A Eleição de Evo Morales: do projeto neoliberal ao bloco nacional-popular e indígena
Júlia de Freitas Parzzanini
O presente estudo trata de analisar a ascensão do governo de Evo Morales, mas não somente. Para além dessa análise, o importante, aqui, é compreender a transição de um bloco neoliberal para um bloco nacional-popular e indígena entre os anos de 2000 e 2005.
Verdade é que a Bolívia foi considerada um dos maiores exemplos de sucesso de implementação das medidas de ajuste neoliberais, formuladas pelo Consenso de Washington, nos primeiros anos. Entretanto, e visando o objetivo desse trabalho de entender o porquê desse bloco neoliberal não ter consolidado sua hegemonia e poder na Bolívia, os impactos sociais decorrentes desse ajuste levaram a emergência de um novo bloco histórico com base nacional popular e indígena, que reivindicavam as medidas implementadas pelas classes dominantes bolivianas associadas ao capital financeiro internacional (GONÇALVES, 2013, p 17).
Por que tanta instabilidade política na Bolívia e o que explica a dificuldade de implementar o capitalismo neoliberal?No final dos anos 80, a América Latina se encontrava em uma situação macroeconômica muito difícil marcada pela estagnação econômica e por altas taxas de inflação decorrentes da dívida externa e da fuga de capital (BRESSER-PEREIRA, 1991, p. 4). O caso da Bolívia não era diferente, desde 1981 o produto interno bruto vinha caindo todos os anos e a inflação chegou a taxas de 20.000% ao ano (KOHL & FARTHING, 2007, p.60). A estagnação econômica na América Latina começou a causar preocupação nos Estados Unidos, em termos da capacidade de importar e de atender ao serviço da dívida externa, e, então, o economista John Williamson (1990) elaborou um documento, posterirormente chamado de Consenso de Washington, que informava sobre as causas da crise latino-americana e dizia os passos necessários para superá-la (BRESSER-PEREIRA, 1991, p.5).
Assim, o Consenso de Washington apontava 10 reformas necessárias para superar a crise na América Latina e, no geral, sugeria que para retomada do desenvolvimento era suficiente a liberação, privatização e estabilização da economia (BRESSER-PEREIRA, 1991, p.7). Esse modelo de desenvolvimento não era novo, pelo contrário, se tratava de medidas muito similares à aquelas empregadas nas ditaturas do Chile, Argentina e Uruguai, ou seja, eram medidas ortodoxas e liberais. O ponto mais importante do Consenso de Washington, foi que a adoção dessas medidas neoliberais era fundamental para que os países da América Latina pudessem receber ajuda de organizações internacionais (como o FMI e o BIRD) e renegociar a dívida externa (BANDEIRA, 2002).
O processo de reestruturação da política social e econômica neoliberal na Bolívia, teve início com as eleições de 1985, com a vitória de Victor Paz Estenssoro, do Movimiento Nacionalista Revolucionario (MNR), e se consolidou com o Decreto Supremo 21060, com a Nueva Política Económica (NPE) (KOHL & FARTHING, 2007, p. 60). A NPE foi aprovada, principalmente, pela burguesia boliviana (oligarquia comercial financeira) que viu seus interesses e suas visões econômicas representadas.
Entretanto, essa reforma estrutural da política e economia boliviana teve por fim instabilidade política e revolta popular– entre 2000 e 2005 e que antecede o governo Morales e o Estado Plurinacional – à medida que foi responsável por reduzir a qualidade de vida e as condições materiais da população:
Relocalização e fechamento de empresas, racionalização do orçamento estatal, ‘livre comércio, reforma tributária, desregulação, privatização, capitalização, flexibilização trabalhista, fomento às exportações e a lei Inra (que criou o Instituto Nacional de Reforma Agrária) centraram-se em prol da racionalidade empresarial, da taxa de lucro na gestão de força de trabalho, mercadorias, dinheiro e terras. Entretanto, com o tempo, seus efeitos se fizeram sentir de maneira dramática nas condições de vida das comunidades. (LINERA, 2010, p. 262).
