Por Karoline Victoria Sousa Tübben
Introdução
A seguinte análise tem como objetivo compreender a crise de fome na África Austral, com enfoque em Zâmbia e Zimbábue, em razão da emergência da situação desses Estados que, no presente momento, também se veem afetados pela pandemia da COVID-19. Para isso, a análise perpassará pela ampla questão da mudança climática que afeta o planeta como um todo, mas que possui efeitos significativos na região que impactam n setor rural, central para ambas economias, resultando na insegurança alimentar para seus cidadãos. Abaixo, segue uma breve contextualização de ambos países face à questão debatida.
A presente crise de fome na África Austral possui raízes em diversos setores, a começar pela economia, no caso do Zimbábue, visto que o país se vê em recessão econômica desde a gestão do presidente Robert Mugabe (1987-2017), tendo permanecido após o golpe militar sofrido por ele em 2017 (WHY…, 2019). Como resultado da crise econômica, o PIB per capita local foi reduzido na metade desde o início da década, associado à inflação que atingiu níveis estratosféricos (676% em março), levando a desvalorização da moeda. Assim, devido aos altos preços dos bens e serviços básicos, além do alto nível de desemprego, mais de 60% dos cidadãos são incapazes de adquirir os alimentos necessários, caracterizando-os como em situação de insegurança alimentar (ZIMBABWE…, 2019). A seca também é um fator de suma relevância para a presente crise. O Zimbábue sofre com a ausência de chuvas devido ao fenômeno El Niño, o que impacta no setor básico da economia do país: a produção rural (FAO, 2020).
A situação em Zâmbia, igualmente, é deveras agravada pelas condições climáticas do país. Desde 2017, uma seca nas regiões Sul e Oeste, associada às enchentes no Norte, implicaram na fome que persiste em 2020. Além da maior seca enfrentada desde 1981, em 2018, o Estado zambiano enfrenta pragas e doenças na fauna que impactaram a produção rural, em especial de milho, da região considerada o breakbasket[1] da sub-região. Diante disso, esses fatores fizeram com que as exportações desse bem fossem proibidas, tendo em vista que a população tem sua subsistência ameaçada, como indicado pelo crescimento do índice de má nutrição em 6% (SECA…, 2019). Tendo isso em vista, o artigo analisará o papel das mudanças climáticas como fator causal da crise de fome perpassando pelo conceito de insegurança alimentar. Para além disso, haverá um destaque para a presente pandemia que adiciona mais complexidade na situação da região.
A questão das mudanças do clima e a insegurança alimentar
As mudanças do clima são consequência do aumento da concentração de CO2, óxido nitroso e metano (os gases de efeito estufa) na atmosfera nos últimos três séculos, que, contemporaneamente, superam os níveis emitidos anteriores à revolução industrial devido ao uso de combustíveis fósseis. Desse modo, dentre as alterações no clima, podem ser identificados o aumento na temperatura média global que implica no derretimento acelerado das geleiras, que por sua vez, tem como resultado um crescimento do nível do mar (IPCC, 2007 apud SOUSA NETO, 2009). Mesmo todo o continente africano tendo contribuído somente 1% para o total de emissões históricas dos gases efeito estufa, a região da África Austral vem se destacando no que tange ao sofrimento causado pela mudança climática, já sendo caracterizada por ter um território quente e seco (IF…, 2019).
A sub-região registra um aumento nas temperaturas duas vezes maior do que o resto do planeta, em especial, nas regiões de baixa altitude, em decorrência dos menores níveis de CO2. Portanto, adventos como as secas e enchentes, que dobraram desde a década de 1990 na região, tendem a aumentar, como apontado pela projeção de que a média anual de chuvas diminua até a metade do século XXI, e, no final desse período, aumentaria exponencialmente, sinalizando um desequilíbrio ambiental (IPCC, 2018).
