Um Peru em crise: o referendo reformista de Martín Vizcarra
Frederico Freire Fernandes
É comum que, em países da América Latina, as crises políticas suscitem olhares pessimistas ao futuro das práticas democráticas na região. Na verdade tais países compartilham de muitos problemas que colocam em risco a estabilidade e, em muitos casos, a própria continuidade de seus regimes democráticos, o que normalmente corrobora em parte para os diagnósticos pessimistas (BOTELHO, 2005). Em 2000, por exemplo, o Peru ainda encontrava-se sob o regime autoritário de Alberto Fujimori¹, marcado pela centralização política, perseguição e espionagem de oponentes e crimes contra os direitos humanos (ATWOOD, 2001).
E mais uma vez a democracia peruana atravessa por um período de instabilidade. Em março, o presidente peruano, Pedro Paulo Kuczynski, eleito em 2016, renunciou após o vazamento de vídeos que mostravam Kuczynski negociando com parlamentares votos necessários para barrar o segundo pedido de impeachment contra ele. Ambos os pedidos envolveram acusações segundo as quais Kuczynski, que foi ministro do Planejamento entre 2001 a 2006, durante a presidência de Alejandro Toledo, tinha se beneficiado indevidamente ao facilitar a atuação da Odebrecht no Peru. Ele nega, mesmo após sua renúncia, que sua empresa tivesse qualquer relação espúria com a empreiteira brasileira. Embora sua extradição tenha sido aprovada pelo Executivo peruano, Toledo encontra-se foragido e é acusado de envolvimento no grande esquema de propina relevado pela investigação brasileira Lava Jato (EL COMERCIO, 2018).
A presidência hoje é assumida pelo antes vice-presidente Martín Vizcarra, que prometeu em seu discurso de posse que seus esforços em reformar as instituições democráticas estarão em sintonia com o combate da corrupção que tem sido revelada recentemente. Propostas num momento crítico, as reformas de Vizcarra enfrentam um cenário no qual as crimes de corrupção não se limitam aos ex-presidentes Toledo e Ollanta Humala (2011-2016), mas inclusive atingem os juízes peruanos.
Para Fernando Tuesta, cientista político da Pontifícia Católica do Peru e ex-chefe da Oficina Nacional de Procesos Electorales (ONPE), organização auditora das eleições peruanas, a estrutura institucional peruana é repleta de problemas. Em 1990, Fujimori ganha as eleições, mas conquista poderes ditatoriais em 1992 após conseguir dissolver o congresso. Além disso, a criação do Ministério da Presidência permite que Fujimori controle importantes setores do governo federal antes coordenados por outros corpos institucionais. Este ministério, segundo Atwood (2001), em 1998, representava mais de 20% de todo o orçamento nacional peruano, além de controlar grandes fundos de investimento estatais relacionados ao financiamento de programas de moradia popular, saúde e educação. Para Atwood (2008), Fujimori assim como os ditadores Augusto B. Leguía (1919-30) e Manuel A. Odría (1948-56) acreditavam que a democracia e partidos políticos eram barreiras ao desenvolvimento. Todos eles centralizam poder e procuraram priorizar o investimento pensado em construções públicas, ou obras, como solução aos problemas peruanos (ATWOOD, 2008).
Mas a centralização desse período ainda influencia a política peruana. O congresso unicameral peruano foi criado em 1993 como parte dos movimentos de Fujimori em direção à centralização política, que, por sua vez, teve como efeitos uma diminuição e imposição de barreiras à representação das pequenas províncias peruanas (ATWOOD, 166, 2001). Um exemplo da sub-representação são os resultados das eleições legislativas nacionais. Em 2016, ganhando apenas 36% dos votos para o legislativo, o partido Força Nacional conseguiu eleger 73 das 130 cadeiras presentes no congresso, diminuindo consideravelmente a possibilidade de representação dos outros 21 partidos que compõem o sistema político peruano (AMERICAN QUARTERLY, 2018).
Hoje, no entanto, além da sub-representação, a única casa legislativa possui poderes suficientes para barrar em diversas frentes a atuação do Executivo. Dessa forma, partidos com maiores cadeiras no congresso como a Força Popular (FP), comandado hoje pela Keiko Fujimori e representantes da força política conhecida como fujimorismo no Peru, aproveitam-se para impor seus interesses na condução da política peruana. Embora Keiko tenha perdido as eleições em 2016, ela manteve o potencial de influenciar os resultados políticos, sendo considerada a responsável pela divulgação dos áudios que derrubaram PPK e afastou do parlamento seu irmão, Kenji Fujimori, que foi flagrado nos vídeos e pertencia a uma ala rival de Keiko dentro do partido Força Popular. Entretanto, as crises não se limitam ao congresso.
