Texto Conjuntural: África Austral #17

Violência sexual contra trabalhadoras da indústria têxtil no Lesoto

Giovana Biron Rocha Barroso

INTRODUÇÃO

Em maio de 2021, a revista Time e a redação sem fins lucrativos The Fuller Project fizeram uma matéria denunciando abusos físicos e sexuais praticados contra trabalhadores e trabalhadoras do Lesoto na fábrica de roupas Hippo Knitting, que produz para várias marcas internacionais, dentre elas Fabletics Activewear, da atriz Kate Hudson. O episódio relatado não é um caso isolado, mas um entre muitos que acontecem nas fábricas de roupas de marcas internacionais no país, em que a maioria da mão de obra são mulheres, como documentado em diversos relatórios da Worker Rights Consortium (WRC), organização independente de monitoramento de direitos trabalhistas (TIME, 2021).

Diante desses casos e da complexidade da problemática que implicam, o objetivo deste texto conjuntural é relatar as violências praticadas contra as trabalhadoras das fábricas de vestuário no Lesoto; analisar a economia do país e qual é papel desempenhado pela indústria têxtil; e identificar quais são as implicações das denúncias feitas. Para isso, o texto foi dividido em duas seções: a primeira tratará brevemente sobre economia e a indústria têxtil no Lesoto, e a segunda relatará as violências praticadas, as denúncias feitas e suas implicações. Por fim, serão apresentadas considerações finais sobre o exposto.

ECONOMIA E A INDÚSTRIA TÊXTIL NO LESOTO

A indústria têxtil lesotiana teve início na década de 1980, quando empresas taiwanesas e sul-africanas abriram algumas das primeiras fábricas de roupas no país, atraídas por mão de obra de baixo custo e benefícios fiscais que favoreciam ​o acesso aos mercados da África Austral (TIME, 2021). De 1980 até meados de 1990, a indústria da região era regulamentada pelo Acordo Multi-Fibra (MFA), que estabelecia cotas sobre a quantidade de têxteis que países considerados em desenvolvimento poderiam exportar para países considerados desenvolvidos (BEZUIDENHOUT, JEPPESEN, 2011). Esse acordo, além de contrariar a preferência do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) por estabelecer tarifas alfandegárias em vez de medidas que restringem quantidades, e violar o princípio de tratamento igualitário a  todos os parceiros comerciais (WTO, 2021), desfavorecia e vulnerabiliza países como o Lesoto.

A partir de 1994, o MFA foi substituído pelo Acordo sobre Têxteis e Vestuário (ATC), que estabeleceu um sistema de cotas que permitiu a expansão da produção de roupas, inclusive nos países africanos. Além do acordo, outros fatores contribuíram para a expansão da produção têxtil no continente, como a Lei de Crescimento e Oportunidades (AGOA), promulgada pelos Estados Unidos (EUA) em 2000, permitindo exportações isentas de impostos para o país; e a vinculação das moedas do Lesoto e da então Suazilândia[1] a da África do Sul, o rand, favorável ao dólar na época (BEZUIDENHOUT, JEPPESEN, 2011).

Assim, no início dos anos 2000, estima-se que a indústria têxtil gerou mais de 50.000 empregos no Lesoto. As principais trabalhadoras nas fábricas eram mulheres jovens, que produziam mercadorias como jeans e camisetas para o mercado estadunidense. Contudo, em 2005, o ATC chegou ao fim e o rand quase dobrou de valor em relação ao dólar, o que causou um choque para os exportadores. Lesoto e Suazilândia perderam de 20.000 a 30.000, e em dezembro de 2010, a indústria empregava pouco mais de 38.000 trabalhadores no Lesoto (BEZUIDENHOUT, JEPPESEN, 2011).

Nos últimos anos, a indústria se tornou a segunda maior empregadora do país. Suas trabalhadoras — cerca de 90% são mulheres — fabricam roupas como jeans e, principalmente, malhas, como camisetas, agasalhos e roupas esportivas, a exemplo das vendidas pela Fabletics, além de outras marcas famosas dos EUA, como Lévi Strauss, JCPenney e Walmart. O país é, inclusive, o principal destinatário das exportações de vestuário do Lesoto, no valor de $303 milhões em 2019 (TIME, 2021).

Nesse sentido, é importante destacar que, nesse ano, o setor primário representava 4,38% do PIB lesotiano, enquanto o secundário, ou industrial, representava 30,74%, e o terciário, 51,45% (STATISTA, 2021). Comparado a outros países da região, que por vezes se especializam na exportação de recursos naturais, a porcentagem do setor industrial no PIB do Lesoto é significativa, e a indústria pode ser considerada um dos motores da economia do país. Além disso, ao analisar as exportações do país em 2019, é perceptível a relevância da indústria têxtil para a economia lesotiana, como representado na imagem:

Imagem 1 – Exportações do Lesoto em 2019

Fonte: (OEC, 202?)