Há também consequências para a agricultura regional, levando em conta que a prática depende da chuva para irrigação e alimentação da pecuária. A produção de cereais, como o milho, em Zâmbia, é considerada a mais vulnerável às mudanças climáticas, estimando-se uma redução da produção total da região em até 20% na metade do século, com destaque para o Zimbábue, onde é previsto uma diminuição de aproximadamente 30% (IPCC, 2018). Isto posto, a mudança climática acaba por afetar na questão da segurança alimentar, compreendida, conforme a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) como um elemento em uma rede de outros para analisar desenvolvimento do campo e pobreza (BURCHI, MURO, 2012). Esses aspectos se interligam, em especial, ao impactar nos preços dos produtos rurais, doméstica e internacionalmente, que são elásticos, de modo que diminui o poder de compra, e consequentemente, a segurança alimentar dos indivíduos (IPCC, 2018). Assim se torna claro a necessidade de que os governos se adaptem à essas consequências, em especial no que tange ao seu desenvolvimento econômico.
Iniciativas governamentais para combater os efeitos das mudanças climáticas na segurança alimentar
Nesse processo de alterações, o continente africano possui algumas vantagens, como a riqueza em recursos naturais e minerais, assim como redes sociais bem estabelecidas, em especial no nível comunitário, além de uma longa tradição adaptativa, que inclui variabilidade de produção e desenvolvimento de pequenos empreendimentos a partir de conhecimentos locais (IPCC, 2018).
A Zâmbia, por exemplo, vem desenvolvendo medidas para mitigar o desmatamento em seu território a partir de uma iniciativa de cooperação entre o Programa de Investimento Florestal (FIP), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP), de modo a construir um melhor uso da terra a partir de uma adaptação nacional da REDD+, estratégia desenvolvida pela FAO para reduzir emissões oriundas do desmatamento em países em desenvolvimento. A partir dessa mesma estrutura organizacional, alguns países da África austral, incluindo Zâmbia e Zimbábue, vêm cooperando por meio do compartilhamento de conhecimentos, aprendizados e experts para melhorarem a implementação dessa estratégia em seus respectivos Estados (REDD+…, 2015).
Ainda, o Conselho de Alimentos e Nutrição do Zimbábue é resultado de uma iniciativa governamental de abordar o tema da insegurança alimentar dos cidadãos, criado no ano de 2001. Esse órgão desenvolveu a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutrição em 2013, construída por meio da participação civil, um aspecto que permanece sendo consolidado por meio da realização de surveys periodicamente (FOOD & NUTRITION COUNCIL, 2020).
A FAO é a maior parceira dos países na batalha contra a insegurança alimentar, no que tange à resposta direta à seca, a organização é a protagonista nos esforços para mitigar os efeitos desse fenômeno, especialmente em Zâmbia. Uma das principais iniciativas é a distribuição de alimentos básicos fornecidos pelo governo, de modo que a organização já providenciou ajuda a 16 distritos do país (WFP…, 2020). No caso do Zimbábue, a organização conseguiu amenizar a situação em seis dos nove distritos classificados como emergenciais, prestando auxílio a aproximadamente 4 milhões de zimbabuenses até março de 2020 (URGENT…, 2020).
Impactos da pandemia na crise sub-regional
O vírus COVID-19, cujos primeiros casos foram identificados na China, chegou ao continente africano e, apenas três meses após a Organização Mundial da Saúde declarar a pandemia, o número de africanos mortos já chega a aproximadamente 4600. Na região da África Austral, Zâmbia e Zimbábue são, respectivamente, o segundo e o quarto país com mais casos do novo coronavírus, tornando a atual crise de fome na região ainda mais complexa (TRACKING…, 2020).
Atualmente, o governo zimbabuense permanece em lockdown, procedimento anunciado no fim de março, que implicou em uma severa piora na crise econômica, tendo em vista que os estabelecimentos não essenciais estão fechados, implicando na ausência de renda para os cidadãos do país (ZIMBABWEANS…, 2020). Ademais, a próxima temporada de colheita se vê comprometida em decorrência dessa interrupção das atividades, visto que impede que os fazendeiros trabalhem no campo, além do fato que o fechamento das fronteiras prejudica a cadeia de suprimentos rurais (AS…, 2020).
