Texto Conjuntural: Chifre da África #25 – O protagonismo feminino nas manifestações políticas sudanesas

O protagonismo feminino nas manifestações políticas sudanesas

Paula de Paula Mattos

INTRODUÇÃO

Cidadãos da província de Atbara, no norte do Sudão, queimaram a sede local do Partido do Congresso Nacional, em dezembro de 2018, marcando o estopim de uma série de protestos que se espalharam pelo país. Motivados pelo aumento dos preços dos bens de consumo básicos, os manifestantes protestaram a respeito do declínio do estado econômico do governo do presidente Omar al-Bashir e seu regime autocrático de longa data. As manifestações políticas se estenderam por grande parte do território, e obtiveram o apoio do exército sudanês, reivindicando a transição para um regime político civil. (HASSAN; KODOUDA, 2019)

Mulheres e jovens tomaram a frente das manifestações políticas no Sudão, somando cerca de 70% dos protestantes, evidenciando o protagonismo feminino na revolução. (ONU Mulheres, 2019a) As mulheres serviram como membros-chave das Forças de Liberdade e Mudança, grupo de oposição aos oficiais militares que lideraram o golpe, e ajudaram a moldar a Declaração de Liberdade e Mudança – um roteiro para a transição do Sudão do regime militar para o civil. (ONU Mulheres, 2019b)

A opressão sofrida pelas mulheres no Sudão se insere no contexto de um regime autocrático com baixa participação popular. Desta forma, questiona-se como o protagonismo feminino nas manifestações políticas sudanesas afetam as dinâmicas sociais no país, possibilitando a inclusão de suas demandas políticas no processo decisório em um governo que busca a transição para um regime político civil.

1 A REVOLUÇÃO SUDANESA

A ascensão de Omar al-Bashir ao poder no Sudão, em junho de 1989, ocorreu por meio de um golpe de Estado, quando este liderava as forças armadas que derrubaram o ex-primeiro ministro democraticamente eleito, Sadiq al-Mahdi. Em outubro de 1993, al-Bashir dissolveu a junta militar que o levou ao poder, nomeando-se presidente civil em um movimento que tinha por objetivo estabelecer um regime Inqaz, isto é, um governo islâmico, estável e comandado por civis no maior país da África, antes da separação do Sudão do Sul. (REUTERS, 2008) Omar Al-Bashir se manteve no poder por quase 30 anos, sendo reeleito presidente por meio de eleições políticas diretas, a última realizada no Sudão, em 2015, sob acusações de fraude (BEREKETEAB, 2015).

A longa trajetória de al-Bashir no poder foi marcada por uma série de conflitos, incluindo uma sangrenta guerra civil, e uma longa recessão econômica, sobretudo após a secessão do Sudão do Sul, em 2011, que abrigava cerca de três quartos das reservas de petróleo do Sudão (HASSAN; KODOUDA, 2019). É importante ressaltar que Omar al-Bashir é alvo de acusações no Tribunal Penal Internacional (TPI), instituição internacional permanente que tem a competência de julgar indivíduos segundo as diretrizes do Direito Internacional, e sentenciá-los de acordo com as penalidades cometidas. O caso sudanês foi o primeiro a ser debatido no âmbito do Conselho de Segurança das Nações Unidas desde que o TPI foi estabelecido, e al-Bashir é acusado por crimes contra a humanidade, crimes de guerra e genocídio. (DIBU; MOGES, 2019) As acusações datam de 2008, em decorrência dos crimes cometidos no conflito iniciado em 2003 em Darfur, ao oeste do Sudão, em referência aos ataques das forças de segurança sudanesas e milícias pró-governo na região, durante a campanha de contra-insurgência do governo quando rebeldes armados passaram a enfrentá-lo, alegando que a região era negligenciada. Segundo a ONU, cerca de 300 mil pessoas morreram e 2,5 milhões foram forçadas a deixar seus lares. (BBC, 2020)

Evidencia-se, portanto, uma série de descontentamentos da população civil com o governo do veterano Omar al-Bashir ao longo de sua permanência no poder. Ao final do ano de 2018, novas manifestações populares tomaram conta do país, sobretudo devido à recessão econômica e à inflação alta, que culminaram na redução dos subsídios do governo a bens de consumo básicos, como trigo e combustíveis. Os protestos políticos, com o apoio das forças militares do Sudão, depuseram o ditador, e o grupo de oficiais militares que lideraram o golpe formou o Conselho Militar de Transição (CMT) que, em parceria com as Forças de Liberdade e Mudança (FLM), grupo de oposição surgido durante os meses de protesto, iniciaram as negociações para traçar um caminho para a transição do país para o governo civil. Segundo as negociações, os militares devem permanecer no poder por cerca de dois anos, e convocar eleições democráticas para a presidência da república em 2022. (HASSAN; KODOUDA, 2019) Vale ressaltar que o governo provisório anunciou, em fevereiro de 2020, que aceita entregar al-Bashir ao Tribunal Penal Internacional. (BBC, 2020)

2 A PARTICIPAÇÃO FEMININA

As manifestações políticas ocorridas em 2019 sinalizaram uma mudança na natureza das demandas dos sudaneses de puramente econômica para política, responsabilizando o aumento dos preços dos bens de consumo básicos às políticas econômicas e à corrupção do governo al-Bashir, exigindo o fim do regime. (HASSAN; KODOUDA, 2019) A transição de um longo regime militar para um regime político civil pressupõe uma perspectiva de democratização do Estado, e a alteração das dinâmicas sociais no país, incluindo a incorporação de grupos tradicionalmente marginalizados no Sudão e o atendimento de suas demandas, refletindo as aspirações coletivas.

