A violência e perseguição contra pessoas albinas no Malawi: desafios e impunidade
Por Maria Vitória Lott
No Malawi, pessoas com albinismo, uma condição dermatológica em que a pessoa acaba por produzir muito pouca ou nenhuma melanina, têm que lidar diariamente com o preconceito e o medo pela ameaça a sua integridade física devido a questões culturais. O albinismo está entrelaçado com visões supersticiosas que atribuem poderes mágicos ao sacrifício destas pessoas em rituais e/ou a utilização de certos órgãos para fins de “bruxaria”. Frequentemente, a comunidade local culpabiliza as mulheres e suas famílias pelo nascimento de albinos.
Como resultado de diversas pesquisas na região, o albinismo é compreendido como um “castigo” ou uma maldição, e os membros da família, especialmente as mães, são estigmatizadas pela sociedade (Lund, 2001). Isso alimenta uma percepção de que a violência contra pessoas com albinismo (PCA) seria uma forma legítima de “desfazer” esse “erro” ou “pecado”. Os ataques contra PCA no Malawi, conforme relatado por organizações como a Under the Same Sun e o Conselho de Direitos Humanos da ONU, são parte de uma rede de violência impulsionada por crenças supersticiosas, que afirmam que os ossos, cabelos, genitais e outras partes do corpo dessa população concedem sorte por seus poderes especiais. Essas partes corporais são secas, trituradas e comercializadas em mercados paralelos, inclusive em países vizinhos como Moçambique, Tanzânia e República Democrática do Congo (UNHRC, 2017).
O relatório “We are human just like you”, que foi usado como uma base importante deste texto conjuntural cita Muleya Mwananyanda, Diretora Adjunta da Anistia Internacional para a África Austral, que ao ser entrevistada faz a seguinte remarca: “pessoas com albinismo simplesmente não estão seguras no Malawi, seja em suas casas ou nas ruas” (Amnesty International, 2021).
Segundo dados da organização Under the Same Sun, houve 55 casos de violência contra PCA, incluindo 18 homicídios, 25 sobreviventes, 5 pessoas desaparecidas e 7 saques a sepulturas em seu relatório de março de 2021, enquanto de acordo com o Conselho de Direitos Humanos da ONU (UNHRC), foram registrados mais de 150 casos de homicídios, ataques e outras violações dos direitos humanos contra PCA no Malawi desde 2014 (UNHCR, 2019). A especialista independente da ONU para os direitos humanos de PCA, Ikponwosa Ero, apontou em seu relatório ao Conselho de Direitos Humanos em janeiro de 2019 que o número de ataques contra pessoas com albinismo é maior do que o número formalmente registrado: de acordo com informações recebidas de organizações da sociedade civil na Zâmbia, a maioria dos ataques e violações contra pessoas com albinismo é perpetrada por amigos e familiares próximos e raramente são relatados (Baker et al, 2021).
Diante disso, a realidade de PCA no Malawi é marcada pelo medo constante de sequestros e assassinatos. Muitos têm sido forçados a fugir de suas casas ou a se deslocar para lugares mais seguros, enquanto outros buscam refúgio em países vizinhos para escapar da violência (UNHRC, 2019). Esse clima de insegurança tem impacto direto na qualidade de vida dessas pessoas e suas famílias com crianças sendo impedidas de frequentar a escola devido ao risco de ataque durante o trajeto ou até dentro das próprias instituições educacionais (Lynch et al., 2011). Esses fatores agravam ainda mais a marginalização e a exclusão social da população albina.
A abordagem de Buzan, Waever e de Wilde (1998) de segurança internacional propõe que a segurança deve ser analisada em múltiplos domínios: político, econômico, social e humano. No contexto do Malawi, a perseguição a pessoas com albinismo pode ser vista como uma ameaça à segurança humana, um conceito central dessa teoria. Para os autores, a segurança humana não se limita à ausência de guerra, mas envolve a proteção da integridade física, da dignidade e do bem-estar dos indivíduos. Nesse sentido, a violência contra as PCA no Malawi, que inclui assassinatos, mutilações e sequestros, representa uma grave ameaça à sua segurança física, mas também à sua segurança social e psicológica.
