Por Larissa Machado
Foto: The Economist
A pandemia de Covid-19 e os seus impactos na democracia e direitos humanos no Zimbábue.
O primeiro caso de Covid-19 no Zimbábue foi confirmado em março de 2020. No mesmo mês, o presidente do país, Emmerson Mnangagwa, decretou o estado de “desastre nacional”. Esta declaração permitiu ao presidente tomar medidas extraordinárias para lidar com a pandemia, pondo em prática um severo lockdown nacional (MUTAMBASERE, 2020). Apesar de necessárias para reduzir a disseminação do vírus, as medidas de isolamento social postas em prática no país têm sido, de acordo com denúncias de organizações internacionais e não-governamentais de direitos humanos, usadas pelo governo de Mnangagwa como um pretexto para perseguição de opositores e ativistas de direitos humanos no país. Neste sentido, o presente texto conjuntural tem como objetivo analisar os impactos da pandemia de Covid-19 na efetivação da democracia e direitos humanos no Zimbábue.
O Zimbábue passou por longas décadas de repressão, violência e casos de corrupção durante o governo do ditador Robert Mugabe, que foi o presidente do país durante 37 anos. Em 2017, após Mugabe destituir aliados políticos para neutralizá-los e fazer com que a sua esposa, Grace Mugabe, pudesse se tornar sua sucessora no poder, as Forças Armadas do país tomaram conta da capital Harare e forçaram o ditador a renunciar (BEARDSWORTH; CHEESEMAN; TINHU, 2019). O atual presidente do país, Emmerson Mnangagwa, era o vice-presidente durante o governo de Mugabe e foi um dos aliados políticos destituídos no período anterior à intervenção militar. Apesar dele ter sido eleito posteriormente com 50,8% dos votos (QUEM…, 2017) , analistas consideram que as eleições foram realizadas apenas para fornecer uma aparência democrática à transição de poder, que, na realidade, se deu a partir do uso da força militar e já anunciava o caráter autoritário da gestão de Mnangagwa (BEARDSWORTH; CHEESEMAN; TINHU, 2019).
A economia no país enfrenta uma das suas piores crises desde o período de hiperinflação dos anos de 2008 e 2009. Apesar da pandemia de Covid-19 ter tido impacto na economia do Zimbábue, uma vez que o comércio se desacelerou e o turismo teve que ser paralisado, é possível apontar falhas na condução da política econômica pelo governo de Mnangagwa. Após anos de emissão monetária e sistema de múltiplas taxas de câmbio, a moeda do país encontra-se amplamente desvalorizada e a economia zimbabueana segue o caminho de uma dolarização crescente, além de uma inflação acima de 700%. Mnangagwa, que iniciou seu mandato afirmando um compromisso com a luta contra corrupção no país, tem membros do seu governo sendo acusados de esquemas milionários de corrupção, incluindo um acordo de equipamentos médicos superfaturados feito pelo ministro da saúde durante o período da pandemia. Além disso, por conta das constantes notícias de abusos governamentais, corrupção e violações de direitos humanos, governos ocidentais rejeitaram os pedidos de ajuda ao país em órgãos como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Banco Mundial (FOR…, 2020).
Esta situação econômica conturbada levou o Zimbábue à piora significativa em indicadores sociais importantes, como o da segurança alimentar. De acordo com relatório sobre o direito à alimentação, feito pela Organização das Nações Unidas (ONU), o país que era conhecido por sua alta produtividade de alimentos e por ser o “celeiro da África”, atualmente conta com mais de 60% da população em situação de insegurança alimentar. Nas áreas urbanas, cerca de 2,2 milhões de pessoas não têm acesso a serviços públicos mínimos, como saúde, alimentação e água potável, enquanto nas áreas rurais o número chega a cerca de 5,5 milhões de pessoas. A relatora Hilal Elver apontou a pobreza, as altas taxas de desemprego, a corrupção generalizada, a instabilidade de preços, o baixo de poder de compra da população, os desastres naturais, as secas recorrentes e as sanções econômicas unilaterais que o Zimbábue recebe como fatores que podem aumentar ainda mais o problema da insegurança alimentar e o provimento de outros serviços básicos para a população zimbabueana nos próximos anos (ZIMBÁBUE…, 2019).
Diante deste cenário de crise socioeconômica, que se intensificou ainda mais com a desaceleração econômica causada pela pandemia de Covid-19, a insatisfação popular com o governo de Mnangagwa tornou-se inevitável. No entanto, a forma do presidente lidar com os seus opositores ou qualquer pessoa que tente denunciar inconsistências no governo tem sido caracterizada pela repressão e uso da violência policial. Duas figuras proeminentes no Zimbábue, o jornalista Hopewell Chin’ono e o político Jacob Ngarivhume, foram presos, acusados de incitar a violência pública e desestabilizar a ordem do país quando buscaram denunciar esquemas de corrupção do governo durante o período da pandemia e organizar protestos generalizados para o dia 31 de julho do ano corrente (GV SUB-SAHARAN AFRICA, 2020). Além da prisão sem possibilidade de fiança destes e outros opositores, Mnangagwa estabeleceu um toque de recolher severo no país, colocando forças de segurança nas ruas de todo Zimbábue. Apesar de ter alegado que o motivo seria a busca pela redução das taxas de transmissão do coronavírus, ficou claro que o objetivo era principalmente o de impedir as manifestações que estavam sendo organizadas para o dia 31 de julho. Segundo o presidente, quem descumprisse as ordens seria “severamente punido” (ZIMBABWE…, 2020).
