O movimento #EndSARS e a juventude nigeriana
Por Antonia Pontes Ferreira Canabrava
Introdução
Em outubro de 2020, uma onda de manifestações associadas ao movimento #EndSARS se instaurou na Nigéria, protagonizada majoritariamente pela juventude, denunciou as violações de Direitos Humanos praticadas pelo SARS, o chamado Esquadrão Anti-Roubo Especial (SARS), grupo de polícia do Estado nigeriano. O movimento foi criado no intuito de denunciar as violações dos Direitos Humanos pelo SARS e cobrar das autoridades medidas de reparação (NIGÉRIA…, 2021). Na Nigéria, a população jovem representa aproximadamente 70% da população total e tem mostrado indignação diante da falta de políticas que visem garantir a educação, geração de empregos, segurança e saúde desse grupo (FAYEHUN, ISIUGO-ABANIHE, 2020). Passado aproximadamente um ano das manifestações, este texto pretende analisar a importância da ação da juventude local nesse contexto e a efetividade do fim do SARS para garantir a segurança dos civis frente à violência policial.
O movimento #EndSARS
Criado em 1992, o Esquadrão Anti-Roubo Especial (SARS) era uma unidade especial da polícia da Nigéria que tinha como objetivo o combate aos assaltos armados e sequestros no país. Em cada um dos Comandos de Polícia do Estado havia uma unidade do SARS, as quais eram coordenadas por um comissário da polícia do Quartel-General da Força e se tornaram bastante conhecidas durante o policiamento do regime do General Sani Abacha (OSJI, 2010). Ayandele (2021) explica que, inicialmente, o SARS foi criado na perspectiva de agir de forma independente e anônima, sendo uma estratégia para chegar mais facilmente até os grupos criminosos. Todavia, com o decorrer do tempo os funcionários do Esquadrão começaram a serem reconhecidos e denunciados por violação dos Direitos Humanos, como casos de tortura, estupros, detenções ilegais, execuções extrajudiciais e extorsões (AYANDELE, 2021). Segundo o Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED), foi observado um aumento expressivo dos casos de violência das forças nigerianas contra civis, com aproximadamente 100 casos registrados em 2020 no país (AYANDELE, 2021).
No início de outubro de 2020, um jovem postou em sua conta na rede social Twitter o vídeo de outro jovem sendo morto pelo Esquadrão Anti-Roubo Especial, logo após compartilhar a seguinte mensagem: “Se Sars o vir como um jovem bem-sucedido com um bom carro, eles irão assediá-lo e extorquir dinheiro de você”. O vídeo viralizou devido à comoção e indignação compartilhada não somente pelos cidadãos nigerianos mas de todo o mundo. A partir de então, o repúdio à brutalidade policial presente no país, que atinge principalmente a juventude nigeriana, ensejou a criação da hashtag #EndSARS. Em outubro deste ano, uma estrategista de mídia do país, a Rinu Oduala, convocou as pessoas para se manifestarem durante a noite em frente ao prédio do governo em Lagos, marco inicial da onda de manifestações que ocorreram após esse dia. Na semana seguinte, a quantidade de tweets sobre o assunto já alcançava a marca de 661.340, sendo um deles feito pelo próprio CEO do Twitter, Jack Dorsey, em que pedia apoio para a arrecadação de dinheiro para os manifestantes (END SARS…, 2020).
Em consequência disso, durante várias semanas milhares de jovens ocuparam as ruas do país para se manifestarem contra os abusos dos policiais do SARS. Após a pressão decorrente das mobilizações, o Esquadrão foi dissolvido pelo governo que também divulgou a abertura de painéis judiciais para investigação dos possíveis atos cometidos por oficiais do SARS. Contudo, o que a repressão violenta de diversos atos feitos por manifestantes seguiu ocorrendo. Em 20 de outubro de 2021, por exemplo, dois grupos que protestavam de forma pacífica em Lagos foram atacados pelas forças de segurança nacional e doze pessoas ficaram mortas (NIGÉRIA…, 2021). Nas palavras do Diretor Nacional da Anistia Internacional na Nigéria, Osai Ojigho, “abrir fogo contra manifestantes pacíficos é uma violação flagrante dos direitos das pessoas à vida, dignidade, liberdade de expressão e reunião pacífica. Os soldados claramente tinham uma intenção – matar sem consequências ” (AMNESTY INTERNATIONAL, 2020a, tradução nossa).
