Texto Conjuntural: Golfo da Guiné #16 – Boko Haram: o resultado de um Estado ineficiente frente ao extremismo religioso

Pedro Henrique de Oliveira Salvo

A República Federal da Nigéria, ou simplesmente Nigéria, é o país mais populoso do seu continente e a maior economia da África Subsaariana, embora seu relativo desenvolvimento econômico não reflita em condições mínimas de vida para a maior parte da sua população, já que 60% dessa vive abaixo da linha de pobreza (CIA, 2018). Contando com gigantesca diversidade étnica e cultural, no passado o país foi colonizado pela Grã-Bretanha, sofrendo grande influência da cultura ocidental durante este processo (CIA, 2018). Em 2002, o grupo insurgente Boko Haram emerge no Estado da Nigéria, visando confrontar um “governo corrupto” que estava no poder e o processo de ocidentalização que de acordo com estes vinha acontecendo no país (GULARTE, 2015).

Objetivando compreender melhor o contexto que propiciou a criação do grupo Boko Haram e qual a sua finalidade, precisamos entender mais profundamente como se deu o processo de colonização e posteriormente o processo de construção do Estado nigeriano, além de analisar quais implicações o grupo trouxe para a dinâmica social do país e as respostas apresentadas pelo governo frente a tais acontecimentos.

A Grã-Bretanha foi um dos participantes mais assíduos da Conferência de Berlim, que ocorreu entre os anos de 1884 e 1885, que tratava da divisão do continente africano em diversas colônias que seriam posteriormente administradas pelas potências europeias da época. Entre os anos de 1935 e 1945, os britânicos possuíam 19 colônias em território africano, entre eles a Nigéria (GULARTE, 2015).

A forma adotada pelas potências europeias para administrar suas colônias não era uniforme, havendo variações que iam de uma administração direta à administração indireta. O território nigeriano foi gerenciado a partir de uma administração indireta, sendo os líderes tradicionais locais os responsáveis por controlar organismos que geriam toda a dinâmica socioeconômica da colônia. Vale ressaltar que tais líderes resistiriam ao processo que descolonização que ocorre gradualmente após a Segunda Guerra Mundial (GULARTE, 2015).

Em 1960, a Nigéria torna-se um Estado independente, tendo o processo de descolonização ocorrido, em suma, de forma pacífica e constitucional. O modelo político adotado pelos líderes da época foi um governo federal dividido em três regiões, mas a “estrutura federal etno-regionalista e coalizões regionais concorrentes geraram uma série de conflitos que culminaram no golpe militar de 1966” (SUBERU, DIAMOND apud GULARTE, 2015, p.37).

O golpe militar de 1966 foi o primeiro dos três que ocorreriam, sendo intercalados por repúblicas que fracassaram na tentativa de administrar o país. Entre as diversas ações tomadas pelos governos militares está a criação de novos estados, em resposta a possíveis agitações locais que objetivavam a descentralização econômica e política, embora as consequências desta ação seja uma centralização do poder e da manipulação do “sistema de atribuição de receitas” pelo governo federal (SUBERU, DIAMOND apud GULARTE, 2015, p.37).

Em 1999 há o declínio do último período militar e o início da atual república, que teve como primeiro presidente Olusegun Obasanjo, que já havia governado a Nigéria entre 1976 e 1979, durante o período militar. Desde então, a fortificação da democracia vem sendo registrada no país, contando com processos eleitorais e transições de governos ocorrendo de forma pacífica e credível, embora ainda existam diversos desafios na gestão estatal, principalmente no norte da Nigéria, região na qual surge o grupo Boko Haram em 2002 (GULARTE, 2015).

Embora o grupo seja popularmente intitulado de Boko Haram, o nome real do grupo é “Jama‟atu Ahlis Sunna Lidda‟awati Wal-Jihad” (Pessoas comprometidas com a propagação dos ensinamentos do Profeta e da Jihad). Tal nome expressa de forma clara o que o grupo objetiva implantar na Nigéria: disseminar o islã frente a ocidentalização que ocorreu no país a partir do período da colonização, implantando a Sharia no país (GULARTE, 2015)..

