As crianças-soldado do Sudão do Sul
Lorrayne Figueiredo Batista
O Sudão do Sul está localizado no norte da África e faz fronteira com o Sudão, a Etiópia, o Quênia, Uganda, a República Democrática do Congo e a República Centro-Africana. O país possui 10,204,581 habitantes e área de 644.330 km², e teve sua emancipação em relação ao Sudão em 9 de julho de 2011, após 22 anos de guerra civil, se tornando o mais novo Estado do mundo. Essa separação se deu por meio de um referendo, em que 98% da população votou a favor da independência. (CIA FACTBOOK, 2018)
Porém, apesar da vitória da vontade da maioria, com tempo notou-se que o recente Estado estava sendo criado com bases problemáticas graves, com inúmeras convulsões sociais e crises humanitárias. Dessa forma, o conflito interno – que é considerado o de maior duração no continente africano – não acabou, apenas foi elevado ao âmbito internacional. Este fato gerou uma crise social no país, o que resultou no agravamento de conflito no território.
Imagem 1: Mapa do Sudão do Sul

A população sudanesa é diretamente atingida pela guerra civil, que tem sua base firmada em premissas étnicas, geográficas, religiosas, políticas e sociais. Em meio a tal caos, um dos problemas que mais chamam a atenção do sistema internacional é o recrutamento ilegal de menores para combate: as crianças-soldado.Imersos em um contexto de fragilidade e instabilidade política, muitos jovens se veem desamparados pelo governo e, na maioria da vezes, pelas famílias, que devido ao conflito foram obrigadas a abandonar suas casas em busca de refúgio. Para exemplificar a seriedade do problema, a situação do Sudão do Sul foi caracterizada pelo alto comissário da ONU para os Direitos Humanos, Zeid Ra’ad al-Hussein, como “uma das situações mais espantosas do mundo para os direitos humanos” (AL-HUSSEIN, 2016). É nesse momento que rebeldes, milícias e grupos terroristas aproveitam a vulnerabilidade destas crianças e utilizam sua força ainda em desenvolvimento para ensinar e impor atos de guerra no país com a maior taxa de crianças fora da escola (CARPANEZ, 2019). Assim, as crianças-soldado são consideradas uma solução fácil e de baixo custo;
“Elas são facilmente aliciadas – quando não raptadas –, facilmente treinadas para cumprir as ordens mais atrozes, são mais obedientes, não questionam ordens, são manipuláveis e sobretudo mais controláveis. A sua imaturidade não lhes permite ter discernimento sobre os atos que cometem, não são capazes de medir as consequências das suas ações, nem valorá-las, pois os mecanismos de limitação de comportamento estão ainda em fase de desenvolvimento pelo que, nos ambientes mais hostis, tomam atitudes que não seriam tão facilmente tomadas por adultos.” (CORREIA, p.4, 2013).
O processo de recrutamento divide-se em três momentos: a doutrinação, o treino e, por fim, o combate. No primeiro, as crianças são apresentadas à visão de mundo de um soldado, recebendo estímulos e influências para não abandonarem o campo de batalha e, mais que isso, se sentirem orgulhosos de seu serviço. No segundo, os menores são ensinados técnicas básicas de guerrilha, como limpar e disparar armas, colocar minas e montar emboscadas. Na última parte do processo, quando consideradas prontas para combate, as crianças-soldado são postas em cenário de guerra ativo, e são obrigadas a colocar em prática o ensinamento recebido por seus superiores. É nesse momento que os menores têm o primeiro contato com a violência propriamente dita, e, a partir disso, passam a promover ações típicas de guerra, como ataques contra civis, assassinatos, estupros, torturas, saques e roubos (CARPANEZ, 2018).
Nesse contexto, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) colocou o Sudão do Sul em primeiro da lista dos países que mais têm recrutado menores nos últimos anos. Os mesmos dados divulgados ainda apontam que as crianças sudanesas não conhecem outra realidade, já que 2,6 milhões delas nasceram durante a guerra. Ademais, os números revelados pelo órgão mostram que 85% das crianças soldado têm sequelas; 15% apresentam consequências patológicas e 5% têm sérios problemas psiquiátricos (CARPANEZ, 2018). Por isso, na tentativa de solucionar a questão, algumas Organizações Internacionais (como a ONU) pressionam o Estado sudanês para que medidas contra a situação sejam tomadas, adotando intervenções diretas e missões humanitárias no país. Além disso, essas OIs declaram publicamente a sua aversão à essa conjuntura e a necessidade de que líderes e indivíduos em posições de comando tomem medidas necessárias para impedir o recrutamento infantil para forças armadas e intuitos de guerra.