É oportuno frisar que a Anistia Internacional monitora o SARS desde 2014, documentando os diversos crimes cometidos pelo grupo no país. À vista disso, identificou que houve no mínimo 56 pessoas mortas durante os protestos, a maioria devido a utilização de força excessiva para o controle das manifestações (AMNESTY INTERNATIONAL, 2020a). Segundo a mesma,
a Nigéria é um estado-membro de vários tratados regionais e internacionais de direitos humanos que proíbem o uso de tortura e outros atos de crueldade. Isso inclui o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ICCPR); a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (UNCAT) e seu Protocolo Opcional (OPCAT); a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas do Desaparecimento Forçado e da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (ACHPR) (AMNESTY INTERNATIONAL, 2020b, p.6, tradução nossa)
Apesar de todo o aparato legal que proíbe a tortura na Nigéria, ela só foi criminalizada por norma nacional no final de 2017 pelo atual governo de Muhammadu Buhari por meio da Lei Anti-Tortura, ocorrendo apenas depois de vários anos de pressão feita por organizações que defendem os Direitos Humanos. Mas o que pode ser observado a partir de uma pesquisa feita e divulgada em 2020 pela Anistia Internacional, que coletou diversos relatos de indivíduos que estiveram detidos pelo SARS, é que os atos de crueldade e a tortura permaneceram (AMNESTY INTERNATIONAL, 2020b).
Cenário após a dissolução do SARS
Após a dissolução do SARS em 2020 e o anúncio de diversas mudanças estruturais, o governo instalou outras unidades policiais que continuam sendo acusadas por atos violentos, o que denota que as reformas apresentadas não se concretizaram em mudanças reais nas práticas adotadas pelos militares em suas atuações. A ativista pelos direitos das mulheres, Chioma Agwuegbo, que durante um protesto em Abuja, capital da Nigéria, foi atingida por gás lacrimogêneo e três tiros, afirma que muitos cidadãos não reconhecem as reformas como bem executadas e eficientes, principalmente pelo histórico de ações feitas pelo governo que não foram bem sucedidas (JONES, 2021). A coalizão feminista foi o movimento responsável por arrecadar aproximamente US $400.000 para o financiamento dos protestos, os quais são formados, em sua maioria, por jovens mulheres nigerianas. O dinheiro foi utilizado para dar assistência médica aos feridos e jurídica para aqueles que foram presos injustamente após as manifestações (BUSARI, 2020).
Frente à mobilização potente, o governo passou a ter como alvo os meios digitais de interação, que foram fortemente utilizados para o planejamento dos protestos. O Twitter, rede social já citada anteriormente, foi oficialmente banido do país em junho de 2021 e o comércio de criptomoedas não estatais também foi proibido. Tanto a plataforma de rede social Twitter, quanto as criptomoedas foram fundamentais para a arrecadação de doações e apoio financeiro dos protestos, uma vez que as contas bancárias de grupos como o Coalizão Feminista foram suspensas através do Banco Central da Nigéria (JONES, 2021).
De acordo com Jones (2021), os trinta e seis estados e a capital da Nigéria foram orientados pelo governo nacional a investigarem os casos de brutalidade e abusos cometidos pelo SARS, todavia, as operações não foram transparentes e falharam em diversos pontos, como na coleta de depoimentos. Segundo o mesmo autor, os Estados Borno, Jigawa, Kano, Kebbi, Sokoto, Yobe e Zamfara não fizeram nenhuma investigação, e outros dezoito, fizeram, mas não publicaram os resultados. No que tange ao tratamento dado às vítimas e suas famílias, o Instituto de Inteligência nigeriano – SBM, afirmou que foi destinado o valor de aproximadamente 1 bilhão de nairas, o que corresponde a 2,4 milhões de dólares (JONES, 2021).
Os jovens, maioria do país, também são maioria entre os que procuram emprego: dos 21,7 milhões de desempregados na Nigéria em 2020, 13,9 milhões eram jovens (FAYEHUN, ISIUGO-ABANIHE, 2020). Segundo o manifestante Braithwaite “Eles (o governo da Nigéria) estão fazendo todas essas coisas apenas para sufocar os jovens e está funcionando” (JONES, 2021, tradução nossa) . Em entrevista para o jornal BBC, os cidadãos nigerianos afirmam que o movimento confirmou o potencial da juventude e que eles já estão se mobilizando para as próximas eleições (JONES, 2021).