Os primeiros confrontos armados nos quais o grupo se envolve acontecem em 2003, onde em seguida o líder e fundador do grupo, Muhammad Yusuf, assume o controle da cidade de Borno, incitando a juventude para a jihad e alertando estes sobre as opressões do governo e os riscos que a secularização da cultura representavam para a identidade do seu povo (MURTADA, 2013).

A partir de 2009, o grupo registra uma intensificação da sua atuação no Estado da Nigéria, motivadas em grande medida pela morte de Yusuf ao ser apreendido por agentes da segurança estatal. Entre a reconfiguração pela qual o grupo passa neste ano, está a nomeação de Abubakar Shekau como novo líder do Boko Haram e o aperfeiçoamento das táticas usadas a fim de tornarem-se mais violentos (MURTADA; ONUOHA, apud GULARTE, 2015, p.53). Dessa forma, a violência usada pelo Boko Haram se intensificou de tal forma que em 2014 este foi considerado o grupo mais mortal de 2014, com 6664 mortes, ficando a frente do ISIS, com 6073 mortes (GLOBAL TERRORISM INDEX, 2017).

O aporte financeiro do Boko Haram ocorre de maneira diversificada, sendo que entre elas está o pagamento de quotas por membros do grupo, doações feitas por pessoas ligadas ao governo e a partidos políticos, crime organizado, entre outros. No tocante ao pessoal, a adesão destes é motivado pela ineficiência do Estado em atender as demandas da população, sendo o grupo composto, em sua maioria, por jovens desiludidos e pessoas com formação acadêmica que estão desempregadas (ONUOHA apud GULARTE, 2015, p.54). A cooptação de pessoas se dá principalmente na região norte do país.

A partir desse contexto, fica clara a compreensão do que seria o grupo insurgente Boko Haram e qual a sua finalidade;

Percebe-se que o Boko Haram emerge de uma região historicamente instável que, somada ao contexto social deficitário do norte da Nigéria sobretudo, expressa-se na forma da violência e do radicalismo praticados pelo grupo. Com forte oposição ao governo, o Boko Haram pretende, através da luta armada, fazer ascender ao país a sharia que, segundo seu entendimento, acabaria com a corrupção e a imoralidade presentes no âmbito estatal atualmente” (GULARTE, 2015, p. 54 e 55).

Dentre os diversos locais que foram alvos do grupo, as escolas estão entre os principais. Tais instituições de ensino tornaram-se alvos sistemáticos do grupo desde o início da sua fase mais violenta, em 2009, por ensinarem a “educação ocidental”, sendo os professores ameaçados de morte por perpetuarem tal ensinamento (SIC, 2015).

Em 14 de abril de 2014, ocorreu um dos ataques mais planejados e emblemáticos do Boko Haram. Este invadiu uma escola pública secundária para meninas, situada na cidade de Chibok, e sequestrou 276 alunas (HEGARTY, 2016). Na época um grande movimento tomou conta das redes sociais de todo mundo, com a hashtag #BringBackOurGirls. Desde então dezenas de meninas foram libertadas, mas diversas outras continuam sobre o poder do grupo (HEGARTY, 2016).

Mais recentemente, em fevereiro de 2018, outro ataque a uma escola foi registrado, dessa vez na cidade de Dapchi, resultando no sequestro de mais de 100 alunas (PRESSE, 2018). A partir de tal postura adotada pelo grupo, muitos jovens deixaram de frequentar a escola por medo de tornarem-se alvos (SIC, 2015). Dessa forma, o grupo vem conquistando parte dos seus objetivos às custas de milhares de jovens nigerianos.

Frente a isto, o governo nigeriano vem adotando táticas que visam amenizar a atuação do grupo em seu território, embora tais tenham sido consideradas insuficientes. Uma das medidas está na criação, em 2011, de uma força-tarefa conjunta, que é composta pelo Departamento de Segurança do Estado (DSS),  o Serviço de Imigração da Nigéria (NIS), as Forças Armadas nigerianas, a Força Policial da Nigéria (NPF) e as Agências de Inteligência de Defesa (DIA), que visam reestabelecer a ordem nos lugares de maior atuação do Boko Haram (HUMAN RIGHTS WATCH, 2012).