Para entender essa nova crise política na Bolívia, é necessário entender o porquê desse bloco histórico neoliberal não ter conseguido se consolidar no poder e como, a partir disso, emerge um bloco histórico nacional-popular e indígena. Para isso, usaremos os conceitos gramscianos de bloco histórico, hegemonia e crise hegemônica. Em Gramsci a hegemonia, que nasce e se sustenta no interior da superestrutura[1], é uma forma de poder no qual a supremacia de um grupo está ligada não somente a dominação, mas também a direção moral e intelectual (GRAMSCI, 2002, p.62). Assim, a classe subalterna é condicionada a se perceber em uma condição inferior tendo em vista que os interesses da classe dirigente são construídos em uma superestrutura de tal forma que se tornam legítimos, naturalizados, universais, intelectualmente e moralmente superiores e aparecem como sendo o interesse de todos.
Destarte, a hegemonia é a forma de poder necessária para garantir conformidade de comportamento, sendo a coerção necessária apenas em casos desviantes (GRAMSCI, 2007). Assim, apesar da atividade hegemônica de um grupo dirigente começar antes da chegada deste no poder, é somente com a mobilização do aparelho estatal que a hegemonia se concretiza plenamente: “…por isso, já antes da chegada ao poder uma classe pode ser ‘dirigente’ (e deve sê-lo); quando chega ao poder torna-se dominante, mas continua a ser ‘dirigente’” (GRAMSCI, 2002, p.62-63).
No caso da Bolívia, a classe dominante burguesa que se consolidou até o final do século XX, careceu justamente da capacidade de universalizar e legitimar seus interesses diante da classe subalterna, ou seja, era uma classe dominante sem poder hegemônico. Além disso, o bloco imperial-burguês-colonial ((MOLDIZ, 2011) teve tanta dificuldade de consolidar o capitalismo neoliberal na Bolívia uma vez que, apesar de dominante, não era dirigente. Assim, apesar da tentativa desse bloco de criar visões e interesses que superassem a visão econômico-corporativa, seus interesses não se tornaram “dirigíveis” a classe dominada, de forma que alcançasse hegemonia (IAMAMOTO, 2001, p. 64). Na Bolívia, historicamente, as classes dominantes usam muito mais da coerção do que do consenso, o que leva a alta instabilidade política e suscetíveis alternância dos blocos históricos – vide a queda do nacionalismo revolucionário e o fim do neoliberalismo, a partir de 2000 (MOLDIZ, 2011).
Dessa forma, a ausência da hegemonia burguesa pelas classes dominante criou, consequentemente, dificuldade de manter e criar blocos históricos estáveis. Em Gramsci, bloco histórico é, além da aliança de classes sociais de função emancipadora, uma relação orgânica e dialética entre a estrutura e a superestrutura, ou seja, é o vínculo entre as relações socias de produção (forças materiais) e a ideologia – que é expressa no interior da superestrutura por meio da sociedade política e a sociedade civil (GRASMCI, 2004, p.250; GRAMSCI, 2007, p.12). Segundo Walter L. Adamson (1980, p.177) a partir de um bloco histórico pode se desenvolver a atividade hegemônica e, se hegemonia pode ser, também, da classe burguesa e conservadora, é possível que exista blocos históricos que não tenham função emancipatória.
Retomando ao caso da Bolívia, como consequência à dificuldade do bloco imperial-burguês-colonial (MOLDIZ, 2011) de estabelecer hegemonia, o que surge são as crises de hegemonia ou crises de Estado, que nada mais são que crises de representação e distanciamento entre interesses dos dominantes e dominados(GRAMSCI, 2007, p. 55). Nesse período, entre 2000 e 2005, a Bolívia entra em um processo “revolucionário” marcado pela Guerra da Agua (2000) e Guerra do Gás (2003), no qual emerge um bloco histórico formado pela aliança nacional-popular e a indígena, que compartilhavam do sentimento de descontentamento social (CUNHA FILHO, 2009) e tinham, enfim, função emancipatória.
