Por Ana Clara de Morais e Silva
Resumo: A Nigéria se configura, no plano internacional, como um Estado sujeito a diversas dificuldades devido à precariedade de suas estruturas sociais e econômicas. As mazelas nigerianas são mais evidentes na torrente de violência armada e criminalidade em diversas regiões do país, porém, na extensa região noroeste do país, a situação se encontra de modo mais alarmante. Esta região ainda se encontra sob o flagelo do Boko Haram, mesmo após os esforços governamentais para conter insurgências armadas. O sequestro de crianças se apresenta como o mais novo negócio lucrativo da região e tem gerado empecilhos na tentativa dos atores não estatais de preservar os direitos das crianças nigerianas. Diante desse contexto, a presente análise conjuntural tem o objetivo de fazer considerações acerca do surgimento desse negócio e as implicações do mesmo sobre os Direitos Humanos.
1. O banditismo na Nigéria
Para tratar do banditismo na Nigéria faz-se necessário a conceitualização do termo. Banditismo se refere à incidência de assaltos armados ou crimes violentos relacionados, como sequestro, roubo de rebanhos e ataques a comunidades e mercados. Envolve o uso da força para intimidar uma pessoa ou grupo a fim de realizar roubos, estupros e mortes (Okoli e Okpaleke, 2014). O banditismo pode ser classificado a partir de suas motivações ou intenções, podendo ser motivado por interesses econômicos e/ou políticos, ou o chamado banditismo rural, relacionado à violência armada perpetrada por criminosos organizados em áreas fronteiriças e interioranas, que é o objeto desta análise. (Okoli; Okpaleke, 2014).
Quanto ao seu surgimento, há diferentes perspectivas que buscam uma explicação sobre a natureza e a incidência do banditismo rural, em grande parte perpetrado por nômades. Entre essas perspectivas se destaca a narrativa que situa o fenômeno como uma complicação necessária da crise entre fazendeiros e pastores da região, um ambiente securitário volátil, caracterizado pela capacidade declinante do Estado em governar. Outras literaturas sobre o fenômeno caracterizam as ocorrências de banditismo como um tipo disfarçado de terrorismo, com elementos que lembram o neo-jihadismo (IEP, 2015; SBMI, 2015; CWI, 2016; Omilusi, 2016). Por conseguinte, o banditismo rural na Nigéria não é um fenômeno recente, Jaafar (2018) argumenta que há registros de banditismo rural na Nigéria ainda durante o período colonial. Analisando por uma perspectiva histórica, Jaafar afirma:
“Naquele tempo, viajantes e comerciantes que viajavam ao longo de nossas rotas econômicas costumavam enfrentar ameaças e perigos de bandidos não identificados. Criminosos armados eram conhecidos por atacar mercadorias transportadas nas costas de jumentos, camelos e carros de boi. Esses criminosos roubavam as mercadorias e desapareciam nas florestas. Essa é apenas uma dimensão do problema. Em outras áreas, os criminosos invadiam comunidades rurais e vilas com a intenção de realizar matanças e destruir propriedades. Durante esses ataques, os criminosos destruíam quase tudo no caminho, incluindo bens, produtos e mercadorias. Essa subcultura existia na Nigéria antes da chegada dos colonizadores europeus (2018).”