Com exceção da agricultura, o setor informal é a principal fonte de sobrevivência dos zimbabuenses, o qual permanece não autorizado a reabrir segundo ordens presidenciais. Como resultado diversos cidadãos adentraram a mercados ilegais, como a venda de petróleo. Em resposta, o governo lançou um pacote macroeconômico de 720 milhões de dólares para auxiliar pequenos e médios negócios, contudo, devido à situação financeira do Estado, não há fundos para realizar esses pagamentos, o que fez com que o Ministro das Finanças recorresse ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e outras instituições por empréstimos (COVID-19…, 2020).
A Zâmbia, por sua vez, instaurou a quarentena antes mesmo da primeira confirmação da doença em seu território, suspendendo o funcionamento de escolas e serviços governamentais e fechando fronteiras. Assim como em Zimbábue, os cidadãos zambianos dependem do setor informal como fonte de renda – que não foi incluído nas flexibilizações anunciadas –, o que faz com que as medidas restritivas do governo contribuam para tornar ainda mais precárias as condições para compra de alimentos (ENTENDA…, 2020). Isto posto, a perpetuação da crise de fome na África Austral está prevista como uma das consequências da pandemia, que, além de impactar os sistemas de saúde, vem apontando um futuro próximo de colapso econômico para diversos países em situação de vulnerabilidade (WFP…, 2020).
Considerações Finais
Tendo em vista a análise acima, é possível perceber que os efeitos da ação humana no planeta estão presentes e tendem a aumentar no decorrer do século, afetando os recursos naturais e, por conseguinte, gerando impactos em todas as esferas sociais, culturais, políticas e econômicas. No caso específico de Zâmbia e Zimbábue, a mudança climática, associada à problemas de governança, culminaram na insegurança alimentar que assola seus cidadãos, cujo número, em cada país, respectivamente, estima-se em 738 mil e 637 mil indivíduos respectivamente (OCHA, 2020). Contudo, é necessário salientar que essa questão se mostra deveras complexa e necessária de uma análise compreensiva a longo prazo, contemplando os aspectos históricos da região. Associada à essa crise, a pandemia do novo coronavírus, interligada por alguns especialistas à ação humana no meio ambiente, aponta para os problemas de gestão desses países que se veem materialmente inaptos para implantar as medidas restritivas sem agravar as condições financeiras de seus cidadãos que já se veem precarizadas.
Para além disso, é possível perceber que os países estão tomando medidas estatais para adaptar seus sistemas de modo a torná-los sustentáveis, ao mesmo tempo que visam ampliar o acesso à alimentação e nutrição de seus nacionais. A cooperação é um curso de ação que se destaca, desde a Cooperação Sul-Sul, que é de extrema relevância pelo reconhecimento e respeito das vulnerabilidades e soberania dos países em desenvolvimento, bem como com as organizações internacionais, sendo deveras útil para ambas as crises, sanitária e alimentícia[2].
REFERÊNCIAS:
AS Zimbabweans go hungry, here’s how coronavirus is making everything even worse – especially for women and girls. World Food Program USA, 24 abr. 2020. Disponível em:<https://wfpusa.org/articles/zimbabwe-hunger-coronavirus-women-girls/> Acesso em: 7 jun. 2020.
BURCHI, Francesco, MURO de Pasquale. A Human Development and Capability Approach to Food Security: Conceptual Framework and Informational Basis. 2012. Disponível em: <http://www.undp.org/content/dam/rba/docs/Working%20Papers/Capability%20Approach%20Food%20Security.pdf> Acesso em: 7 jun. 2020
COVID-19 and hyperinflation leave hunger and few options in Zimbabwe. The New Humanitarian, 20 maio 2020. Disponível: <https://www.thenewhumanitarian.org/feature/2020/05/20/Zimbabwe-coronavirus-economy> Acesso em: 7 jun. 2020.
ENTENDA como a pandemia do COVID-19 tem afetado a Zâmbia. MST, 12 abr. 2020. Disponível em: <https://mst.org.br/2020/04/12/entenda-como-a-pandemia-do-covid-19-tem-afetado-a-zambia/> Acesso em: 7 jun. 2020.
Zimbabwe and FAO. Food and Agriculture Organization of the United Nation. 2018. Disponível em: <http://www.fao.org/3/a-az490e.pdf> Acesso em: 7 jun. 2020.