Além disso, o país recebe também o apoio de outros Estados, tendo em vista que o Boko Haram se “internacionalizou”  em 2013. Foi formada uma coalizão entre Benin, Camarões, Chade, Níger e Nigéria, sendo esta aprovada pela União Africana, conseguindo expulsar o grupo insurgente de territórios que antes estavam sob o seu controle. A Nigéria recebe também o apoio de outros Estados, como França e EUA. (GULARTE, 2015).

Apesar desses esforços e da redução de mortes causadas pelo Boko Haram no Estado da Nigéria, este ainda possui efetividade dentro de algumas regiões do país. A Nigéria aparece em 3º lugar entre os 163 países que compõem o índice global de terrorismo, produzido pelo instituto para a economia e paz, revelando que as táticas utilizadas pelo governo precisam ser mais assertivas a fim de mitigar as ações do grupo (GLOBAL TERRORISM INDEX, 2017).

Para além de táticas relacionadas aos assuntos de segurança, é preciso que o Estado seja mais efetivo em seu papel de garantir condições mínimas de vida para a população nigeriana, já que a insurgência do grupo se deve, em grande medida, pelo fracasso do ator estatal em prover serviços que assegurem a dignidade da sua população. Caso contrário, a relativização do poder do governo nigeriano dentro de seu próprio território permanecerá, fragilizando ainda mais uma suposta coesão social que possa existir (GULARTE, 2015).

Ademais, não existe um fator único que desencadeou a insurgência do grupo Boko Haram, mas é perceptível que uma colonização que “ocidentalizou” o Estado nigeriano e um sistema político falho que foi adotado após esse período são variáveis de extrema relevância para compreender o cenário no qual o grupo surge e a dinâmica de funcionamento deste.

Referências

CIA. The World Factbook, 2018. Disponível em: <https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/ni.html&gt; Acesso em: 06 out. 2018.

GULARTE, Glauciele Dutra. A atuação do grupo Boko Haram sobre a população nigeriana. 2015. 77f. Monografia (Conclusão do curso) – Universidade Federal de Santa Maria, Curso de Relações Internacionais, Santa Maria. Disponível em: <http://www.nucleoprisma.org/wp-content/uploads/2016/03/GULARTE_2015.pdf&gt; Acesso em: 06 out. 2018.

HEGARTY, S. As meninas de Chibok: a cidade nigeriana que perdeu suas garotas. BBC News, Mbalala, 14 abr. 2016. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160414_nigeria_meninas_tg&gt; Acesso em: 08 out. 2018.

HUMAN RIGHTS WATCH. Spiraling Violence Boko Haram Attacks and Security Force Abuses in Nigeria, [S.I,], Human Rights Watch, 2012. Disponível em: <https://www.hrw.org/report/2012/10/11/spiraling-violence/boko-haram-attacks-and-security-force-abuses-nigeria&gt; Acesso: 06 out. 2018.

MURTADA, Ahmad. Boko Haram in Nigeria: Its Beginnings, Principles and Activities in Nigeria, Kano, SalafiManhaj, 2013. Disponível em: <https://www.academia.edu/19658730/Boko_Haram_in_Nigeria_its_beginnings_principles_and_activities_in_Nigeria?auto=download&gt; Acesso em: 05 out. 2018.

PRESSE, F. Presidente da Nigéria admite que garotas desaparecidas em Dapchi foram sequestradas. G1, 26 fev. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/presidente-da-nigeria-admite-que-garotas-desaparecidas-em-dapchi-foram-sequestradas.ghtml&gt; Acesso em: 08 out. 2018.

VISION OF HUMANITY. Global Terrorism Index, 2017. Disponível em: <http://visionofhumanity.org/indexes/terrorism-index/&gt; Acesso em: 05 out. 2018.SIC, Notícias. Toda a verdade. YouTube, 24 de março de 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=UrbrFAtkapY&gt; Acesso em: 08 out. 2018.

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