Maria Clara de Oliveira Drawin
Com a recente popularização de plataformas online voltadas para a negociação de criptoarte e NFTs (non-fungible tokens, ou seja, uma criptomoeda indivisível que pode vir no formato de arte visual ou audiovisual), o debate sobre criptomoedas está em voga novamente. Mas além de discussões abstratas sobre lastro e fungibilidade, assim como a respeito do conceito benjaminiano de “aura” e arte, esse momento também possibilita revisitar conceitos mais relevantes para o âmbito político, como “soberania”.
Isso porque uma das demonstrações de soberania do Estado está em sua atribuição exclusiva e legítima da criação, manutenção e distribuição da moeda. Quando criptomoedas entram em jogo, moedas essas que existem em um espaço virtual desterritorializado e que não são atribuídas a nenhum Estado, surgem complicações legislativas e políticas.
Bitcoin é diferente: ela substitui totalmente moedas apoiadas pelo Estado por uma versão digital que é mais difícil de forjar, atravessa fronteiras internacionais, pode ser armazenado em seu disco rígido em vez de em um banco e – talvez o mais importante para muitos usuários de Bitcoin – – não está sujeito ao capricho inflacionário de qualquer chefe da Reserva Federal que decida imprimir mais dinheiro. (FORBES, 2011)
Como legislar domesticamente em um território ao mesmo tempo internacional e neutro, que não é vinculado a um Estado específico? Como absorver essas transações no mercado interno? Como um portador de grandes fortunas em criptomoedas poderia dar retorno social, seja gastando sua fortuna e movimentando a economia, seja sendo sujeito de taxações progressivas, por exemplo?
Esses questionamentos não têm solução simples, e estão sendo estudados e debatidos por especialistas há um pouco mais de uma década, com a ascensão desse mercado, em especial da bitcoin. Contudo, apesar dos possíveis riscos, criptomoedas inegavelmente abrem portas para inúmeras possibilidades, como por exemplo maior autonomia em relação a sanções econômicas no Sistema Internacional.
As criptomoedas foram aproveitadas por alguns países a fim de evitar sanções impostas a eles por alguns na comunidade global, uma vez que tais transações podem ocorrer sem supervisão ou rastreamento. A Venezuela tem sido líder na criação de criptomoedas apoiadas pelo governo para atingir esse objetivo. (CYBERDB, c2012-2017)
Partindo desse pressuposto, alguns Estados decidiram se arriscar na criação de sua própria criptomoeda nacional, dentre eles, notoriamente, está a Venezuela.
A partir do caso venezuelano, iremos analisar como a lógica das criptomoedas interage com as dinâmicas de poder no Sistema Internacional, sendo uma ferramenta que pode servir tanto para a manutenção de privilégios e hierarquias quanto para desafiá-los.
Para fazermos essa análise, porém, devemos compreender em um primeiro momento o que são criptomoedas e qual o seu funcionamento. De maneira resumida, criptomoedas são moedas virtuais que podem ou não ser centralizadas e que são associadas a uma blockchain, ou seja, uma espécie de registro virtual e público de dados e transações que validam as transações e legitimam a moeda.
Enquanto na economia real o valor da moeda tem lastro material e no mercado financeiro ela tem lastro na economia real, o valor das criptomoedas parte de uma especulação artificial. Ou seja, a criptomoeda vale porque se especula que ela irá valer mais no futuro, já que será mais “rara” ou de difícil obtenção.
O custo de energia de uma criptomoeda está vinculado ao seu preço atual. Isso ocorre porque as criptomoedas são projetadas para incentivar os mineiros – se não fossem amarradas, o retorno do valor potencial de uma bitcoin poderia cair abaixo do preço da eletricidade necessária para produzi-la. Por causa disso, o retorno financeiro contínuo da Bitcoin depende de moedas serem mais difíceis de fazer no futuro. As pessoas que investem em criptomoedas – como qualquer tipo de especulação de futuros – estão apostando que será melhor possuir esse recurso amanhã do que fazê-lo. (PIPKIN, 2021)
Existem duas principais formas de produzir esse valor artificial para as criptomoedas, que são a “Proof of Work” e a “Proof of Stake”. Em resumo, Proof of Work funciona da seguinte maneira:
(…) em um contexto digital, a escassez deve ser construída – não há nada que exija que o próximo bloco na blockchain seja mais difícil de fazer do que o anterior. Na verdade, o oposto deveria ser verdadeiro – os computadores se tornam cada vez mais eficientes e poderosos. Isso significa que qualquer escassez é artificial, um processo que exige cada vez mais energia, cada vez mais recursos perdidos para continuar a operar e retornar, por nenhuma outra razão do que garantir que amanhã será ainda mais caro – o que torna o desperdício de hoje um bom investimento. É por isso que a criptomoeda é valiosa. Não há nada de alta tecnologia nisso. Não há milagre. É simplesmente especulação futura sem a especulação – nenhuma suposição necessária, porque sabemos que haverá mais desperdício amanhã; ele está embutido na tecnologia. Tudo o que a criptomoeda faz é abstrair recursos em um mercado, tornando esses recursos indisponíveis para o futuro. (PIPKIN, 2021)
No que concerne à Proof of Stake:
Enquanto as moedas de proof of work exigem a resolução de quebra-cabeças cada vez mais intensivos em energia para entrar na loteria de quem vai cunhar a próxima moeda, as moedas de proof of stake têm uma abordagem diferente; as entradas em uma loteria PoS são distribuídas por “aposta mantida” em um sistema, geralmente por moedas atualmente em uma carteira individual. (PIPKIN, 2021)
Por fim, a partir dessa compreensão do que são criptomoedas, podemos passar para a análise do caso venezuelano.