De acordo com a organização não-governamental Anistia Internacional (2020), Mnangagwa fez uso da pandemia para promover uma verdadeira “caça às bruxas” em relação a opositores e ativistas políticos e de direitos humanos. Vários ativistas tiveram que se esconder depois que a polícia publicou uma lista de nomes de defensores dos direitos humanos procurados para interrogatório, conectando-os com os protestos planejados e que foram impedidos em detrimento do toque de recolher. Além dos líderes políticos que já foram presos, como Jacob Ngarivhume, diversos outros estão sendo procurados. A ONU também expressou a sua preocupação com a situação no país, uma vez que até mesmo profissionais de saúde atuando no combate à Covid-19 têm sofrido agressões policiais por exigirem melhores condições de trabalho. A porta-voz do Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (EACDH) afirmou que, embora seja importante adotar estratégias para reduzir a transmissão do vírus, “quaisquer medidas de lockdown e restrições devem ser necessárias, proporcionais e limitadas no tempo, e aplicadas de forma humana, sem recorrer à força desnecessária ou excessiva”[1] (COVID-19…, 2020, s.p, tradução nossa).
Apesar deste contexto de forte repressão, a população zimbabueana procurou meios alternativos para expressar a sua insatisfação com o atual governo. A escritora e cineasta premiada, Tsitsi Dangarembga, encorajou seus seguidores a realizarem protestos solo a partir das redes sociais, postando o máximo de fotos possíveis com a bandeira do Zimbábue e uma placa contendo a hashtag #ZimbabweanLivesMatter[2]. A estratégia foi vista como uma iniciativa para atrair atenção internacional para o que está acontecendo no país e possibilitar a expressão daqueles que que queiram se manifestar contra o governo, mas não o fazem por medo da forte repressão policial nas ruas (PATRICK, 2020).
Desta maneira, é possível analisar que o governo de Emmerson Mnangagwa não trouxe a renovação política prometida por ele. Apesar de ter sido eleito e afirmado que romperia com o histórico repressivo do antigo ditador Robert Mugabe, percebe-se que a gestão de Mnangagwa, além de apresentar uma má condução da política econômica, corrupção exacerbada e queda vertiginosa dos índices socioeconômicos do país, também possui um alto teor autoritário, que foi intensificado durante o período da pandemia de Covid-19. Desta maneira, pode-se concluir que a pandemia trouxe, para além de implicações sanitárias, um risco para a efetivação da democracia e dos direitos humanos no Zimbábue, pois possibilitou o uso de uma narrativa de controle do vírus para fins que, na verdade, são autoritários e antidemocráticos, buscando minar as possibilidades de articulação da oposição ao atual governo.
REFERÊNCIAS
ANISTIA INTERNACIONAL. Zimbabwe: Authorities thwart anti-corruption protests, launch a witch-hunt against activists. 31 jul. 2020. Disponível em: <https://www.amnesty.org/en/latest/news/2020/07/zimbabwe-authorities-thwart-anti-corruption-protests-launch-a-witchhunt-against-activists/>
BEARDSWORTH, Nicole; CHEESEMAN, Nic; TINHU, Simucai. Zimbabwe: The coup that never was, and the election that could have been. African Affairs. Oxford, v.118, n.472, p. 580-598, 15 abr. 2019. Disponível em: <https://academic.oup.com/afraf/article/118/472/580/5462513>. Acesso em: 14 out. 2020
COVID-19 must not be used to stifle freedoms, says UN rights office. ONU News. 24 jul. 2020. Disponível em: <https://news.un.org/en/story/2020/07/1069011>. Acesso em: 17 out. 2020.
FOR a few dollars more: Zimbabwe’s worst economic crisis in more than a decade. The Economist. 9 jul. 2020. Disponível em: <https://www.economist.com/middle-east-and-africa/2020/07/09/zimbabwes-worst-economic-crisis-in-more-than-a-decade>. Acesso em: 14 out. 2020
GV SUB-SAHARAN AFRICA. Zimbabwe governance crisis: Arrests over COVID-19 corruption and planned protests. Global Voices. 25 jul. 2020 Disponível em: <https://globalvoices.org/2020/07/25/zimbabwe-governance-crisis-arrests-over-covid-19-corruption-and-planned-protests/>. Acesso em: 16 out. 2020
MUTAMBASERE, Susan. Constitutionalism in the time of Covid-19: the Zimbabwe experience.
African Network of Constitutional Lawyers. Pretoria, 21 maio 2020. Disponível em: <https://ancl-radc.org.za/node/641> Acesso em: 14 out. 2020.
PATRICK, Anita. Zimbabweans stage solo social media protests against human rights abuse in the country. CNN. 10 ago. 2020. Disponível em: <https://edition.cnn.com/2020/08/10/africa/zimbabwe-solo-protest-intl/index.html> Acesso em: 17 out. 2020.
QUEM é Emmerson Mnangagwa, o ‘crocodilo’ que venceu a eleição no Zimbábue após acabar com a era Mugabe. BBC News. 27 nov. 2017. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-42078677> Acesso em: 14 out. 2020.
ZIMBÁBUE enfrenta fome causada pelo homem, diz especialista da ONU. ONU News. 29 nov. 2019. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2019/11/1696191> Acesso em: 16 out. 2020.
ZIMBABWE tightens COVID rules ahead of anti-government protests. Reuters. 21 jul. 2020 Disponível em: <www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-zimbabwe-lockdown-idUSKCN24M2HM>. Acesso em: 16 out. 2020
[1] […] any lockdown measures and restrictions should be necessary, proportionate and time-limited, and enforced humanely without resorting to unnecessary or excessive force.
[2] Em português, #VidasZimbabueanasImportam