Como levantado pelo Observatório de Complexidade Econômica (OEC), no ano em questão, mais de 40% das exportações do país foram de produtos têxteis, como ternos femininos de malha, ternos masculinos, camisetas e suéteres de malha, lã, entre outros. As outras exportações foram, majoritariamente, de diamantes (41,9%), além de equipamento de proteção de baixa voltagem (3,07%) e farinha de trigo (1,37%), entre outros menos expressivos. Assim, é possível perceber que parte significativa da receita de exportações do país é proveniente da indústria têxtil.

Ademais, em um país com taxas de desemprego altas — 22.5% em 2019 (WORLD BANK GROUP, 2021) —, a diminuição das oportunidades para os homens no setor de mineração da África do Sul coincidiu com o aumento do emprego para mulheres na indústria têxtil do Lesoto, e elas se tornaram as principais provedoras do sustento de suas famílias. Apesar disso, as condições de trabalho são precárias e os salários são baixos. No caso da fábrica Hippo Knitting, a maioria das trabalhadoras entrevistadas recebia cerca de US$150 por mês — sendo que uma legging da Fabletics é vendida em média a US$50, por exemplo. São recorrentes também os casos de privação de direitos, assédio e abusos morais, físicos e sexuais (TIME, 2021), como os expostos na próxima seção.

VIOLÊNCIA SEXUAL E DENÚNCIA NAS FÁBRICAS

Em 2019, um relatório da ONG Workers Rights Consortium (WRC) revelou uma incidência generalizada de assédio, agressão sexual e estupro em diversas fábricas de roupas em Maseru, capital do Lesoto. De acordo com o levantamento, mais de 120 mulheres de diferentes fábricas relataram que foram forçadas a ter relações sexuais com supervisores homens para manter seus empregos. Ademais, algumas alegaram que foram estupradas nas instalações das próprias fábricas, e que contraíram HIV de supervisores que retinham seus salários até que concordassem em ter relações desprotegidas. As funcionárias que reclamaram foram demitidas (THE GUARDIAN, 2020).

De acordo com uma matéria da WRC, essas violências ocorrem há muitos anos, mas as trabalhadoras têm receio de denunciá-las porque isso colocaria seus meios de subsistência em risco e por acreditarem que os violadores não serão punidos, como já ocorreu outras vezes. Além disso, durante inspeções às fábricas, as trabalhadoras testemunharam que os gerentes pressionam os funcionários a não falarem a verdade sobre as condições de trabalho. Então, muitas vezes, a única opção para denunciar os abusos são os mecanismos de reclamação internos das próprias fábricas, cuja administração é responsável pelas violências. Sendo assim, dificilmente há confiança de que as denúncias serão corretamente encaminhadas (WRC, 2019).

Em função disso, em 2019, marcas de vestuário, sindicatos trabalhistas e defensores dos direitos das mulheres redigiram e se tornaram signatários do Acordo de Lesoto, que estabelece diretrizes para a erradicação da violência de gênero nos ambientes de trabalho de algumas empresas, e instaura um órgão de monitoramento das fábricas e um canal de denúncias seguro para as trabalhadoras e os trabalhadores (WRC, 2019). Entretanto, as medidas do Acordo foram limitadas quando começaram a ser implementadas, em razão da pandemia do COVID-19. Além do fechamento de fábricas sem a garantia dos direitos trabalhistas para os ex-empregados, muitas operam sem seguir as devidas condições sanitárias e de segurança, o que coloca em risco a vida de suas trabalhadoras e, consequentemente, de suas famílias (THE GUARDIAN, 2020; TIME, 2021).

Imagem 2 – Trabalhadora da Hippo Knitting

Fonte: Lindokuhle Sobekwa—Magnum Photos for TIME

Além disso, em maio de 2021 uma nova denúncia veio à tona: pelo menos 38 trabalhadoras relataram assédio e abusos físicos e sexuais na Hippo Knitting, em Maseru. Muitas disseram que trabalham nessas condições há anos, mas temem perder seus empregos se a marca Fabletics retirar seus negócios da fábrica. Uma funcionária que trabalha na fábrica há 10 anos relatou que: “estamos cansados, precisamos de ajuda, trabalhamos com o coração sangrando” (TIME, 2021). Essa fala reflete a vulnerabilidade em que se encontram essas trabalhadoras que, mesmo após denúncias e o estabelecimento de um acordo de combate á violência sexual nas fábricas, se veem ameaçadas, privadas de seus direitos básicos, principalmente em um país com uma alta taxa de desemprego e pobreza, e em situação de crise em função da pandemia.