Vivendo uma crise econômica e política, taxas inflacionárias cada vez mais altas, e em um Sistema Internacional arquitetado para sabotá-la ou dificultar sua recuperação, a Venezuela propôs no final de 2017 criar sua própria criptomoeda. Para alguns analistas, como visto anteriormente, essa movimentação tinha a intenção de evitar sanções econômicas no Sistema Internacional, vide sua relação delicada com as grandes potências. Para outros, o objetivo era contornar a crescente inflação no país.
A Venezuela viu sua moeda ficar praticamente sem valor após sofrer um dos piores períodos de hiperinflação desde a Segunda Guerra Mundial. (…) Até o governo lançou sua própria criptomoeda, a Petro, supostamente lastreada em petróleo, para solucionar a crise econômica. (BBC, 2019)
Independente de qual o argumento escolhido para justificar a entrada do Estado no mercado das criptomoedas, as duas justificativas partem da premissa que as criptomoedas seriam uma solução para problemas relacionados à liberdade e autonomia. Por um lado, há o argumento que é o Sistema Internacional que limita a Venezuela, através de sanções, por exemplo; contornar essa limitação, portanto, seria a finalidade dessa aposta. Por outro, há o argumento de que são os venezuelanos que têm seus direitos e sua autonomia restringidos pelo próprio Estado; as criptomoedas, assim, seriam uma espécie de “colete salva-vidas” nesse cenário.
Analisando um artigo da Forbes de 2019 sobre a relação da Venezuela com criptomoedas, podemos detectar com facilidade a construção de um discurso específico. A leitura hegemônica que se fez do caso venezuelano parte de uma narrativa que o país, “vitimado” por seu governo de esquerda e suas políticas, se viu refém de uma extrema e leviana saída: apostar em criptomoedas.
O governo da Venezuela parece não conseguir fazer nada certo hoje em dia, então algumas pessoas empreendedoras se apresentaram para ajudar o país devastado pela inflação. (…) Há uma necessidade clara de ajuda humanitária na Venezuela. O país sul-americano está sofrendo uma hiperinflação brutal, deixando a população sem acesso às necessidades básicas como alimentos e remédios. A taxa de inflação anualizada atingiu um recorde de 117.681% em 10 de janeiro, de acordo com estimativas da Hanke. Para referência, uma inflação anual de 100% reduz pela metade o poder de compra do dinheiro em um ano. A inflação atual da Venezuela torna o Bolívar inútil em um instante. (FORBES, 2019)
Possivelmente, é de interesse do hegêmona que o Estado venezuelano seja enfraquecido, e isso pode ser feito através do discurso das criptomoedas. Mas uma vez que se legitima um espaço em que a soberania do Estado é questionada, as possíveis consequências para esse discurso não irão se ater às fronteiras específicas, e as complicações não se limitam ao plano discursivo tampouco. Um mercado financeiro sem lastro material, sem diálogo com a economia real e sem a intervenção do Estado é um domínio perigoso, não só para a soberania mas, em última instância, para quem é sujeito dela.
REFERÊNCIAS:
CONSTABLE, Simon. Could A Cryptocurrency Service Help Save Venezuela?. Forbes, 14 de Janeiro de 2019. Disponível em: <https://www.forbes.com/sites/simonconstable/2019/01/14/could-a-crypto-currency-service-help-save-venezuela/?sh=51bd6a1e4856> . Acesso em: 13 de Março de 2021
GREENBERG, Andy. Crypto Currency. Forbes, 20 de Abril de 2011. Disponível em: <https://www.forbes.com/forbes/2011/0509/technology-psilocybin-bitcoins-gavin-andresen-crypto-currency.html?sh=ba775a2353ee> . Acesso em: 13 de Março de 2021
IASIELLO, Emilio. National Cryptocurrencies – A Viable State Alternative to the Established Norm?. CyberDB, copyright 2012-2017. Disponível em: <https://www.cyberdb.co/national-cryptocurrencies/> . Acesso em: 13 de Março de 2021
PIPNKIN, Everest. HERE IS THE ARTICLE YOU CAN SEND TO PEOPLE WHEN THEY SAY “BUT THE ENVIRONMENTAL ISSUES WITH CRYPTOART WILL BE SOLVED SOON, RIGHT?”. Medium, 3 de Março de 2021. Disponível em: <https://everestpipkin.medium.com/but-the-environmental-issues-with-cryptoart-1128ef72e6a3> . Acesso em: 10 de Março de 2021
SALVO, Di Matthew. Why are Venezuelans seeking refuge in crypto-currencies?. BBC, 19 de Março de 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/business-47553048>.Acesso em: 13 de Março de 2021