Foto: Interpol
Tráfico Humano na África Ocidental
Por Giulia Rafaela Santos Schettini.
O tráfico humano constitui um enorme problema na região da África Subsaariana como um todo e principalmente na África Ocidental. Os crescentes índices de tráfico humano nesta região, principalmente de crianças em situação de exploração sexual e trabalho escravo são aspectos preocupantes na realidade da região. Dessa forma, a presente análise procura analisar as características e a natureza do fluxo de tráfico humano nos países da África Ocidental, explicando de que forma as populações estão vulneráveis a essa realidade, quais são as alternativas articuladas pelos respectivos Estados para resolver o problema, quais as iniciativas de órgãos internacionais, como a ONU, para alterar essa realidade e como essa questão afeta as dinâmicas da região. A escolha do tema de pesquisa se torna pertinente a fim de possibilitar um maior entendimento de questões e crises que afetam as comunidades que residem nesses Estados. Foram desprendidos esforços em análise dos dados apresentados nos relatórios de tráfico humano da UNODC e leitura de artigos sobre o tema.
O tráfico humano como base teórica.
Para caracterizar formalmente as características desse tráfico, é importante apresentar a definição internacional de Tráfico Humano, que serve de referência teórica para a análise. Essa definição, segundo o Protocolo contra o Tráfico das Nações Unidas consiste em:
(…) recrutamento, transporte, transferência, mantimento ou recebimento de pessoas, por meio de ameaças ou uso da força ou outras formas de coerção, de abdução, de fraude, de enganação, de abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade ou do fornecimento ou recebimento de pagamentos ou benefícios para alcançar o consentimento de uma pessoa possuir controle sobre outra pessoa, pelo propósito de exploração. Exploração deve incluir, no mínimo, a exploração da prostituição de outros ou outras formas de exploração sexual, trabalho ou serviços escravos, escravidão ou práticas semelhantes a escravidão, servidão ou remoção de órgãos; (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2014, p.2. Tradução nossa¹).
No entanto, alguns aspectos importantes a serem pontuados sobre o que é compreendido por tráfico humano na lei internacional seriam: a distinção em relação a crianças (menores de 18 anos), pois nesses casos, segundo o protocolo, os meios pelos quais esse processo se dá são irrelevantes para a caracterização de determinados casos como tráfico humano, considerando apenas a ação inicial e o propósito desta, sendo o último especialmente o propósito de exploração; a desconsideração de questões como cruzamento de fronteiras; e a impossibilidade de consentimento nos casos de tráfico humano, uma vez que toma a liberdade dos indivíduos (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2014).
A definição de tráfico humano é central para a análise desse problema na África Ocidental, uma vez que este se dá frequentemente com o consenso dos envolvidos. Essa relação faz com que a questão do tráfico seja entendida como escravidão por parte da mídia, no entanto, como apresentado anteriormente, a coerção ou relação de poder que é estabelecida sobre essas pessoas em situação de vulnerabilidade, e que tem como finalidade a exploração das mesmas, configura tráfico humano (DOTTRIDGE, 2002).
Contextualização do problema na África Ocidental
O tráfico humano, como apresentado anteriormente, possui diferentes meios de se exercer controle e tem como objetivo a exploração de indivíduos. No entanto, algumas formas de tráfico se destacam em diferentes localidades, dependendo do contexto social, econômico e político daquelas regiões. Segundo relatório da UNODC (2018), as principais formas de exploração das pessoas vítimas de tráfico humano na África Ocidental são o trabalho escravo e a exploração sexual, e possuem como principais vítimas meninos e meninas que ainda não atingiram a idade adulta.
