A Grande Represa do Renascimento Etíope e o conflito por recursos hídricos na Bacia do Nilo
Matheus Fonseca
Nos últimos anos, a expansão de sua matriz energética tem sido uma das prioridades do governo etíope, uma vez que é o acesso a energia é fundamental para o desenvolvimento econômico. Atualmente 52% da população da Etiópia não tem a sua disponibilidade energia elétrica, impedindo de maneira significativa a geração de riqueza e o aumento da qualidade de vida. Não obstante, de 2011 a 2015 a demanda aumentou em 32%, evidenciando as deficiências do país e obrigando o Estado a procurar novas alternativas (CHEN; SAWN, 2014).
Segundo Chen e Sawn (2014), a solução encontrada pela Etiópia foi dar início a construção da Grande Represa do Renascimento Etíope , a qual permitirá a construção da maior hidrelétrica da África. Sua construção já estava nos planos governamentais desde a década de 1960, mas o projeto somente começou em 2011. A hidrelétrica não só permitirá que o país se torne autossuficiente na produção de energia, como também exportador. No entanto, o projeto, localizado no Nilo Azul, tem resultado em tensões com Sudão e Egito. Os dois países estão localizados rio abaixo, sendo que aproximadamente 85% das águas do Nilo que passam por eles vêm da Etiópia.
Figura 1 – Rio Nilo e a localização da Grande Represa do Renascimento Etíope
Fonte: DW
O governo egípcio e, em menor medida, o sudanês têm argumentado que a barragem pode afetar seus acessos as águas do Nilo, em torno do qual gira grande parte da economia dos países. Desta forma, Cairo tem invocado dois tratados do século XX que garantem privilégios ao Egito. O primeiro deles foi assinado em 1929 entre Egito e Sudão, que até então estavam sob domínio britânico. O acordo garantia privilégios à Cairo e Cartum, algo que foi reforçado pelo tratado assinado em 1959, o qual assegura acesso a 90% das águas do Nilo aos dois países (ASIEDU, 2018). Segundo Roussi (2019), isso significa que o Egito tem direito a 55,5 bilhões de metros cúbico de água anuais, enquanto o Sudão tem direito a 18,5 bilhões.
A Etiópia, assim como outros países rio acima, questiona os direitos egípcios e sudaneses, argumentando que não é signatária dos tratados e que a represa não terá um impacto significativo sobre os países, mesmo durante o período de enchimento. Além do mais, Adis Abeba alega que a hidrelétrica é fundamental para o desenvolvimento do país. No entanto, o Egito, como colocado anteriorme, faz oposição ao projeto etíope, uma vez que acredita que a represa diminuirá seu acesso às águas do Nilo. Por outro lado, o Sudão, apesar das ressalvas, passou a ver o projeto como uma oportunidade, considerando que a represa pode ser um mecanismo para controlar as enchentes e que a Etiópia possa se tornar uma fornecedora de energia ao país (ASIEDU, 2018). Ou seja, os três países possuem visões diferentes sobre quais as consequências, algo que tem dificultado um acordo entre os três.
Chen e Sawn (2014) argumentam que as divergências não dizem respeito somente a utilização do Nilo, mas envolvem um jogo geopolítico mais profundo, em que a hegemonia egípcia na região passou a ser questionada. Nesse sentido, é relevante notar que a construção da represa começou em 2011, ano em que o Egito vivenciava uma série crises internas, o que diminui de maneira considerável sua projeção internacional, abrindo oportunidades para a Etiópia. Além do mais, uma participação mais ativa da China na região fortaleceu a posição etíope, oferecendo suporte financeiro e tecnológico. Sendo assim, os atores afirmam que “graças ao apoio da China, a Etiópia não apenas aspira explorar seu enorme potencial hidrelétrico, mas também começou a desafiar o status quo histórico sobre a utilização da água do Nilo” CHEN; SAWN, 2014, p.16).
Havia expectativas de que os países pudessem chegar a um acordo até 2015, mas até hoje, apesar de algumas avanços, os três ainda não conseguiram alcançar um ponto comum (ASIEDU, 2018). Este ano houve uma retoma das negociações, contribuindo para um aprofundamento das tensões. De acordo com Roussi (2019), as principais divergências dizem respeito ao processo de enchimento da represa. A Etiópia espera encher seu reservatório em aproximadamente 5 anos, liberando 35 bilhões de metros cúbicos anuais para o Egito. No entanto, Cairo argumenta que o processo deve ocorrer mais lentamente, levando mais de 7 anos e garantido 40 bilhões de metros cúbicos ao país.
Em setembro deste ano foi realizada uma rodada de negociação em Cairo entre os países, sendo que a questão anterior foi o principal alvo de desentendimento. Além disso, o Egito exigiu que o nível da represa de Assuã não fique abaixo de 165 metros, algo rejeitado pelos etíopes. O Ministro de Águas, Irrigação e Eletricidade da Etiópia, Seleshi Bekele, demonstrou seu descontentamento com as propostas egípcias dizendo que “isto não está certo. Também temos nossas próprias necessidades de desenvolvimento futuro. […] Temos um plano para começar a encher na próxima estação chuvosa e começaremos geração de energia com duas turbinas em dezembro de 2020” (THE EAST AFRICAN, 2019).