Em continuidade, a narrativa contemporânea do banditismo rural na Nigéria apresenta um cenário humanitário lamentável. Desde dezembro de 2020, o número total de sequestrados chegou a 600 crianças em idade escolar. As motivações desses bandidos armados foram apontadas principalmente pela tentativa de obterem ganhos financeiros, porém, alguns observadores mencionam que a escalada dos sequestros em massa indica uma cooperação entre militantes do Boko Haram e os bandidos, o que sinaliza que estes ataques atuais podem ter um profundo componente religioso. O sultão de Sokoto declarou: “Não se enganem, o sequestro é um exemplo clássico dos fundamentos filosóficos do Boko Haram – que a educação ocidental é proibida. É por isso que os seus alvos estão sempre em internatos, especialmente escolas de ciências, consideradas “ateias” em termos de pedagogia”. (ACN,2021)
2. O Boko Haram e o banditismo
O nome Boko Haram é traduzido como “a educação ocidental é proibida” ou “a educação ocidental ou não-islâmica é um pecado”. O grupo foi fundado em 2009 e, desde então, foi responsabilizado pela morte de 36 mil pessoas na Nigéria. Há tempos o Boko Haram tenta obter o controle sobre o norte da Nigéria, implementando um regime teocrático governado com base na sharia, nome dado à interpretação de cunho extremista dos preceitos do Islamismo. Nas palavras de seu líder, Shejau, as ações violentas praticadas pelo grupo são uma forma de promover e disseminar o islamismo ao mesmo tempo que combate os valores ocidentais nas demais regiões. Isso porque, na prática, os sequestros de meninos nigerianos e de outras regiões é uma forma de aliciamento forçado de novos combatentes para o grupo. A forma extrema como esse grupo interpreta e aplica as leis islâmicas é desaprovada e criticada pelas maiores autoridades religiosas da Nigéria, que não acreditam no extremismo como forma de religião ou ensinamento. (NEXO,2021)
Assim como o Boko Haram, o banditismo se desenvolveu rapidamente de casos isolados para um problema generalizado e de preocupação internacional. Da mesma forma, os bandidos passaram de atividades nômades para assentamentos em locais de fronteiras. A consequência disso foram muitos casos de pilhagem e carnificina, o que levou a região noroeste da Nigéria à beira do colapso humanitário. O banditismo rural na Nigéria rivaliza com o Boko Haram em termos de letalidade e consequências humanitárias. Especialistas acreditam que o Boko Haram se aproveitou da precária situação da região para fazer uma aliança com os bandidos que recebem sua recompensa material, enquanto o grupo extremista recebe a satisfação de seus ideais religiosos.
2.1 Alguns dos sequestros
No dia 11 de dezembro de 2020, combatentes do Boko Haram invadiram a Escola Governamental Secundária de Ciências, em Kankara na Nigéria, sequestrando mais de 300 estudantes do sexo masculino. A organização terrorista reivindicou a responsabilidade pelo ataque citando a oposição do Boko Haram à educação ao estilo ocidental. Em 18 de dezembro, os militares nigerianos libertaram os estudantes sequestrados. O governador do estado Katsina da Nigéria, Aminu Masarithe, alegou que nenhum resgate tinha sido pago ao grupo. Em outro caso, em 17 de fevereiro de 2021, atiradores com uniformes militares entraram na Escola Governamental de Ciências Kagara, em Rafi, estado do Níger, sequestrando 27 pessoas, incluindo estudantes, professores e seus familiares. Todos foram libertados em 27 de fevereiro. (CNN, 2020). Também em fevereiro de 2021, cerca de 300 jovens garotas foram sequestradas de um internato gerido pelo Governo na cidade de Jangebe. De acordo com fontes locais, “vieram em cerca de 20 motos e levaram as jovens sequestradas para a floresta”. As jovens foram libertadas em 2 de março. O governador do estado de Zamfara, Bello Matawalle, recusou-se a pagar um resgate, mas mais tarde o presidente Buhari admitiu que no passado os governos estaduais pagaram a sequestradores ‘com dinheiro e veículos’. (G1, 2020)
