O silencio frente a proposta de paz etíope: um pretexto para a permanência do autoritarismo eritreu?
Nádya Carolline Silveira
As relações entre Eritreia e Etiópia podem ser traçadas em pelo menos três décadas de conflito e tensões no que diz respeito ao separatismo até a guerra interestatal. Neste sentido, em junho de 2018, quando o governo etíope finalmente aceita as reivindicações do acordo de paz assinado em 2000, o silencio do governo eritreu para aceitação e conquista dos objetivos tão almejados desde a virada do século levantam algumas indagações a respeito da sua real estratégia política.
A princípio, o território hoje conhecido como Eritreia estava inserido no chamado Império Etíope, e assim como o império que sucumbiu à invasão e conquista italiana de 1869 a 1941, também as raízes eritreias foram colonizadas. A libertação da Etiópia foi consequente da derrota italiana na Segunda Grande Guerra, e baseando-se no ideal de autodeterminação que se seguiu, as Nações Unidas determinaram que a Eritreia continuaria formalmente parte do império, embora desta vez com maior grau de autonomia (Joireman, 2000).
Vinte anos depois, em 1961 a independência da Eritreia foi revogada a partir do interesse etíope em manter o acesso ao mar vermelho. Neste momento, se iniciaria a Guerra de Independência da Eritreia (1961-1991), um conflito que contou com uma crise interna etíope e um golpe de Estado que favoreceram a vitória militar da Frente de Libertação do Povo da Eritreia (EPLF). Assim, em 1993 por um referendo consentido pela Etiópia, o povo eritreu garantiu sua independência. (Iyob, 1997). Contudo, as fronteiras entre os dois países nunca haviam sido claramente demarcadas, o que se tornaria uma das causas principais de um novo conflito.
Utilizando a disputa fronteiriça como razão oficial para o retorno das tensões entre os dois países, as hostilidades cresceram de tal modo que em 1998 as tropas eritreias transpuseram as fronteiras de facto ocupando e anexando a região de Badme. Em resposta, as forças etíopes mobilizaram suas forças para um ataque total, reafirmando o Estado de Guerra entre os dois países do Chifre da África (Joireman, 2000).
Mapa 1 – Reivindicações fronteiriças Eritreia-Etiópia durante a Guerra de 1998.
Fonte: Eritrea-Ethiopia Boundary Comission
Um conflito equiparado à Primeira Grande Guerra pelo número de tropas empregadas, trincheiras e cujo resultado foi calculado em dezenas de milhares de mortos. Em junho de 2000, os dois países assinaram o Tratado de Argel concordando em cessar hostilidades e estabelecer uma comissão neutra que teria autoridade para delimitar as fronteiras. Assim, em abril de 2002 a Comissão apresentou sua decisão reafirmando a região de Badme como parte da Eritreia. O lado etíope concordou com a arbitragem no papel, já que na pratica sua recusa em aplicar o tratado e desocupar a região causa uma tensão constante em ambos territórios. (Agreement Between…, 2000; Eritrea – Ethiopia…, 2002).
Após dezesseis anos de ocupação e impasse, o recém empossado primeiro ministro da Etiópia Abiy Ahmed declarou que o governo deve trazer de volta a paz entre as nações-irmãs. E assim, aceitar e implementar totalmente os artigos pressupostos pelo Tratado de Paz assinado em Argel. É incontestável que a declaração etíope foi uma ação inesperada para qualquer parte, porém mais inesperado ainda é o silencio eritreu acerca dessa nova proposta de paz. Mais de quinze dias após o manifesto etíope, o aguardado era finalmente a paz entre as nações e a conquista dos objetivos que a Eritreia lutou por tanto tempo. (Gladstone, 2018).
A mudez do governo eritreu pode ser analisada via estudos de Carl Schmitt (2009) acerca das noções de Soberania e Estado. Na perspectiva schmittiana, a relação política é caracterizada pela relação de amigo/inimigo, assim a necessidade da ordem e proteção se faz pela própria delimitação daqueles que tem a mesma identidade (amigos) e o estrangeiro (inimigo). Para além das noções de amigo/inimigo, Carl Schmitt designa aquele cuja decisão sobre a delimitação do outro é aceita, como o poder Soberano. E como poder Soberano, é também aquele capaz de determinar o Estado de exceção.
