A Pandemia de Covid-19 e a Associação Inter-Regional dos Bispos da África Austral
Letícia Sanches Rezende
No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou oficialmente a pandemia de Covid-19, doença causada pelo vírus Sars-Cov-2. No ano que se seguiu, todas as regiões do planeta foram afetadas pelo novo coronavírus, cada uma lidando à sua maneira com as complicações que a pandemia trouxe.
Nos momentos iniciais da pandemia, a África Austral apresentava um número intermediário de casos em relação ao resto do mundo, e a porcentagem de mortes na região era baixa se comparada ao número de infectados (GARCIA; DE ASSIS; RIBEIRO, 2020, p. 18). No entanto, em 2021, a África Austral demonstra dados preocupantes em relação à situação do coronavírus. De acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças da União Africana (África CDC), a África Austral apresentava no dia 22 de maio de 2021 o maior número de casos registrados comparado à todas as outras regiões africanas, ultrapassando 2 milhões, e o maior número de mortes, beirando 64 mil.
Nesse contexto, foi necessário que todos os âmbitos da sociedade encontrassem maneiras de lidar com a pandemia de Covid-19: governamentais, não governamentais, privados, e até mesmo instituições religiosas. Nesse sentido, cabe analisar como a Associação Inter-Regional dos Bispos da África Austral (IMBISA), uma das principais representações da Igreja Católica na região, foi impactada pela pandemia do coronavírus e quais medidas tal associação tomou para enfrentar esse momento.
A IMBISA é uma associação sediada em Harare, no Zimbábue, que reúne as Conferências Episcopais da África Austral, incorporando 78 territórios eclesiásticos e aproximadamente 100 bispos (CHINOGARA, 2013). Nove países são representados na Associação, sendo estes Angola, Botsuana, Suazilândia, Lesoto, Moçambique, Namíbia, São Tomé e Príncipe, África do Sul e Zimbábue[1]. De acordo com o site da IMBISA, seu objetivo é promover um ponto de encontro para a comunidade católica da África Austral, promover o compartilhamento de experiências dentro da comunidade, e estimular atos de solidariedade, respeito mútuo e unidade na região.

O primeiro comunicado divulgado pela Associação Inter-Regional dos Bispos da África Austral acerca da pandemia se intitulava “A reflection for the month of april”, escrita pelo Bispo Sithembele Sipuka da África do Sul no dia 5 de abril de 2020. A publicação consistia em reflexões do Bispo Sipuka acerca do papel da Igreja Católica e dos fiéis cristãos em meio à pandemia do coronavírus. De acordo com o Bispo, a pandemia e a situação de lockdown deve ser usada como um momento de reflexão, oração e autoavaliação. Há uma chamada para que os fiéis pratiquem atos de caridade durante a pandemia, sobretudo em relação ao combate à fome. Além disso, foi feito um apelo para que os cristãos sigam as recomendações de distanciamento social e medidas preventivas de higiene, sendo este pedido reforçado por citações bíblicas: de acordo com Sipuka, seguir as recomendações de prevenção do Covid-19 é uma forma de “amor ao próximo”, como descrito na Bíblia. Por último, a recomendação de se manter em quarentena é reforçada, e o Bispo afirma que é possível manter as práticas religiosas dentro de casa, assistindo à missa de demais cultos religiosos via internet, sem necessidade de causar aglomerações ao ir para a Igreja.