A Etiópia espera dar continuidade ao projeto como deseja, o que permitirá que a hidrelétrica esteja totalmente operacional em 2022. Por outro lado, o Egito alegou que, caso conceções não sejam feitas, o país correrá o risco de perder um milhão de empregos e 1,8 bilhão em produção econômica, demonstrando sua dependência com relação ao Nilo (AFRICAN NEWS, 2019). Devido a divergência, a negociação resultou em um impasse, sendo que os países se comprometeram em realizar uma nova rodada de negociação em outubro durante os dias 4 e 5 (DW, 2019).
Conforme acordado, iniciou-se uma nova rodada de negociação, mas sábado (5), o ministro egípcio responsável pelas negociações disse que “as conversas chegaram a um impasse como resultado da inflexibilidade do lado etíope”. Além do mais, o Egito convocou por em mediador internacional, indicando que os Estados Unidos poderiam desempenhar esse papel. A Etiópia contrapôs o posicionamento egípcio, negando o envolvimento de um mediador internacional e alegando que eles foram os responsáveis pelo impasse (REUTERS, 2019). No entanto, na última sexta-feira (11) o primeiro-ministro etíope, Ahmed Ali, e o presidente egípcio, al-Sisi, tiveram uma ligação, em que enfatizaram a necessidade de superar os obstáculos e disseram que esperam chegar a um acordo que atenda às aspirações das três partes envolvidas (ASHARQ AL-AWSAT, 2019).
As possibilidade futuras e quais as possíveis consequências têm sido alvo de debate entre pesquisadores. Segundo Kevin Wheeler, pesquisador de recursos hídricos, o Egito deve experienciar pouca ou nenhuma escassez, caso sejam liberados pelo menos 35 bilhões de metros cúbicos de água e a precipitação anual esteja dentro da média. No entanto, o pesquisador complementa que há motivos para preocupação em anos secos e com baixa precipitação. Por outro lado, Harry Verhoeven, pesquisador sobre a Bacia do Nilo, argumenta que há pouco o que o Egito possa fazer, e o país deverá que se adequar com menor acesso a água durante o período de enchimento do reservatório (ROUSSI, 2019).
Devido às divergências e o fato de os governos ainda estarem em negociação, pouco pode ser dito quanto aos prováveis resultados. Entretanto, toda a questão deixa evidente um rebalanceamento de poderes locais, em que a Etiópia, devido sua necessidade expansão energética, questiona a hegemonia egípcia sobre o Nilo, algo que só foi possível devido às conturbações internas que desestabilizaram o país e a inserção de novas forças, como a China, na região.
REFERÊNCIAS
ASIEDU, Michael. The construction of the Grand Ethiopian Renaissance Dam (GERD) and geopolitical tension between Egypt and Ethiopia with Sudan in the mix. Istambul, GPoT PB, No. 50, Jan. 2018.
CHEN, Huiyi; SWAIN, Ashok. The Grand Ethiopian Renaissance Dam: Evaluating Its Sustainability Standard and Geopolitical Significance. Energy Development Frontier, Vol. 3, Iss. 1, p. 11-19, Mar. 2014.
EGYPT says talks over Ethiopia’s Nile dam deadlocked, calls for mediation. Reuters, 05 de oct. de 2019. Disponível em: <https://www.reuters.com/article/us-ethiopia-dam-egypt/egypt-says-talks-over-ethiopias-nile-dam-deadlocked-calls-for-mediation-idUSKCN1WK0IE>. Acesso em: 12 de oct. de 2019.
EGYPT’S Sisi, Ethiopia PM Stress Need to Overcome Nile Dam Obstacles. Asharq al-Awsat, 12 de oct. de 2019. Disponível em: <https://aawsat.com/english/home/article/1942301/egypt%E2%80%99s-sisi-ethiopia-pm-stress-need-overcome-nile-dam-obstacles> Acesso em: 12 de oct. de 2019.
ETHIOPIA rejects Egypt’s Nile water dam proposal. The East Africa, 19 de set. de 2019. Disponível em: <https://www.theeastafrican.co.ke/news/africa/Ethiopia-rejects-egypt-river-nile-water-dam-proposal/4552902-5279304-12t4hp7/index.html>. Acesso em: 11 de oct. de 2019.
ETHIOPIA rejects Egypt’s proposal to manage Nile dam. African News, 19 de set. de 2019. Disponível em:<https://www.africanews.com/2019/09/19/egypt-ethiopia-disagree-as-talks-over-nile-dam-project-resume//>. Acesso em: 11 de oct. de 2019.
NILE dam project: Talks stall between Egypt and Ethiopia. DW, 17 de set. de 2019. Disponível em: <https://www.dw.com/en/nile-dam-project-talks-stall-between-egypt-and-ethiopia/a-50453181>. Acesso em: 11 de oct. de 2019.
ROUSSI, Antoaneta. Gigantic Nile dam prompts clash between Egypt and Ethiopia. Nature, 04 de Out. de 2019. Disponível em: <https://www.nature.com/articles/d41586-019-02987-6>. Acesso em: 11 de oct. de 2019.