Texto Conjuntural: Cone Sul #6 – Corte Interamericana de Direitos Humanos: o caso Lhaka Honhat vs. Argentina

A atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos: o caso Lhaka Honhat vs. Argentina

Por Juliana de Faria Campos e Nina Foureaux

O seguinte texto tem como objetivo analisar de que forma o caso Lhaka Honhat representa uma mudança de postura da Corte Interamericana de Direitos Humanos frente aos direitos econômicos, sociais e culturais das comunidades indígenas.

No dia 6 de fevereiro de 2020, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) responsabilizou a Argentina pela violação de direitos de 132 comunidades indígenas localizadas na Província de Salta. Essa foi a primeira vez que a Corte aplicou o artigo 26 da Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos a fim de salvaguardar o direito a um ambiente sadio, à água e à identidade cultural de um povo (CORTE IDH, 2020). Esse caso representa um salto em relação ao escopo do Sistema Interamericano que passou, nos últimos anos, a abranger os direitos humanos de segunda e de terceira geração no continente americano.

O Estatuto da Corte IDH de 1979 em seu primeiro artigo define que a natureza e o regime jurídico da Corte consistem em:

[a] Corte Interamericana de Direitos humanos é uma instituição judiciária autônoma cujo objetivo é a aplicação e a interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A Corte exerce suas funções em conformidade com as disposições da citada Convenção e deste Estatuto (CORTE IDH, 1979).

Dessa forma, a Corte é responsável pela aplicação da Convenção Americana de 1978, que, por sua vez, é o principal tratado de Direitos Humanos no âmbito regional. Apesar da importância deste documento tanto para o Sistema Interamericano de DH quanto para a proteção desses direitos internamente, a Convenção – e, consequentemente, o Sistema Interamericano – são altamente criticados por protegerem majoritariamente os direitos de primeira geração (MATOS, 2015).

Vale salientar que a divisão dos direitos humanos em três gerações foi encabeçada por Vasak, que agrupou tais direitos baseados nos princípios fundamentais da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade – criando assim, as três gerações dos Direitos Humanos. A primeira geração consiste na ideia clássica de liberdade individual, centrada nos direitos civis e políticos. Os da segunda geração, por sua vez, estão relacionados a igualdade e ressaltam a importância do Estado como promotor dos direitos sociais, econômicos e culturais. Por fim, a terceira geração é norteada pela ideia de solidariedade e fraternidade, dessa forma, sua preocupação principal são os direitos difusos e os direitos coletivos. Podemos citar, por exemplo o direito ao desenvolvimento, direito à paz, direito de comunicação, direito de autodeterminação dos povos, ao meio ambiente sadio (SOUZA, 2017).

Assim, é importante observar que a Convenção Americana engloba um grande rol de direitos civis e políticos, porém se manifesta sobre os direitos de segunda e terceira geração apenas no artigo 26 intitulado “Desenvolvimento progressivo”:

Os Estados-Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados (OEA, 1969).

Apesar da existência do artigo 26, é possível observar diversas interpretações e limitações para a aplicação deste em sentenças. Assim, a fim de especificá-lo, foi criado o protocolo de San Salvador (1999) que mesmo englobando direitos essenciais de segunda e terceira geração não foi ratificado por todos os Estados americanos (MATOS, 2015). Percebe-se, então, uma falha da Corte IDH no que tange à proteção dos direitos econômicos, sociais, culturais e do direito ao desenvolvimento integral.

Foi somente em 2017 que a Corte Interamericana aplicou o artigo 26 ao decretar uma sentença no Caso Largos del Campo vs. Peru. Nesse caso, a Corte responsabilizou a República do Peru pela não garantia de direitos trabalhistas básicos (CORTE IDH, 2017). Dessa forma, esse pode ser considerado como o primeiro passo do Sistema Interamericano para expandir sua atuação englobando direitos econômicos, sociais e culturais (NASCIMENTO; CORREA; FERREIRA, 2019). Com o caso Lhaka Honhat vs. Argentina, a Corte dá um novo salto, englobando direitos mais coletivos relacionados ao meio ambiente e ao desenvolvimento dos povos.

O caso Lhaka Honhat vs. Argentina iniciou-se em 1998, porém estes 32 povos indígenas estão desde 1984 buscando legalizar suas terras e garantir os direitos básicos a sua população, por meio de tentativas de negociações com os diversos governos argentinos. Contudo, mesmo tendo chegado próximo à resolução do problema – com a criação de leis e decretos -, os indígenas não tiveram seu território legitimado pelo governo argentino, o que os levou a recorrerem à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CARRASCO; ZIMMERNAM, 2006).