Uma frase bastante proclamada pela multidão durante os protestos foi “soro soke”, que em iorubá tem o significado “falar abertamente” (BUSARI, 2020). Essa expressão reflete o entendimento dos manifestantes de que a dissolução da SARS e a restituição das vítimas foram ações governamentais importantes para mitigar o problema, mas não são o suficiente. Para o movimento, é necessário que a política de direitos humanos seja amplamente debatida com a população de forma aberta e tratada pelo governo, além das questões que envolvem os direitos socioeconômicos também serem endereçadas (UWAZURUIKE, 2020).
Conclusão
No caso em análise, foi possível averiguar o protagonismo da juventude nigeriana como força motora das mobilizações contrárias ao SARS e sua política sistemática de violência contra civis. Foi através do engajamento dos jovens que o movimento #EndSARS se estabeleceu e as manifestações foram organizadas, levando ao fim desta unidade policial. Nessa perspectiva, as redes sociais também se apresentaram como um importante espaço para exposição das atrocidades cometidas e discussão entre os grupos de ativismo, além de facilitar a articulação do movimento organizado. O movimento #EndSARS ultrapassa o seu objetivo original de acabar com o Esquadrão Anti-Roubo Especial e passa a simbolizar os anseios da juventude pelo respeito aos direitos humanos e de políticas públicas que sejam eficientes e atendam às demandas da população. Tendo em vista o exposto, constata-se que a dissolução do SARS foi insuficiente para atenuar a violência policial contra civis na Nigéria, visto que a forma como os manifestantes foram tratados pela polícia coloca em evidência que essa é uma problemática estrutural.
Créditos de imagem: Criador AYOKANMI OYEYEMI, Direitos autorais KAIZEN FOTOGRAPHY.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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AMNESTY INTERNATIONAL. Nigeria: Time to end impunity: Torture and other human rights violations by special anti-robbery squad (SARS). Abuja-FCT, Amnesty International Nigeria. Disponível em: https://www.amnesty.org/en/documents/afr44/9505/2020/en/ Acesso em 19 nov. 2021
AYANDELE, Olajumoke. Lessons from the #EndSARS Movement in Nigeria. [s.l.] Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED), 2021. Disponível em: <https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/acleddata.com-Lessons%20from%20the%20EndSARS%20Movement%20in%20Nigeria.pdf> Acesso em 19 nov. 2021
BUSARI, Stephanie. Nigeria’s youth finds its voice with the EndSARS protest movement. CNN. Disponível em: <https://edition.cnn.com/2020/10/25/africa/nigeria-end-sars-protests-analysis-intl/index.html> Acesso em 19 nov. 2021
END SARS: End Sars: How Nigeria’s anti-police brutality protests went global. [s.l.] BBC News, 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-africa-54575219> Acesso em 19 nov. 2021
FAYEHUN, Funke, ISIUGO-ABANIHE, Uche Charlie. #EndSARS: How Nigeria can tap into its youthful population. USA, The Conversation, 2020. Disponível em: <https://theconversation.com/endsars-how-nigeria-can-tap-into-its-youthful-population-148319> Acesso em 19 nov. 2021
JONES, Mayeni. Nigeria’s #EndSars protests: What happened next. Lagos, BBC News, 2021. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-africa-58817690> Acesso em 19 nov. 2021
NIGERIA, Nigeria: A Year On, No Justice for #EndSARS Crackdown. Africanews, 2021. Disponível em: <https://www.africanews.com/2021/10/20/nigeria-a-year-on-no-justice-for-endsars-crackdown/> Acesso em 10 nov. 2021
OSJI, Open Society Justice Initiative. Criminal Force: Torture, Abuse, and Extrajudicial Killings by the Nigeria Police Force. New York: Open Society Institute, 2010. Disponível em: <https://www.justiceinitiative.org/uploads/8063279c-2fe8-48d4-8a17-54be8ee90c9d/criminal-force-20100519.pdf> Acesso em 19 nov. 2021
UWAZURUIKE, Allwell. #EndSARS: The Movement Against Police Brutality in Nigeria. Devenvers, Harvard Human Rights Journal, 2020. Disponível em: <https://harvardhrj.com/2020/11/endsars-the-movement-against-police-brutality-in-nigeria/> Acesso em 19 nov. 2021