Além disso, Buzan e seus co autores também destacam que a segurança não é apenas um produto das ações estatais, mas do ambiente social e das relações interpessoais. No caso do Malawi, a marginalização social das pessoas com albinismo, com exclusão de serviços essenciais como educação e saúde, agrava ainda mais sua vulnerabilidade, tornando a ameaça à sua segurança uma questão que transcende a violência direta e envolve aspectos estruturais da sociedade.
Logo, faz-se necessária a interação entre os diferentes domínios da segurança. A perseguição, por exemplo, não apenas afeta a segurança física desses indivíduos, mas compromete a segurança societal como um todo, considerando que aqueles que protegem PCA podem ser coagidos a praticar atos violentos contra eles, a marginalização e os ataques direcionados a esse grupo criam um ambiente de desconfiança, medo e fragmentação social, o que enfraquece a ordem social e pode gerar divisões mais profundas dentro da sociedade. No nível político, a falta de uma resposta adequada do governo malawiano e a impunidade observada nos crimes contra as PCA refletem a falha do Estado em garantir a segurança de todos os seus cidadãos.
Em um relatório, a Anistia Internacional revelou que pessoas com albinismo enfrentam grandes atrasos na obtenção de justiça, com uma taxa de resolução de casos significativamente menor que a de outras investigações criminais. Dados do Serviço de Polícia do Malawi e do Ministério da Justiça indicam que apenas 30% dos 148 casos registrados foram concluídos. Até o momento, apenas um caso de assassinato e um de tentativa de assassinato foram resolvidos com sucesso. Os próprios policiais expressaram preocupação sobre esses atrasos à Anistia Internacional, citando a escassez de magistrados seniores capacitados para lidar com esses casos (Amnesty International, 2018).
A impunidade observada nas agressões contra PCA reflete uma falta de uma resposta forte do governo malawiano e da comunidade internacional à violência contra os albinos, impedindo que o problema seja tratado como uma verdadeira ameaça à segurança nacional. Consequentemente, ao não responsabilizar adequadamente os agressores e ao permitir que casos de assassinato e tráfico de partes do corpo passem impunes, o Estado malawiano falha em proteger seus cidadãos, o que resulta em uma sensação de insegurança generalizada para PCA.
A ausência de um processo efetivo de justiça e a morosidade nas investigações e julgamentos demonstram um colapso na capacidade do Estado de exercer o monopólio da violência legítima e de proteger os direitos humanos. De acordo com os autores, a segurança política de um Estado depende diretamente da sua habilidade em garantir a segurança de seus cidadãos, e a falha em enfrentar a violência contra albinos coloca em risco a confiança do povo no governo e nas instituições de justiça.
Assim, o medo ligado à crença em bruxaria e superstição impede muitas vítimas ou testemunhas de denunciarem os ataques. Repetidamente, familiares dos agressores e até os próprios agressores tentam ocultar a violência, criando um “código de silêncio” que dificulta o registro dos crimes. Isso reforça a percepção de que as autoridades locais não conseguem enfrentar a gravidade da situação, perpetuando o ciclo de violência e impunidade no país (Baker et al., 2021).
Na análise de Bain, (2006) a segurança do Estado e do indivíduo fornecem outra perspectiva importante para entender a perseguição a albinos no Malawi. Bain argumenta que a segurança do Estado e a segurança do indivíduo estão intimamente conectadas. Quando o Estado falha em proteger seus cidadãos de ameaças internas, como a violência direcionada a grupos vulneráveis, a insegurança social se agrava. No caso das perseguições a PCA, a falha do Estado em garantir a segurança física e psicológica dessa população cria um ambiente onde o medo e a insegurança são constantes. A impunidade se torna um fator central para a perpetuação dessa insegurança, pois, ao não responsabilizar os agressores, o Estado envia uma mensagem de que tais crimes podem ser cometidos sem consequências.