FAO. Countries: Zambia. 2020. Disponível em: <http://www.fao.org/countryprofiles/index/en/?iso3=ZMB> Acesso em: 7 jun. 2020.
FAO. Zimbabwe at glance. 2020. Disponível em: <http://www.fao.org/zimbabwe/fao-in-zimbabwe/zimbabwe-at-a-glance/en/> Acesso em: 7 jun. 2020.
FOOD & NUTRITION COUNCLIL. 2020. Disponível em: <https://fnc.org.zw/> Acesso em: 7 jun. 2020.
IF the climate stays like this, we won’t make it say those on the frontline of Africa’s drought. CNN, 15 dez. 2019. Disponível em: <https://edition.cnn.com/2019/12/14/africa/climate-change-southern-africa-intl/index.html> Acesso em: 7 jun. 2020.
IPCC. Climate change: impacts, adaptation and vulnerability. Part B, Regional Aspects Working Group II, p. 1199-1265. 2018. Disponível em: <https://www.ipcc.ch/site/assets/uploads/2018/02/WGIIAR5-Chap22_FINAL.pdf> Acesso em: 7 jun. 2020.
NATIONAL POLICY ON CLIMATE CHANGE. Policy Monitoring and Research Centre. 2016. Disponível em: <https://www.pmrczambia.com/wp-content/uploads/2017/11/National-Policy-on-Climate-Change.pdf> Acesso em: 7 jun. 2020.
REDD+ Zambia National Strategy to Reduce Emissions from Deforestation and Forest Degradation. UN-REDD Programme. 2015. Disponível em: <http://extwprlegs1.fao.org/docs/pdf/zam181907.pdf> Acesso em: 7 jun. 2020.
SECA que afeta sul de Árica coloca 45 milhões de pessoas sob ameaça de fome. Expresso, 8 nov. 2019. Disponível em: <https://expresso.pt/sociedade/2019-11-08-Seca-que-afeta-sul-de-Africa-coloca-45-milhoes-de-pessoas-sob-ameaca-de-fome> Acesso em: 7 jun. 2020.
SOUSA NETO, Gabriel Moisés de. Impactos do aumento do nível médio do mar em algumas capitais do nordeste brasileiro, e suas consequências ambientais. Tese- Mestrado em Meteorologia – Universidade Federal de Campina Grande. Paraíba, 2009. Disponível em: <http://dspace.sti.ufcg.edu.br:8080/jspui/bitstream/riufcg/4748/1/GABRIEL%20MOIS%c3%89S%20DE%20SOUSA%20NETO%20-%20DISSERTA%c3%87%c3%83O%20%28PPGMet%29%202009.pdf> Acesso em: 7 jun. 2020.
TRACKING Africa’s coronavirus cases. AlJazeera, 7 jun. 2020. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/news/2020/04/tracking-africa-coronavirus-cases-200401081427251.html> Acesso em: 7 jun. 2020.
URGENT international support needed to prevent millions of desperate Zimbabweans plunging deeper into hunger. World Food Programe, 8 abr. 2020. Disponível em: <https://www.wfp.org/news/urgent-international-support-needed-prevent-millions-desperate-zimbabweans-plunging-deeper> Acesso em: 7 jun. 2020.
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ZIMBABWE sanctions: Who is being targeted? BBC, 25 out. 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-africa-50169598> Acesso em: 7 jun. 2020. ZIMBABWEANS go hungry as coronavirus compounds climate woes. Reuters, 18 maio. 2020. Disponível em: <https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-zimbabwe-food/zimbabweans-go-hungry-as-coronavirus-compounds-climate-woes-idUSKBN22U1P4> Acesso em: 7 jun. 2020.
[1] Esse termo é utilizado para definir um território que é o principal produtor de cereais de uma região, tornando-se provedor para os demais.
[2] Para saber mais sobre a cooperação regional africana durante a pandemia, sugere-se a leitura de: https://pucminasconjuntura.wordpress.com/2020/05/20/a-africa-e-a-covid-19-a-resposta-do-continente-a-pandemia-e-a-perpetuacao-de-estereotipos-coloniais-na-sociedade-internacional/#more-1978