Foi somente no dia 6 de fevereiro de 2020 – 36 anos após o início da desavença e 22 anos após ser encaminhado à Corte – que o caso finalmente foi sentenciado. A Corte decretou que o Estado argentino:

violó el derecho de propiedad comunitaria. Además, determinó que el Estado violó los derechos a la identidad cultural, a un medio ambiente sano, a la alimentación adecuada y al agua, a causa de la falta de efectividad de medidas estatales para detener actividades que resultaron lesivas de los mismos (CORTE IDH, 2020, p. 01).

Para tanto, a Corte levou em consideração três aspectos relacionados ao caso. Em primeiro lugar, o direito à propriedade comunitária indígena; em segundo lugar, o direito a um meio ambiente sadio, alimentação adequada, acesso a água potável e participação na vida cultural; e, em terceiro lugar, garantia de resolução judicial em tempo hábil (CORTE IDH, 2020). Assim, nota-se que na sentença de 2020 a Argentina foi condenada pela Corte IDH por desrespeitar diversos direitos que compõem as três gerações dos Direitos Humanos.

Dessa forma, o caso Lhaka Honhat vs. Argentina é uma representação do conhecimento que os povos indígenas têm sobre seus direitos, principalmente os da terceira geração. O caso durou 36 anos sendo um exemplo para as demais comunidades indígenas, ou mesmo outros povos, da América de que existem outros mecanismos, além dos estatais, que são responsáveis pela garantia dos Direitos Humanos.

A Corte IDH, sendo um aparato legal ao qual os Estados comprometeram-se a se submeter, acabou por permitir que as comunidades de Lhaka Honhat voltassem a ter uma vida digna e, assim, preservarem sua cultura e terra para as futuras gerações – garantindo o desenvolvimento integral dos povos -. É inquestionável a importância da cultura indígena para todo o mundo, de modo que ao passar a utilizar, de maneira mais eficiente, o artigo 26 a Corte IDH passa a salvaguardar a diversidade cultural.

Ainda que a Corte IDH tenha se engajado na proteção dos direitos humanos de povos minoritários anteriormente, o que inclui diversos casos relacionados à causa indígena, até o caso em questão a Corte possuía um foco somente na proteção dos direitos civis e políticos desses povos. Nesse sentido, o caso Lhaka Honhat apresenta um avanço da jurisprudência da Corte ao não só agir em observância a esses direitos em um caso contencioso, como também ao exigir do Estado argentino que reparações sejam realizadas. Tais medidas buscam compensar os danos causados aos povos da região, assim como promover e proteger os direitos de desenvolvimento progressivo dos povos que remetem a todas as gerações de direitos humanos.

Referências

CARRASCO, Morita; ZIMMERMAN, Silvina. El caso Lhaka Honhat: informe IWGIA 1. Buenos Aires: Ennio Ayosa Impresores, 2006.

CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Comunidades Indígenas Miembros De La Asociación Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) Vs. Argentina, Resumen oficial emitido por la Corte Interamericana, 6 fev. 2020. Disponível em: http://juristadelfuturo.org/wp-content/uploads/2020/04/resumen_400_esp.pdf. Acesso em: 20 mai. 2020.

CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Lagos Del Campo vs. Perú, 31 ago. 2017. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_340_esp.pdf. Disponível em: 20 mai. 2020.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Estatuto da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Aprovado pela resolução AG/RES. 448 (IX-O/79). Assembléia Geral da OEA, La Paz, out. 1979. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/v.Estatuto.Corte.htm. Acesso em: 20 mai. 2020.

MATOS, Monique Fernandes Santos. A omissão da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais. Caderno do Programa de Pós Graduação Direito UFRGS, Porto Alegre, v. 10, n. 02, out. 2015. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/ppgdir/article/view/50142. Acesso em: 20 mai. 2020.

NASCIMENTO, Laura Fernanda Melo; CORREA, Igor Zany Nunes; FERREIRA, Adriano Fernandes. Caso Lagos del Campo vs. Peru e seu Duplo Papel Paradigmático na Evolução da Justiciabilidade de Direitos Sociais perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Prim Facie, João Pessoa. v. 18, n. 39, p. 01-3, jan. 2020. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/primafacie/article/view/48760. Acesso em: 20 mai. 2020.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos. Assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, 22 nov. 1969.

SOUZA, Isabela. Direitos humanos: conheça as três gerações. Politize, [s.l.]. Disponível em: https://www.politize.com.br/tres-geracoes-dos-direitos-humanos/. Acesso em: 20 mai. 2020.

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