Nessa ótica, a segurança do Estado e do indivíduo oferece uma perspectiva crucial para entender a dinâmica da perseguição aos albinos no Malawi, especialmente em relação à impunidade e à falha do Estado em garantir a segurança de seus cidadãos. Quando o governo não toma medidas eficazes para proteger grupos vulneráveis, como as PCA, a insegurança social se agrava, criando um ambiente em que a violência se torna mais recorrente e a confiança nas instituições enfraquece. A impunidade, observada na grande maioria dos casos de violência contra albinos, apenas perpetua esse ciclo de insegurança, uma vez que os agressores muitas vezes não são responsabilizados. A falta de investigações eficazes e a morosidade nos processos judiciais, conforme relatado pela Anistia Internacional, demonstram a incapacidade do Estado em cumprir seu papel fundamental de garantir a segurança de todos os seus cidadãos. Esse fracasso cria uma sensação de vulnerabilidade constante entre as pessoas com albinismo, que, além de sofrerem com os ataques violentos, enfrentam a invisibilidade social e a marginalização.
Em conclusão, a situação das PCA no Malawi reflete uma grave violação dos direitos humanos e uma falha substancial do Estado em garantir a segurança de seus cidadãos. A perseguição e a violência contra essa população, alimentadas por crenças supersticiosas e a impunidade observada nas investigações e processos judiciais, resultam em um ambiente de medo constante e exclusão social. Por conseguinte, a análise de autores como Buzan, Waever, de Wilde e Bain sublinha que a segurança deve ser entendida de forma abrangente, envolvendo não apenas a proteção física, mas também a garantia de uma vida digna, sem discriminação ou violência cotidiana. Em suma, o governo do Malawi, ao não enfrentar adequadamente essa questão, contribui para um ciclo de insegurança que afeta profundamente a vida das PCA, exigindo uma ação urgente e coordenada, tanto nacional quanto internacional, por parte dos países vizinhos para garantir a proteção e os direitos dessa população vulnerável.
Referências
AMNESTY INTERNATIONAL. Malawi: impunity fuels killings of people with albinism for their body parts. 2018. Disponível em: https://www.amnesty.org/en/latest/news/2018/06/malawi-impunity-fuels-killings-of-people-with-albinism-for-their-body-parts/. Acesso em: 20 nov. 2024.
AMNESTY INTERNATIONAL. Malawi: killing of a girl with albinism. 2022. Disponível em: https://www.amnesty.org/en/latest/news/2022/12/malawi-killing-of-a-girl-with-albinism/. Acesso em: 20 nov. 2024.
BAKER, Charlotte; LUND, Patricia; MASSAH, Bonface; MAWERENGA, Jones. We are human, just like you: Albinism in Malawi – Implications for security. Journal of Humanities, v. 29, n. 1, p. 57-84, 2021. Disponível em: https://ajol.info. Acesso em: 20 nov. 2024.
BAIN, William. The empire of security and the safety of the people. London: Routledge, 2006
BUZAN, Barry; WÆVER, Ole; DE WILDE, Jaap. Security: a new framework for analysis. Boulder: Lynne Rienner Publishers, 1998.
RELIEFWEB. Malawi: impunity fuels killings of people with albinism for their body parts. Disponível em: https://reliefweb.int/report/malawi/malawi-impunity-fuels-killings-people-albinism-their-body-parts. Acesso em: 20 nov. 2024.
UNITED NATIONS. Making education safe for children with albinism in Malawi. Disponível em: https://www.un.org/africarenewal/news/coronavirus/making-education-safe-children-albinism-malawi. Acesso em: 20 nov. 2024.