Assim, e ainda como legado da revolução de 1952, o efeito das duas “guerras” foi a formação de um bloco nacional-popular e indígena que levou ao declínio do período de democracia pactuada iniciada em 1985 e a ascensão de Evo Morales do MAS (Movimento ao Socialismo) nas eleições de 2005 (CUNHA FILHO, 2009). Segundo García Linera, o MAS se destacou pois teve “capacidade de recolher a memória nacional-popular, marxista e de esquerda formada nas décadas anteriores, o que lhe tem permitido uma maior recepção urbana, multi-setorial e pluri-regional a sua convocatória” (GARCÍA LINERA, 2008, p. 390).
É a partir de 2006, com a eleição de Evo Morales, que há uma refundação do Estado Boliviano. Assim, diluída a tentativa de hegemonia do bloco histórico neoliberal anterior e consequente ascensão de um bloco histórico de caráter emancipatório, inicia-se um movimento para a formulação de uma nova constituição, que atenda aos interesses desse grupo e façam valer sua hegemonia. Assim, é aprovada a Lei 3.364, 2006, que convocava uma Assembleia Constituinte para reformulação total da Constituição. A nova Constituição, do governo Evo Morales, foi aprovada em 2009 e dava início ao Estado Plurinacional: “Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario” (Constituição da Bolívia, 2009).
Em síntese é possível dizer que a dificuldade da consolidação do capitalismo neoliberal na Bolívia está ligada com o fato do bloco histórico neoliberal nunca ter conseguido consolidar, de fato, sua hegemonia. O novo bloco em ascensão, unificado durante as revoltas entre 2000 e 2005, apesar de ser cedo para dizer sobre uma consolidação da hegemonia ou não, estabeleceu um novo marco para o Estado boliviano, principalmente no que diz respeito a sua representação plurinacional.
Referencias Bibliográficas
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. As políticas neoliberais e a crise na América do Sul. Rev. bras. polít. int. vol.45 no.2 Brasília July/Dec. 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-73292002000200007&script=sci_arttext&tlng=pt
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. A crise da américa latina: consenso de Washington ou crise fiscal?. Pesquisa e Planejamento Econômico, 21 (1),abril 1991: 3-23. Disponível em: http://www.bresserpereira.org.br/papers/1991/91-AcriseAmericaLatina.pdf
CUNHA FILHO, Clayton Mendonça. Evo Morales e os Horizontes da Hegemonia Nacional-popular e Indigenismo na Bolívia em perspectiva comparada. Rio de Janeiro 2009. Disponível em: http://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/21401/1/2009_dis_cmcunhafilho.pdf
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GARCÍA LINERA, Á. A potência plebeia: ação coletiva e identidades indígenas, operárias e populares na Bolívia. Tradução: Mouzar Benedito e Igor Ojeda. São Paulo: Boitempo, 2010
GONÇALVES, Rodrigo Santaella. Intelectuais em movimento: o Grupo Comuna na construção hegemônica antineoliberal na Bolívia. Campinas, 2013
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere – Introdução ao estudo da filosofia: a filosofia de Benedetto Crose. v. 1. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
______. Cadernos do Cárcere- Maquiavel, notas sobre o Estado e política. Volume 3; edição e tradução, Carlos Nelson Coutinho; coedição, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. – 3ª edição – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. Disponível em:
______. Cadernos do Cárcere.O Risorgimento, notas sobre a história da Itália. V. 5, edição e tradução de Luiz Sérgio Henriques; co-edição, Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. Disponível em:
IAMAMOTO, Sue Angélica Serra. O nacionalismo bolivariano em tempos de pluralidade: revoltas antineoliberais e constituinte (2000-2009. São Paulo, 2011.
KOHL, Benjamin; FARTHING, Linda. Impasse in Bolivia. Londres: Zed Books, 2007
MOLDIZ, Hugo. Bolivia em los tiempos de Evo: claves para entender el proceso boliviano. Bolívia: Ocean Sur,2009.
WALTER, L. Adamson. Hegemony and Revolution: A Study of Antonio Gramsci’s Political and Cultural Theory. Pp. x, 304. Berkeley, CA: University of California Press, 1980.
[1] Em Gramsci duas esferas se complementam no inferior da superestrutura, assim, “Estado= sociedade política+ sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção” (GRAMSCI, 2007, p. 244)
Fonte Imagem:https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/11/09/evo-morales-volta-a-bolivia-um-ano-apos-renunciar-a-presidencia.ghtml