Em julho, a imprensa independente peruana, IDL Reporteros, publica a extensa reportagem “Corte y corrupción” na qual se revelam áudios do esquema de tráfico de influências mantido pelos mais altos membros do judiciário peruano. Nas conversas membros do Consejo Nacional de la Magistratura (CNM), instituição em cargo da nomeação, ratificação e destituição dos juízes no Peru, o presidente da Corte Superior de Justiça do distrito de Callao, membros da Suprema Corte peruana, além de possíveis parlamentares citados durantes os diálogos – acredita-se que Keiko foi citada –, estabeleciam favores e manipulavam acordos e medidas judiciais em benefício próprio. Após a revelação do escândalo, o presidente Martín Vizcarra aproveitou o momento para avançar sua agenda de reformas institucionais. A principal dessas medidas foi a convocação de um referendo que ocorrerá em 9 de dezembro e consultará a população peruana sobre as quatro reformas do Estado peruano enviadas pelo Executivo ao Congresso, entre elas uma que pretende atingir diretamente as práticas de corrupção no Judiciário reveladas pela imprensa peruana (EL COMERCIO, 2018).
A proposta de Vizcarra transformaria o Consejo Nacional de la Nagistratura (CNM), alvo das denúncias de corrupção, em uma Junta Nacional de Justicia (JNJ) com a seleção de seus membros se dando através de concursos públicos que avaliariam os mérito dos candidatos às funções da Junta (IPSOS, 2018). Além desta medida, propõe-se também uma maior regulação do financiamento recebido pelos partidos políticos, que estariam proibidos de receberem doações anônimas e obrigados a prestar contas da entrada e saída dos recursos utilizados durante as suas campanhas eleitorais.
Em outro aspecto, as duas outras medidas afetam diretamente a configuração institucional e as eleições para o legislativo peruano. Por um lado, Vizcarra propõe que os congressistas não terão permissão para se reelegerem de maneira imediata após o término de seu mandato e, por outro lado, que haja a volta do bicameralismo ao Congresso. Seria assim mudanças mais profundas do que aqueles praticadas por presidentes anteriores. O unicameralismo peruano sofreu modificações ainda sob o regime de Fujimori, que expandiu o número de parlamentares para 120. Posteriormente, durante a presidência de Ollanta Humala (2011-2016), o número de parlamentares aumentou novamente para o total atual de 130 membros.
Mas o projeto aprovado pelos parlamentares fizeram o presidente peruano mudar seu posicionamento sobre a criação das duas casas legislativas. Ele declara não aprovar a mudanças feitas ao projeto pelo atual Congresso peruano, orientando seu governo à uma postura contrária ao projeto e gerando questionamentos dos parlamentares que propiciaram o andamento da agenda de Vizcarra. Essas modificações extinguiriam a proposta de paridade na composição de homens e mulheres das futuras casas e aumentaram a quantidade de membros de ambas as casas, de 30 para 50 senadores e 100 para 130 deputados.
A pesquisa opnión data realizada em setembro pelo Ipsos, empresa de pesquisa e inteligência francesa, demonstra que, em grande parte, a população peruana aprova as reformas que serão colocadas para avaliação durante a consulta popular em dezembro. A regulação do financiamento de campanha encontra a maior porcentagem de aprovação entre os peruanos, com 69% dos entrevistados mostrando-se a favor de uma maior regulação dos recursos recebidos pelos partidos políticos. De certo modo, as medidas também resultaram em um ganho político ao presidente peruano que, após meses de aumento, presenciou sua rejeição diminuir para 48% em julho para 44% em setembro, ainda que sua aprovação continue em queda (45% em setembro) se comparada com a do início de seu mandato no cargo da presidência (57% em abril).
Se aprovadas em dezembro, a efetividade das medidas não se revelaram imediatamente, ainda mais aquelas que trazem mudanças somente para as próximas eleições gerais em 2021. Mas certamente o Peru encontra-se em uma conjuntura não tão distinta da de outros países da América do Sul. As semelhanças entre a conjuntura política peruana e a brasileira, por exemplo, são de fato inúmeras, ambos países sofrem da prática generalizada da corrupção, atravessaram processos de destituição de presidentes como também tentativas de reforma política. Nesse sentido, os atuais desafios enfrentados pelo Peru tratam-se sobretudo da estabilidade do regime democrático no país, e exigirão inúmeros esforços e consenso (tanto dos políticos quanto da sociedade civil) para que as mudanças necessárias sejam implementadas e criem condições para o desenvolvimento sustentável do sistema político peruano.
Notas
[1] Eleito presidente peruano em 1900, após derrotar o Nobel Mario Vargas Llosa, Alberto Fujimori dissolve o congresso em 1992. Seu regime foi caracterizado pela centralização política, cooptação da imprensa peruana, espionagem de oponentes e a modernização da economia peruana através da massiva presença de investimentos externos e privatizações, que sanou problemas como os criou. Após acusações de fraudes nas eleições de 2000, Fujimori é forçado a renunciar e se exilar no Japão. Preso desde 2005, o ditador peruano é acusado judicialmente de crimes contra humanidade durante seus anos no poder.
Referências
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TEGEL, Symeon. Why Peru’s Presidents Are Set Up to Fail. 2018. Disponível em: <https://www.americasquarterly.org/content/why-perus-presidents-are-setup-fail>. Acesso em: 13 mar. 2018.
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CHARLEAUX, João Paulo. O que é o fujimorismo e como ele pode voltar ao poder no Peru. 2018. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/06/02/O-que-%C3%A9-o-fujimorismo-e-como-ele-pode-voltar-ao-poder-no-Peru>. Acesso em: 02 jun. 2018.
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