Em artigo, Kathleen Fitzgibbon (2003) aponta que uma das questões facilitadoras do tráfico humano na região seria a prática cultural de atribuição da criança. Essa prática tradicional consiste na alocação de uma criança em famílias ricas (localizadas principalmente no meio urbano), por sua própria família, com a intenção de que esta tenha acesso a uma vida melhor, com expectativas de oportunidade de trabalho e educação. Em um contexto de desemprego e pobreza, essa prática é comum frente a vulnerabilidade das famílias, influenciadas, muitas vezes, por pessoas conhecidas com falsas promessas. Desta forma, as famílias envolvidas são enganadas ou sofrem coerção por parte dos recrutadores, que traficam as crianças destinadas a trabalho escravo, sofrendo diversos tipos de abusos físicos, sexuais e psicológicos (FITZGIBBON, 2003).
A autora apresenta que a ignorância aos riscos de tráfico, exposição à realidade fora dos vilarejos e as crescentes demandas por mão de obra barata e exploração sexual de crianças, são alguns dos aspectos que impulsionam os crescentes índices de tráfico na região. Além disso, conflitos internos aumentam a vulnerabilidade dessas populações, fazendo com que se tornem alvos frágeis desse tipo de exploração. As vítimas de tráfico em meio a esses conflitos são comumente utilizadas como integrantes da força militar, trabalho escravo ou trabalho sexual para oficiais militares (FITZGIBBON, 2003).
Assim, a partir das informações apresentadas anteriormente, pode-se observar que essas características de exploração na África Ocidental estão associadas a diferentes fatores como a miséria, a fome, o desemprego e conflitos locais que que assolam a região, tornando essas comunidades vulneráveis a atuação de grupos criminosos que se aproveitam desses indivíduos.
Grupos criminosos, que se aproveitam dessa exposição e dos costumes dessas comunidades, possuem baixos riscos com o desempenho de tal atividade ilegal, uma vez que o transporte dessas pessoas traficadas é mais seguro do que o transporte de drogas e armas. Considerando também os vínculos com esses outros tipos de crime transnacional, possibilitando o conhecimento acerca de rotas mais seguras. Esses grupos possuem alta lucratividade uma vez que a venda de suas vítimas se dão a altos preços. Esses fatores fazem com que tal comércio de pessoas siga presente e com índices que se mantem crescentes (FITZGIBBON, 2003).
Fitzgibbon (2003) aponta que, o tráfico acaba por interferir nas relações afetivas de diversas famílias africanas e afeta fortemente a tradição dessas comunidades, uma vez que ele, segundo a autora, “(…) interrompe a passagem de conhecimentos e valores culturais de pais para filhos e de geração para geração, enfraquecendo o que é um pilar central para muitas sociedades africanas” (FITZGIBBON, 2003, p.8; tradução nossa²).
Ademais, como aponta relatório da UNODC, o tráfico ainda tem impactos cruéis e muitas vezes permanentes em suas vítimas, que muitas vezes sofrem abusos físicos e psicológicos irreparáveis, adquirem doenças como HIV/AIDS ou vício em drogas, além de danos emocionais graves em razão de sua exploração prolongada e o medo da repercussão de suas experiências em suas comunidades. No caso das crianças, ainda mais vulneráveis e indefesas à algumas práticas abusivas, esses artifícios têm consequências significativas em seu crescimento (UNODC, 2008).
Outro aspecto afetado pela forte presença do tráfico humano na região é seu efeito negativo no mercado de trabalho e desenvolvimento dos países. Isso se dá uma vez que a imposição do trabalho escravo às crianças faz com que elas não possuam oportunidades de estudo, o que possibilitaria sua ascensão social e, em uma perspectiva geral, contribuindo para o desenvolvimento do país, o que acabaria com a vulnerabilidade dessas populações (FITZGIBBON, 2003).
Medidas de combate ao tráfico humano
Como discutido, as vulnerabilidades desses Estados estão relacionadas a conflitos, pobreza e instabilidade política, de forma que fica claro observar a dificuldade dos governos locais de tratar dessas questões e interromper esses fluxos, protegendo as populações locais. Além disso, o governo possui como impedimento a corrupção de setores essenciais para o combate dessas práticas criminosas, como a polícia, os oficiais de imigração e alguns juízes (FITZGIBBON, 2003).