As trabalhadoras e os trabalhadores relatam violências verbais, físicas e sexuais; abusos de poder por parte de gerentes e supervisores; e condições de trabalho insalubres nas instalações das fábricas. Ao ser questionada pela Time e pela The Fuller Project, Grace Lin, dona da Hippo Knitting, respondeu que auditorias anuais são realizadas na fábrica, e a marca Fabletics disse não ter conhecimento das denúncias, mas se comprometeu a investigar (TIME, 2021). Todavia, até a publicação deste texto conjuntural, nenhum encaminhamento foi tomado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, primeiro, faz-se importante destacar a importância da indústria têxtil para o Lesoto. Além de representar mais de 40% das exportações do país e parte considerável de sua receita e do PIB, a indústria gera empregos principalmente para mulheres, que se tornaram as principais fontes de subsistência de suas famílias, em um país que enfrenta graves dificuldades econômicas e sociais, como o desemprego e a pobreza. Contudo, a grande dependência de grandes marcas e preços internacionais, em função da exportação dos produtos, faz com que a indústria têxtil do Lesoto possa apresentar grandes vulnerabilidades, como observado em meados dos anos 2000 e, atualmente, em 2020 e 2021.

Essa fragilidade estrutural da indústria no país contribui para que em casos de violações de direitos trabalhistas e violência sexual no ambiente de trabalho não sejam devidamente encaminhados e solucionados. Como o Lesoto abriu sua indústria para fábricas internacionais sem uma robusta legislação trabalhista e contra a violência sexual, e sem monitoramento efetivo das instalações, além de estar sujeito a acordos internacionais e leis estrangeiras, as trabalhadoras não são devidamente protegidas e as denúncias de violências não são corretamente conduzidas pelas fábricas e marcas internacionais, nem pelo Estado.

Sendo assim, são necessárias, além de mudanças estruturais, a elaboração e efetivação de mecanismos institucionais para combater a violência moral, física e sexual das trabalhadoras da indústria têxtil. Entre eles, a instituição de direitos trabalhistas com mais garantias, assim como legislações de combate à violência sexual e de gênero, e o estabelecimento de fiscalização regular das fábricas. Ademais, podem ser realizados programas de educação contra essas violências nas fábricas, obrigatórios para todos os funcionários, para se construir condições dignas de trabalho.

REFERÊNCIAS

BEZUIDENHOUT, Andries; JEPPESEN, Søren. Between market, state and society: Labour codes of conduct in the southern African garment industry. Development Southern Africa, África do Sul: v. 28, n. 5, p; 653-668, dez. 2011. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/0376835X.2011.623923. Acesso: 7 maio. 2021.

DONOVAN, Louise; NKUNE, Refiloe Makhaba.Exclusive: Workers in Factory That Makes Kate Hudson’s Fabletics Activewear Allege Rampant Sexual and Physical Abuse. Time, Nova York, 5 maio. 2021. World Lesotho. Disponível em: https://time.com/5959197/fabletics-factory-abuse-allegations/. Acesso em: 5 maio. 2021.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. United States Agency for International Development (USAID). Lesotho Textile and Apparel Brief. Washington, D.C: Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, 201?. Disponível em: https://satradehub.org/images/stories/downloads/pdf/brochures/lesotho%20ta%20brief.pdf. Acesso: 5 maio de 2021.

FASHION’S dirty secret: how sexual assault took hold in jeans factories. After revelations of sexual violence in Lesotho garment factories, where jeans are made for brands such as Levi’s, workers fought for better conditions. But now Covid-19 has hit the fashion industry, those gains may be lost. The Guardian, [S.I], 20 ago. 2020. Human Rights Series. Disponível em: https://www.theguardian.com/news/2020/aug/20/fashion-industry-jeans-lesotho-garment-factory-workers-sexual-violence. Acesso em: 5 maio. 2021.

OBSERVATORY OF ECONOMIC COMPLEXITY (OEC). Lesotho. Disponível: https://www.oec.world/en/profile/country/lesotho. Acesso: 5 maio. 2021.

STATISTA. Lesotho: Distribution of gross domestic product (GDP) across economic sectors from 2009 to 2019. Hamburgo: Statista, 2021b. Disponível em: https://www.statista.com/statistics/447999/lesotho-gdp-distribution-across-economic-sectors/. Acesso em: 10 maio 2021.

WORKER RIGHTS CONSORTIUM (WRC). Despite progress gender-based violence and harassment is still a reality for global garment workers. Washington, D.C: WRC, 2013. Disponível em: https://www.workersrights.org/commentary/despite-progress-gender-based-violence-and-harassment-is-still-a-reality-for-global-garment-workers/. Acesso em: 10 maio. 2021.

WORLD TRADE ORGANIZATION (WTO). Textiles: back in the mainstream. Genebra: WTO, 2021. Disponível em: https://www.wto.org/english/thewto_e/whatis_e/tif_e/agrm5_e.htm . Acesso 7 maio. 2021.

THE WORLD BANK GROUP. The World Bank in Lesotho. Washington, D.C: The World Bank, 2021. Disponível em: https://www.worldbank.org/en/country/lesotho/overview. Acesso em: 5 maio. 2021.


[1] Desde 2018, o país é reconhecido como Reino de Essuatíni.

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