Um Equador pós-correísmo: virtudes e desafios
Frederico Freire Fernandes
11/01/2019
Como principal líder da esquerda equatoriana na última década e responsável pela Revolução Cidadã¹, o ex-presidente Rafael Correa não esperava que a eleição de um membro do seu próprio partido, o Aliança Política, poderia significar na verdade uma rejeição de sua influência sobre a política equatoriana (INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS, 2018). No entanto, um ano após sua chegada à presidência, além de ter provocado a saída de Correa do partido e uma divisão interna da Aliança Política, Moreno toma medidas que o afastam do correísmo que marcaram a última década da política equatoriana e fazem jus a sua promessa de uma governança independente (EL PAÍS, 2018). Para Mario Vargas Llosa, “Moreno tem procurado serenar o ambiente político e propiciar a coexistência pacífica entre as distintas forças e partidos a fim de que haja consensos que permitam reformas e progresso” (EL PAÍS, 2018). Moreno aparenta lançar suas apostas em um centrismo político que consiga reunir o apoio necessário para o enfrentamento dos presentes problemas do Equador.
Em 2006, quando Correa alcançou a presidência do Equador, ele procurou enfrentar a forte instabilidade política do país, os efeitos de um conturbado processo de dolarização e as consequências dos altos níveis de pobreza. Por um lado, a gestão de Correa representou avanços significativos à população equatoriana, que presenciaria pela primeira vez a conclusão de um mandato de um presidente e ainda sua reeleição por outro dois. Houve de fato uma recuperação no funcionamento das instituições políticas e um aumento no nível do bem-estar da população no país. Em 2013, o Equador diminuía em 10% sua população na faixa da pobreza, bem como aumentava o acesso ao mercado de trabalho (POLGA-HECIMOVICH, 2013). Ambos avanços garantiram o sucesso eleitoral de Correa, sobretudo durante seus dois primeiros mandatos.
Por outro lado, a era do “correísmo” (ver Meléndez e Moncagatta:2017) também foi marcada pelas práticas características de governos populistas e personalistas que expõem a fragilidade de grande parte das democracias latino-americanas (POLGA-HECIMOVICH, 2013). A centralização política foi, por exemplo, um dos principais traços dos governos de Correia. Segundo Polga-Hecimovich (2013), como chefe do Executivo Correa era capaz de imprimir suas vontades sobre as diversas facetas da política equatoriana, inclusive exercendo peso sobre as instituições do Judiciário. A falta de uma oposição sólida ao governo, fruto da deslegitimarão das elites políticas equatorianas e um legislativo fraco e pouco plural, talvez sejam as principais razões por trás dessa dinâmica. Além disso, Correa também é acusado de práticas antidemocráticas que restringiriam a liberdade de expressão e imprensa no Equador; o presidente hoje é lembrado pelo seus recorrentes ataques à impresso do país. Embora não tenha sido aplicada – ou nem mesmo revogada –, a aprovação da Lei Orgânica da Comunicação suscitou inúmeras críticas das organizações internacionais (EL PAÍS, 2018).
No entanto, a crise econômica equatoriana e um desgaste político do correísmo, sobretudo após a revelação dos escândalos de corrupção envolvendo Correa e seus aliados, impediram que sua figura política exercesse preponderância total sobre a política equatoriana. Em 2016, o Equador presenciou uma contração de –1,5% do PIB após dois anos de seguida desaceleração das atividades econômicas no país. A atual crise econômica demonstra as vulnerabilidades inerentes do funcionamento estrutural da economia equatoriana (CASTILLO, 2017). A forte dependência da economia do país sobre as receitas geradas pela exportação de commodities torna o Equador vulnerável às flutuações dos preços internacionais desses produto – caso especial do petróleo, que representa um grande volume das receitas do próprio governo federal. Embora tenha impedido um processo de hiperinflação ou mesmo um aprofundamento da recessão econômica (ver Cato Institute:2016), alguns argumentam (ver Castillo: 2017) que a dolarização também restringe as ferramentas que o governo equatoriano tem em mãos para reagir aos ciclos dos mercados internacionais, dificultando portanto um processo de recuperação e reformas.