Outra questão restritiva a atuação dos governos para o combate ao tráfico seria a limitação desses países em identificar ou detectar casos de tráfico humano. De acordo com relatório da UNODC (2018), conforme a variedade de destinações de pessoas traficadas na região e a grande quantidade de vítimas, é explícita a falta de proporcionalidade frente esses números e aqueles de indivíduos que foram condenados pelo crime nos países da região da África Subsaariana. Ademais, existem alguns países que não possuíam nenhuma condenação por tráfico ou nenhuma informação (UNODC, 2018).
No entanto, pode-se observar uma mobilização por parte de organizações como a ECOWAS³ no que tange a implementação de planos de ação que visam combater a prática de tráfico, principalmente na proteção de pessoas mais vulneráveis ao tráfico (ECOWAS,2019). Além disso, deve-se considerar a atuação de órgãos como a UNODC, que inclusive já desempenhou treinamentos de oficiais de justiça para contribuir com a condenação de criminosos, e algumas ONGs que lidam com auxílio às vítimas do tráfico (PAPACHRISTOU, 2019).
Considerações
A partir da discussão pode-se concluir que o tráfico humano é um problema que assola gravemente a maioria dos estados componentes da África Ocidental e é causado por vulnerabilidades desses estados e tem como consequência a perpetuação destas. Dessa forma, dado o elemento fronteiriço do assunto, acaba por afetar suas interações no que tange a necessidade de cooperação por parte de todos estes Estados, juntamente à Organizações Internacionais e ONGs, para o combate ao tráfico humano.
Citações
¹ “the recruitment, transportation, transfer, harbouring or receipt of persons, by means of the threat or use of force or other forms of coercion, of abduction, of fraud, of deception, of the abuse of power or of a position of vulnerability or of the giving or receiving of payments or benefits to achieve the consent operson having control over another person, for the purpose of exploitation. Exploitation shall include, at a minimum, the exploitation of the prostitution of others or other forms of sexual exploitation, forced labour or services, slavery or practices similar to slavery, servitude or the removal of organs;”.
2 “Trafficking interrupts the passage of knowledge and cultural values from parent to child and from generation to generation, weakening a core pillar of most African societies.” (FITZGIBBON, 2003, p.8)
3 Economic Community of West African States (ECOWAS).
Referências:
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Human Rights and Human Trafficking. Fact Sheet No36. Nova York, 2014.
SAWADOGO, Wilfried Relwende. The Challenges of Transnational Human Trafficking in West Africa. African Studies Quaterly, Vol.13, 2012.
ADEPOJU, Aderanti. Review of Research and Data on Human Trafficking in sub-Saharan Africa. Human Resources Development Centre, Lagos, Nigeria. Vol.43, 2005.
UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME (UNODC). Global Report on Trafficking in Persons. Viena. 2018.
DOTTRIDGE, Mike. Trafficking in children in West and Central Africa. Gender & Development, p. 38-42. 2002.
FITZGIBBON, Kathleen. Modern day slavery?. African Security Review. p. 81-89. 2003.
UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME (UNODC). An Introduction to Human Trafficking. Viena. 2008.
ECOWAS. ECOWAS reviews strategy to curb trafficking in persons in the region. 11 jun. 2019. Disponível em: <https://www.ecowas.int/ecowas-reviews-strategy-to-curb-trafficking-in-persons-in-the-region/> Acesso em: 13 nov. 2019.
PAPACHRISTOU, Lucy. Interpol: Hundreds of Human Trafficking Victims Rescued in West Africa, OCCRP. 29 abr. 2019. Disponível em <https://www.occrp.org/en/daily/9661-interpol-hundreds-of-human-trafficking-victims-rescued-in-west-africa> Acesso em: 13 nov. 2019.