Ora, em um pacto tácito os indivíduos marcam o Soberano como protetor ultimo frente ameaças, e em contramão o povo protegido deve servir com obediência aos preceitos estatais, uma vez que este garante sua segurança. Assim, no redirecionamento de forças para combate do inimigo cria-se uma situação emergencial, um sistema de suspensão de direitos e liberdades individuais, para que esses mesmos direitos e liberdades não sejam prejudicados por uma ameaça exterior (Schmitt, 2009). Um grande paradoxo entre a liberdade e a segurança.
A necessidade de uma ameaça, seja ela real ou imaginada, traça as narrativas de poder do soberano e legitima seu autoritarismo frente a população. Adentrando na política doméstica da Eritreia, ainda em 1993 durante a independência formal do país, Isaias Afwerki um ex-líder de guerrilha se tornou presidente e desde então governa o país ininterruptamente. Se a única evidencia legal de democracia foi apresentada em 1997 quando uma constituição nacional foi aprovada, na realidade tem-se na Eritreia um líder que governa sem parâmetros legais e cujas ações já foram denunciadas como Crimes contra Humanidade pela Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos. (Laub, 2016; Woldemariam, 2018).
Mesmo gerando uma das maiores crises de refugiados da Africa, as declarações da Eritreia entram em consonância com os ditos schimittianos, inclusive reforçando a necessidade do Estado de Exceção pela ameaça etíope. A surpresa da proposta de paz do grande inimigo vem de forma a solapar o autoritarismo eritreu, uma vez que sem o papel da ameaça determinado não há justificativa para o Estado de exceção. Assim, o silencio frente a proposta de paz etíope surge como pretexto para a permanência do autoritarismo de Afwerki.
Referências
AGREEMENT BETWEEN the Government of the Federal Democratic Republic of Ethiopia And the Government of the State of Eritrea. Algiers, 18 June 2000. United States Institute of Peace. Disponível em: <https://www.usip.org/sites/default/files/file/resources/collections/peace_agreements/eritrea_ethiopia_12122000.pdf> Acesso em: 19 de jun. 2018
ERITREA – ETHIOPIA Boundary Commission. Decision Regarding Delimitation of the Border between The State of Eritrea and The Federal Democratic Republic of Ethiopia. 2002. Disponível em: <https://web.archive.org/web/20061025101109/http://www.un.org/NewLinks/eebcarbitration/EEBC-Decision.pdf> Acesso em 19 de Jun. 2018
GLADSTONE, Rick. Ethiopia to ”Fully Accept” Eritrea Peace Deal From 2000. The New York Times, 5 de Jun. 2018. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2018/06/05/world/africa/ethiopia-eritrea-peace-deal.html> Acesso em: 19 de Jun. 2018.
IYOB, Ruth. The Eritrean Struggle for Independence: Domination, Resistance, Nationalism, 1941–1993. Cambridge [England]: Cambridge University Press, 1997. p. 175
JOIREMAN, Sandra F. “Ethiopia and Eritrea: Border War.” In History Behind the Headlines: The Origins of Conflicts Worldwide, editado por: Sonia G. Benson, Nancy Matuszak, and Meghan Appel O’Meara, 1-11. Vol. 1. Detroit: Gale Group, 2001.
LAUB, Zachary. Authoritarianism in Eritrea and the Migrant Crisis. Council on Foreign Relations, 16 de Set. 2016. Disponível em: <https://www.cfr.org/backgrounder/authoritarianism-eritrea-and-migrant-crisis> Acesso em: 19 de Jun. 2018
SCHMITT, Carl. O Conceito do Político/ Teoria do Partisan. Editora DelRey, Belo Horizonte. 2009.
WOLDEMARIAM, Zekarias. Eritrea. Behind Eritrea’s Silence Over Ethiopia’s Call for Peace. The Ethiopian Herald, 9 de Jun. 2018. Disponível em: <http://www.ethpress.gov.et/herald/index.php/news/national-news/item/12070-behind-eritrea-s-silence-over-ethiopia-s-call-for-peace> Acesso em 19 de Jun. 2018
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