Já em março de 2021 cerca de 39 estudantes, incluindo uma mulher grávida, foram capturados pelo grupo no Colégio Federal de Mecanização Florestal. Após quarenta dias em cativeiro, foram libertados pelos sequestradores. Em maio de 2021, um grande número de crianças foi sequestrado, aparentemente em troca de resgate, por homens armados em uma escola corânica. A princípio pegaram mais de cem alunos, mas em seguida deixaram os que consideravam pequenos demais, os quais tinham entre 4 e 12 anos, pelo caminho. Cinco estudantes foram executados por seus captores nos dias que se seguiram ao sequestro para pressionar as famílias e o governo e receberem um resgate. Várias famílias asseguraram na imprensa local terem pago 180 milhões de nairas (aproximadamente R$ 2,2 milhões) para libertar seus filhos. (BBC,2021). Na totalidade, o número de sequestros chegou a dez entre dezembro de 2020 e julho de 2021. A recorrente realização destes sequestros parece ter causa devido ao alto lucro da atividade para os criminosos, uma vez que o sequestro de centenas de estudantes garante publicidade e envolvimento do governo nas negociações, o que pode significar milhões em pagamentos de resgate. O especialista em segurança, Kemi Okenyodo, acredita que isso tornou os sequestros em escolas um bom negócio para gangues criminosas além de servir ao Boko Haram como instrumento para seus ideais religiosos na região. (BBC,2021)
3. A supressão dos Direitos Humanos pelo banditismo e Boko Haram
A Convenção sobre os Direitos da Criança foi adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989 e entrou em vigor em 2 de setembro de 1990. O referido instrumento de direitos humanos se configura o mais aceito na história universal, ratificado por 196 países, inclusive a Nigéria. Tal instrumento reafirma que os direitos da criança demandam proteção especial e conclama pela contínua melhoria da situação das crianças, sem distinção, assim como por seu desenvolvimento e sua educação em condições de paz e segurança. No caso da Nigéria, as crianças se encontram em uma situação de extrema vulnerabilidade pelo fato de que suas vidas estão constantemente sujeitas ao banditismo e ao Boko Haram, além da deterioração que estes ataques causaram no ambiente escolar nigeriano, impossibilitando uma melhoria na eficácia da educação na Nigéria. Nota-se, então, que o Estado nigeriano passa por muitas dificuldades no que diz respeito à garantia desses direitos, mostrando-se insuficiente como agente provedor dos mesmos.
Vale ressaltar que com a adoção do Estatuto de Roma do Tribunal Criminal Internacional, o recrutamento ou o alistamento de crianças menores de 15 anos de idade, ou a utilização dessas crianças para participar ativamente de conflitos armados, sejam eles internacionais ou não, passou a ser considerado crime de guerra. Concomitantemente, o mencionado estatuto condena com a mais profunda preocupação o recrutamento, o treinamento e a utilização de crianças em hostilidades, dentro e fora das fronteiras nacionais, por grupos armados que não as forças armadas de um Estado, responsabilizando aqueles que recrutam, treinam e utilizam crianças dessa forma. (UNICEF, 2021)
Ainda que signatário de tratados internacionais e se comprometendo a proteger os direitos humanos, notadamente dos jovens e crianças, o que percebe-se é que a Nigéria apresenta ainda hoje um cenário desesperador no que diz respeito aos Direitos Humanos de jovens, numa clara demonstração de ineficiência do Estado em cumprir seus próprios normativos internacionais ratificados, tendo em vista que os direitos à vida, à liberdade e à educação das crianças nigerianas se mostram profundamente afetados pelo banditismo rural e pelo Boko Haram, que limitam e/ou extinguem esses direitos.
Considerações Finais
De modo conclusivo, observa-se que a Nigéria, em especial o seu norte e noroeste, apresentam sérias violações aos Direitos Humanos. Os recorrentes sequestros em massa no país, frutos do banditismo rural e da influência do Boko Haram na região, evidenciam a carência no que diz respeito à proteção das crianças nigerianas, que estão sujeitas a torturas, alistamento forçado e à execução. É necessário, no âmbito internacional, um maior monitoramento da garantia efetiva desses direitos, além de uma maior preocupação do Sistema Internacional em erradicar esse tipo de ação.
REFERÊNCIAS
Estudo de caso: O sequestro em massa de crianças em idade escolar na Nigéria. ACN Brasil. Disponível em: https://www.acn.org.br/estudo-de-caso-o-sequestro-em-massa-de-criancas-em-idade-escolar-na-nigeria/#. Acesso em: 21 nov 2021.