A retórica do Bispo Sipuka se repete de forma similar no documento “Resposta Pastoral ao Covid-19”, postado no dia 1° de julho de 2020. Da mesma maneira que o comunicado de Sipuka, a Resposta Oficial da IMBISA enfatiza que os fiéis cristãos devem buscar reflexão, oração e altruísmo. Ademais, o sofrimento como virtude cristã é algo enfatizado pela IMBISA neste comunicado. O sofrimento, representando nesse contexto a pandemia, é visto como algo “purificador” na visão da IMBISA, uma provação necessária para que os cristãos fortaleçam sua fé em Deus. Uma seção inteira da Resposta Pastoral é dedicada para o tema “O sofrimento e a resposta cristã”, que tem o objetivo de oferecer respostas teológicas para a questão do coronavírus, pois a IMBISA percebe que, nesse momento de pandemia, está ocorrendo uma crise espiritual dentro da Igreja Católica, com o questionamento da fé por muitos fiéis. Para aplacar tais dúvidas, o documento apresentou o argumento que o coronavírus existe devido às ações humanas, que são imperfeitas, pois o ser-humano possui livre-arbítrio. Nesse sentido, os seres humanos usaram sua liberdade com ganância, e a exploração ambiental levou à criação de problemas de saúde, tais como coronavírus. Assim, é feito uma chamada para que os cristãos ajudem a manter a preservação do meio-ambiente, de forma a evitar novas pandemias ou calamidades naturais. É relevante também destacar que este documento adverte os leitores em relação às notícias falsas, mais conhecidas pelo termo fake news: tal fenômeno é comparado ao diabo (“as falsas notícias andam ao nosso redor como um diabo que nos quer devorar e destruir”), pedindo que os leitores tenham calma e racionalidade ao se informar sobre o Covid-19.
A Resposta Pastoral ao Covid-19 apresenta também uma seção chamada “O futuro: o papel da Igreja”, dedicada às recomendações da IMBISA acerca da pandemia de coronavírus. De acordo com tal seção, a Igreja recomenda que os fiéis sigam rigorosamente as recomendações de distanciamento social e demais protocolos de segurança, justificando a importância de tais medidas ao dizer que “a vida é sagrada e um dom gratuito de Deus”, portanto é responsabilidade dos crentes proteger sua vida e a dos outros. A IMBISA ressalta que perdeu membros em função da pandemia do coronavírus, logo se vê na responsabilidade de assistir seus membros. Além disso, a Associação considera como sua principal responsabilidade continuar pregando o Evangelho durante a pandemia.
Apesar da defesa firme das medidas de distanciamento social e dos cultos online durante o ano de 2020, o discurso da IMBISA mudou em 2021. Em um comunicado publicado no site da IMBISA no dia 16 de março de 2021, intitulado “Arcebispo da Beira questiona o fechamento total de locais de culto no país”, o padre Belarde Sérgio critica as medidas de contenção do coronavírus tomadas pelo governo de Moçambique, em especial o fechamento das igrejas durante o período de Páscoa. De acordo com o presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, o objetivo de tal fechamento era a contenção de uma possível terceira onda da pandemia de Covid-19, pois durante a Páscoa muitos cidadãos moçambicanos e sul-africanos retornam a Moçambique para comemorar o feriado; portanto o distanciamento reforçado seria necessário para evitar a “importação” de novos casos de coronavírus (DW, 2021). No entanto, para o padre Belarde Sérgio, tal medida do governo moçambicano estaria ameaçando a celebração da Páscoa, e provocaria um grande prejuízo à sociedade pois a espiritualidade seria algo necessário para que a população tenha resiliência no combate à pandemia. Dessa maneira, a IMBISA questiona se a medida de Nyusi estaria realmente protegendo os moçambicanos, ou se estaria tentando tornar a manifestação religiosa algo marginal e reservado à esfera privada e respondendo à agenda de alguns doadores e de agências internacionais.
A relação entre a IMBISA e os governos dos diversos países da África Austral também fica clara com a publicação da carta “Government of Zimbabwe letter to ZCBC”, escrita no dia 17 de março de 2021. O documento se tratava de uma carta escrita pelo vice-presidente do Zimbábue, Constantino Chiwenga, endereçada para a Conferência dos Bispos Católicos do Zimbábue (ZCBC), uma das Conferências Episcopais que compõem a IMBISA. Na carta, Chiwenga pede que a ZCBC participe da campanha de vacinação contra o Covid-19, destacando que hospitais e clínicas administrados pela Igreja Católica possuem um papel crucial para efetivar a imunização. Nesse sentido, o vice-presidente pede sugestões para que a imunização seja eficaz, em especial no que concerne às comunidades marginalizadas. Chiwenga reconhece na carta que a ZCBC e a Igreja Católica como um todo possuem um “importante papel” para a sociedade zimbabuana, em especial nos setores de saúde e educação. Assim, se torna visível a influência que a religião e a Igreja Católica enquanto instituição exercem em determinados países da África Austral, tanto em um sentido político, quanto social.
