mesmo tempo que deve criar espaços para a participação popular e a contestação política (Bongwe, 2022). 

Considerações finais 

Em suma, a trajetória política de Essuatíni nos próximos anos dependerá da capacidade de seus cidadãos de conciliar as profundas raízes culturais e tradicionais com as exigências modernas de governança democrática. A luta por democracia, como parte de um movimento mais amplo em toda a África, desafia a persistência de formas de governo que, embora tradicionais, foram ajustadas para servir a elites coloniais e pós-coloniais. Devido a isso, o caminho para uma transição democrática será, sem dúvida, turbulento e repleto de desafios, mas, à medida que a pressão interna e internacional aumenta, novas formas de negociação política poderão surgir, com o potencial de transformar o Reino de Essuatíni em um modelo de adaptação de suas tradições à democracia.

Referências

BONGWE, Sazi. The King vs. The People: The Struggle to Bring Democracy to eSwatini. The Harvard Political Review, 9 out. 2022. Disponível em: https://theharvardpoliticalreview.com/king-vs-people/. Acesso em: 16 nov. 2024.

CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY (CIA). Eswatini: Fact Sheet. The World Factbook. Atualizado em: 19 nov. 2024. Disponível em: https://www.cia.gov/the-world-factbook/countries/eswatini/factsheets/. Acesso em: 13 nov. 2024.

DLAMINI, Hlengiwe Portia. A Constitutional History of the Kingdom of Eswatini (Swaziland), 1960–1982. 1. ed. Cham: Palgrave Macmillan, 2019.

DLAMINI, Mbuso. Dissatisfaction with democracy rises in Eswatini. Afrobarometer Dispatch, 8 dez. 2021. Disponível em: https://www.afrobarometer.org/wp-content/uploads/2022/02/ad495-dissatisfaction_with_democracy_rises_in_eswatini-afrobarometer_dispatch-5dec21.pdf. Acesso em: 16 nov. 2024.

FANON, Frantz. The Wretched of the Earth. Grove Press, 1961.

HISTORICAL SOCIETY OF SOUTHERN AFRICA. Eswatini (formerly Swaziland). Disponível em: https://www.sahistory.org.za/place/eswatini-formerly-swaziland. Acesso em: 15 nov. 2024.

LATERZA, V.; GOLOMSKI, C. Customary nationalism in crisis: protest, identity and politics in eSwatini. Journal of Contemporary African Studies, v. 41, n. 2, p. 119–140, 30 jul. 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1080/02589001.2023.2234103. Acesso em: 16 out. 2024.

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