Homens armados atacam mais uma escola na Nigéria. G1 Notícias. Março, 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/03/14/homens-armados-atacam-mais-uma-escola-na-nigeria.ghtml. Acesso em: 20 nov 2021.
Jaafar, J. 2018. “Rural banditry, urban violence and the rise of oligarchy by Professor Abubakar Liman”. Available online. Acesso em: 20 nov 2021.
Nigéria: o ‘negócio lucrativo’ de sequestro em massa de crianças em idade escolar. BBC NEWS. Março, 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-56340551. Acesso em: 20 nov 2021.
Okoli, A. C. & Lenshie, E. N. 2018. “Nigeria: Nomadic migrancy and rural violence in Nigeria”. Conflict Studies Quarterly, 25, pp. 68-85. Acesso em: 20 nov 2021.
Okoli, A. C. 2017a. “Nigeria: Volunteer vigilantism and counter-insurgency in the North-East”. Conflict Studies Quarterly, 20, pp. 34-55. Acesso em: 20 nov 2021.
Okoli, A.C & Agada, A.T. 2014. “Kidnapping and national security in Nigeria”. Research on Humanities and Social Science, 4(6), pp. 137-146. Acesso em: 20 nov 2021.
Okoli, A.C. & Atelhe, G. 2014. “Nomads against natives: A political ecology of farmer/herder conflicts in Nasarawa State, Nigeria”. American International Journal of Contemporary Research, 4(2), pp. 76-88. Acesso em: 20 nov 2021.
Okoli, A.C. & Iortyer, P. 2014. “Terrorism and humanization crisis in Nigeria: insights from the Boko Haram insurgency”. Global Journal of human social science (F: Political Science) 14(1:1.0), pp. 39-50. Acesso em: 20 nov 2021.
Okoli, A.C. & Ochim, F. 2016. “Forestlands and National Security in Nigeria: A Threat-Import Analysis”. IIARD International Journal of Political and Administrative Studies, 2(2), pp. 43-53. Acesso em: 20 nov 2021.
Okoli, A.C. & Ogayi, C.O. 2018. “Herdsmen militancy and humanitarian crisis in Nigeria: A theoretical briefing”, African Security Review, 27:2, pp. 129-143; doi: 10.1080/10246029.2018.1499545. Acesso em: 20 nov 2021.
Okoli, A.C. 2017b. “Cows, cash and terror: How cattle rustling proceeds fuel Boko Haram insurgency in Nigeria”. Paper presented at International Policy Dialogue Conference on money, security, and democratic governance in Africa, organized by CODESRIA and UNOWAS on October 1th to 23rd, 2017 at Blu Radisson Hotel, Bamako, Mali. Acesso em: 20 nov 2021.
Okoli, A.C. and Okpaleke, F.N. 2014a. “Banditry and crisis of public safety in Nigeria: issues in national security strategics”, European Scientific Journal 10(4), pp. 350-62. Okoli, A.C. and Okpaleke, F.N. 2014b. “Cattle rustling and dialectics of security in northern Nigeria”. International Journal of Liberal Arts and Social Sciences 2(3): 109-17. Acesso em: 20 nov 2021.
Por que o grupo Boko Haram sequestra crianças na Nigéria. Nexo Jornal. Dezembro, 2020. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/12/15/Por-que-o-grupo-Boko-Haram-sequestra-crian%C3%A7as-na-Nig%C3%A9ria. Acesso em: 18 nov 2021.
Sequestradores libertam 28 crianças na Nigéria; 81 ainda estão em cativeiro. CNN NEWS. Julho, 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/sequestradores-libertam-28-criancas-na-nigeria-81-ainda-estao-em-cativeiro/. Acesso em: 20 nov 2021.
UNICEF, Brasil. Convenção sobre os Direitos da Criança : Instrumento de direitos humanos mais aceito na história universal. Foi ratificado por 196 países. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca#protocolo_conflitos. Acesso em: 18 nov 2021.
Créditos de imagem: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/sequestradores-libertam-28-criancas-na-nigeria-81-ainda-estao-em-cativeiro/