Portanto, é possível perceber que a Associação Inter-Regional dos Bispos da África Austral foi diretamente afetada pela pandemia de Covid-19 e, por sua vez, impactou a sociedade a seu redor. O medo e insegurança causados nos fiéis católicos pelo coronavírus fez com que a IMBISA sentisse a necessidade de explicar teologicamente a existência do coronavírus, e recomendasse medidas para que seus seguidores soubessem como lidar com esse momento, tanto espiritualmente quanto em relação à saúde e segurança. Ademais, é perceptível que a Associação possui influência política e social, visto seus embates com o governo moçambicano e aliança com o governo zimbabuana. A posição da IMBISA em meio a pandemia, no entanto, não se apresentou como totalmente coesa e imutável: ao longo do tempo, as recomendações da associação se modificaram, de acordo com as suas necessidades e percepções acerca do momento atual.
Referências:
Africa CDC – COVID-19 Daily Updates. Africa CDC. Disponível em: https://africacdc.org/covid-19/. Acesso em: 22 maio 2021.
CHINOGARA, NOREEN N. An Analysis on the Impact of Information Technology on the Role of International Auditing: Case Study of the Inter-Regional Meeting of the Bishops of Southern Africa. 2012. Projeto de pesquisa (Bacharelado em Contabilidade) – Bindura University of Science Education, Bindura, 2013. Disponível em: http://liboasis.buse.ac.zw:8080/xmlui/bitstream/handle/123456789/1931/chinogara-noreen-accountancy.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 23 maio 2021.
CHIWENGA, C.G.D.N. Government of Zimbabwe letter to ZCBC. IMBISA, 17 mar. 2021. Disponível em: https://imbisa.africa/pt/articles/BflVa932xQ1nFa8QH1zM/view?locale=en. Acesso em: 27 maio 2021.
DA SILVA, Romeu. Moçambique: Nyusi estende recolher obrigatório nas capitais provinciais. DW, Maputo, 5 abr. 2021. Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/mo%C3%A7ambique-nyusi-estende-recolher-obrigat%C3%B3rio-nas-capitais-provinciais/a-57105042. Acesso em: 30 maio 2021.
GARCIA, Ana Saggioro; DE ASSIS, Caroline Chagas; RIBEIRO, Renata Albuquerque. Covid-19 no continente africano: impactos, respostas e desafios. Nota Técnica, [s. l.], v. 21, 10 jul. 2020. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/10111. Acesso em: 22 maio 2021.
IMBISA: Gaudium et Spes. Harare, 2020. Disponível em: https://imbisa.africa/pt/home/start. Acesso em: 23 maio 2021.
MCHUNU, Nhlanhla. Documentação IMBISA: Resposta Pastoral ao Covid-19, 1 jul. 2020. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/17os1gG6qUa3BwL3FQWGk8iOjnAGXf-jS/edit. Acesso em: 29 maio 2021.
SÉRGIO, Belarde. Arcebispo da Beira questiona o fechamento total de locais de culto no país. IMBISA, 16 mar. 2021. Disponível em: https://imbisa.africa/pt/articles/cS063xPzks3BlYrNhdmS/view?fbclid=IwAR2uNYyaebmYHf7iC0YaT-N5Cn8_I56rzvdxRd3klDj1P-UdP_DtfDF0PHM. Acesso em: 30 maio 2021.
SIPUKA, Sithembele. Areflection for the month of april. IMBISA, 5 abr. 2020. Disponível em: https://imbisa.africa/pt/articles/Jis50mX7OxMPOuU2HW8N/view?locale=en. Acesso em: 29 maio 2021.
[1] A definição geográfica de África Austral feita pela IMBISA se difere daquela proposta pelo Grupo Atlântico Sul. Na definição do GAS, a África Austral é composta por onze países, sendo estes África do Sul, Lesoto, Suazilândia, Namíbia, Botsuana, Zimbábue, Moçambique, Madagascar, Malawi, Zâmbia e Angola. Enquanto isso, a IMBISA considera apenas nove países, excluindo Madagascar, Malawi e Zâmbia, e adicionando São Tomé e Príncipe que, pela definição do GAS, pertence ao Golfo da Guiné.