Para muitos, no entanto, os resultados do referendo do início de 2018 marcam o fim definitivo do legado do correísmo e, de certa forma, do próprio futuro político do ex-presidente Correa, que hoje se encontra exilado na Bélgica e sob investigação pela justiça equatoriana por crime organizado no caso de corrupção envolvendo a empreiteira brasileira Odebrecht. Além de propor ações contra a corrupção, o principal alvo do referendo de Moreno era justamente a mudança constitucional que permitiria a volta de Correa ao poder. Proposta e aprovada em 2015, a mudança constitucional apresentada por Correa permitiria a reeleição indefinida a todos os cargos eletivos. No entanto, a regra seria somente aplicada a partir das eleições de 2020, jogada que garantiria a sobrevivência da figura e candidatura de Correa (EL PAÍS, 2018). Não obstante, o plano foi enterrado pela consulta popular convocada pelo atual presidente Moreno, que reverteu e impediu o artifício que, segundo ele, destoaria o regime equatoriano das práticas que constituem uma verdadeira democracia. Para Correa, Moreno tornou-se na verdade seu principal opositor e adversário (EL PAÍS, 2018).
Traidor ou não, Moreno é hoje quem ocupa a presidência do país e precisa, em certa medida, lidar com os problemas deixados por Correa e décadas de instabilidade e vulnerabilidade político-econômica (INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS, 2018). Um das principais consequências do fim do ciclo de commodities – que lastreou em grande parte o aumentos dos investimentos e gastos estatais da era Correa – tem sido a produção de gigantescos déficits fiscais (IMF, 2018). Em 2018, o Equador finalizará o ano fiscal com um déficit de 4% do PIB, e o presidente Moreno aparenta reconhecer a gravidade da situação econômica equatoriana e estar disposto a mudar a trajetória em busca de uma solução à crise. Para o Fundo Monetário Internacional (2018), o boom de commodities mascarou a necessidade de reformas que aumentassem a competitividade dos países e revertessem a queda da produtividade em grande parte dos países latino-americanos, sobretudo entre aqueles como Equador majoritariamente exportadores de petróleo. Ao lado da Bolívia e Venezuela, o Equador apresentou nos últimos um desempenho consideravelmente abaixo se comparado a economia a chinela, por exemplo (EXPRESS, 2018).
É necessário que se note, no entanto, que o comprometimento do orçamento público afeta negativamente a continuidade de programas de transferências de renda como o Bono de Desarrollo Humano (BHC) e Crédito de Desarrollo Humano (CDH) implementados no Equador nos últimos anos. Ambos os programas que, segundo Gassmann e Mora (apud WEF, 2018), produzem benefícios sociais não somente no curto prazo, uma vez que, ao longo prazo, também permitem uma maior mobilidade social dos setores mais pobres da sociedade equatoriana. Embora as autoridades declarem que um maior déficit previsto para 2019 ainda seja gerenciável, é inegável que isso impõe maiores desafios ao governo de Moreno (EL UNIVERSO, 2018).
Em suma, se for seu objetivo manter as virtudes do desenvolvimento econômico, bem como expandi-las, o presidente Moreno deve necessariamente enfrentar os atuais desafios do Equador. Moreno precisa, portanto, minimizar os crescentes déficits fiscais que inviabilizam os gatos sociais e a recuperação econômica do país, bem como propor uma agenda político-econômica que modernize a economia equatoriana, ataque a ineficiência e a corrupção das instituições e contribua para estabilidade macroeconômica e competitividade do país (IMF, 2018). Se o referendo do início do ano demonstrou a preocupação genuína do presidente Moreno com os efeitos da corrupção praticada por diversas autoridades do Estado equatoriano, não podemos nos esquecer que, para haver um avanço das reformas expostas acima, o presidente Moreno certamente dependerá do consenso político que ele hoje procura estabelecer dentro do seu próprio partido e entre os diversos setores do país.
Notas
- A “Revolução Cidadã” refere-se as mudanças sociais e políticas engendradas pelo governo do presidente Rafael Correa. A partir da lógica política do Bem Viver e de propostas econômicas neodesenvolvimentistas, o período (2006-2017) foi marcada por uma avanço do bem-estar da parcela mais vulnerável da população equatoriana, bem como um aumento dos benefícios sociais direcionadas à população e uma maior participação de movimentos sociais na política do país (INSTITUTO HUMANITAS…, 2018).
Referências
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