Por essa pressão externa, o Governo atual, comandado por Salva Kirr, assinou um acordo de paz com o principal grupo rebelde (responsável pelo maior número de recrutamentos infantis), comandado por Riek Machar, com a intenção de demonstrar interesse em erradicar o crime. Contudo, em ação, o tratado é visto pelo sistema internacional como “frágil, no qual ninguém confia totalmente” (CARRETERO, 2018). Confirmando as expectativas, na prática, as hostilidades perseveram. As decisões políticas do atual governo sudanês não demonstram real afinco em solucionar a questão infantil no país, dando prioridade aos conflitos nacional e internacional e negligenciando as questões humanitárias. De acordo com o International Crisis Group (ICG), “as antigas partes do conflito (…) se preparam cada vez mais para um conflito em grande escala”, ignorando o acordo e perseverando a problemática no país onde impera a lei da violência.
REFERÊNCIAS
BOSWELL, Alan. South Sudan: Peace on Paper. International Crisis Group, [S.l.]: 14 Dec. 2018. Disponível em: https://www.crisisgroup.org/africa/horn-africa/south-sudan/south-sudan-peace-paper. Acesso em: 10 out.. 2019.
CARPANEZ, Juliana. Nascidos para matar. UOL, São Paulo, 11 mar. 2018. Disponível em: https://www.uol/noticias/especiais/criancas-soldado-sudao-do-sul-.htm. Acesso em: 10 out. 2019.
CARRETERO, Nacho. “Eu sou uma criança soldado”. El País Brasil, [S.l.]: 12 ago. 2018. Disponivel em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/10/internacional/1533901618_963321.html. Acesso em: 9 out. 2019.
CIA Factbook. South Sudan. Disponível em: https://www.cia.gov/library/publications/resources/the-world-factbook/geos/print_od.html. Acesso em: 20 out. 2019.
CORREIA, Ana Catarina Amaral. Crianças-Soldado: O Problema no Caso de Darfur. Out. 2013. Tese (Mestrado em Direitos Humanos) – Universidade do Minho Escola de Direito, Portugal: 2013. Disponível em: http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/27808/1/Crian%c3%a7as-Soldado%20-%20O%20Problema%20no%20Caso%20de%20Darfur.pdf. Acesso em: 17 out. 2019.
DIA Internacional contra a Utilização de Crianças Soldado. UNICEF, [S.l.]: 12 fev. 2019. Disponível em: https://www.unicef.pt/global-pages/_/criancas-soldado/. Acesso em: 16 out. 2019.
DIREITOS humanos no Sudão do Sul é muito precário, diz ONU. EXAME, [S.l.]: 11 mar. 2016. Disponível em: https://exame.abril.com.br/mundo/direitos-humanos-no-sudao-do-sul-e-muito-precario-diz-onu/. Acesso em: 15 out. 2019.
ENTENDA os fatores envolvidos na independência do Sudão do Sul. BBC News Brasil, [S.l.]: 8 jul. 2011. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2011/07/110708_sudaosul_q-a_pai. Acesso em: 9 out. 2019.
NO Sudão do Sul, 75% das crianças nasceram durante a guerra. ONU Brasil, [S.l.]: 10 jul. 2018. Disponível em: https://nacoesunidas.org/no-sudao-do-sul-75-das-criancas-nasceram-durante-a-gurra/. Acesso em: 9 out. 2019.
ONU: situação de direitos humanos no Sudão do Sul está entre as ‘mais horríveis no mundo’. Rede Brasil Atual, [S.l.]: 11 mar. 2016. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/mundo/2016/03/onu-situacao-de-direitos-humanos-no-sudao-do-sul-esta-entre-as-mais-horriveis-no-mundo-1628/. Acesso em: 17 out. 2019.