As mulheres compuseram uma parcela substancial dos manifestantes, sendo, então vitais para a articulação dos protestos. As sudanesas apresentavam uma série de queixas relacionadas às políticas de islamização do regime Inqaz, como as restrições a empregos, o policiamento de suas vidas sociais, e a aplicação de um código de vestuário estrito que proibia o uso de calças e tornava obrigatório o uso de véus para cobrir os cabelos em público. (HASSAN; KODOUDA, 2019)

Em abril de 2019, Alaa Salah, uma jovem sudanesa foi fotografada em cima de um carro, liderando uma multidão em um cântico como forma de protesto político. A foto, que viralizou nas redes sociais, destacou as mulheres como a força motriz do movimento, evidenciando um maior engajamento político, de acordo com o Fundo para a Igualdade de Gênero da  Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres, também conhecido como ONU Mulheres (ONU MULHERES, 2019a).

O aumento da visibilidade feminina nas manifestações, gerou um convite de três ativistas sudanesas, que lutam pela paz e justiça no Sudão, incluindo Alaa Salah, para o debate aberto anual do Conselho de Segurança da ONU sobre Mulheres, Paz e Segurança e para o Fórum da Sociedade Civil co-organizado pela ONU Mulheres, pelo grupo de trabalho da ONG sobre Mulheres, Paz e Segurança, e pelo governo da Suécia. (ONU MULHERES, 2019a)

Recentemente, a “Iniciativa Mulheres pela Paz” foi fundada no Sudão, em um movimento liderado por jovens que cria espaços seguros para jovens líderes comunitárias participarem de processos de tomada de decisão em diferentes níveis, buscando alcançar a inclusão das demandas das mulheres no processo político. Durante a Semana das Mulheres, Paz e Segurança, em 2019, as mulheres do Sudão pediram ações para garantir a participação significativa das mulheres sudanesas no processo de transição política do governo, a proteção de seus direitos e o desarmamento no país. (ONU MULHERES, 2019a)

De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a inclusão da perspectiva de gênero contribui para a construção da paz em Estados frágeis, e torna as instituições estatais mais inclusivas, contribui para o aumento da legitimidade do Estado, promove a justiça e a segurança, e ajuda a desbloquear o potencial das mulheres para contribuir com a recuperação econômica. (OCDE apud ONU Mulheres, 2016)

Ademais, a aliança do grupo de mulheres de organizações da sociedade civil e grupos de jovens (MANSAM), ativas na Revolução Sudanesa, reforçam as reivindicações por maior participação nos níveis e estruturas de decisão política no país. O grupo foi um dos signatários da declaração que criou as Forças de Liberdade e Mudança, aliança política que serviu de oposição ao Conselho Militar de Transição.

CONCLUSÃO

O protagonismo feminino nas manifestações políticas de 2019 no Sudão foi de fundamental importância para alavancar a visibilidade deste grupo social no país. Intensificou-se a articulação de grupos sociais e a promoção de debates acerca dos direitos das mulheres, bem como a necessidade de protegê-los.

O Sudão, atualmente, é governado por uma junta militar que prevê a transição para um regime político civil, a partir da convocação de eleições políticas democráticas para o ano de 2022. Torna-se evidente, portanto, a alteração das dinâmicas sociais no país a partir de um novo regime político, não mais tirânico, abrangendo-se as perspectivas de melhores condições para a população civil no que diz respeito às suas demandas.

A articulação de movimentos sociais que buscam a facilitação do diálogo da sociedade civil com as esferas em comando é de fundamental importância para que as demandas das mulheres sudanesas alcancem espaços públicos e sejam incorporadas ao processo político. Trata-se, portanto, de uma medida fundamental para a redução da desigualdade de gênero no país que deve perpetuar-se ao longo do tempo, evidenciando-se a necessidade da participação ativa das mulheres nas esferas sociais e políticas. Desta forma, o protagonismo feminino nas manifestações políticas pode se caracterizar como um facilitador para os futuros desdobramentos políticos no país.

REFERÊNCIAS

BEREKETEAB, Redie. Democracy or One-Party System: Political Development in the Sudan after the 2015 Election, 2015. Disponível em: <http://www.diva-portal.org/smash/get/diva2:851165/FULLTEXT01.pdf> Acesso em: 25 maio 2020.

DIBU, Worku; MOGES, Abtewold. Assessment of the International Criminal Court’s Prosecutor Role in Darfur Crisis, Sudan (the case of Omer Al-Bashir). International Journal of Multicultural and Multireligious Understanding. Vol. 6. No. 3, 2019. Disponível em <:https://ijmmu.com/index.php/ijmmu/article/view/995/733#>. Acesso em: 03 jun. 2020.

Factbox Sudan’s President Omar Hassan al-Bashir. Reuters. 2008. Disponível em: 

<https://www.reuters.com/article/uk-warcrimes-sudan-bashir-profile/factbox-sudans-president-omar-hassan-al-bashir-idUKL1435274220080714> Acesso em: 01 jun. 2020.

From Sudan to the Security Concil: Sudanese women lead drive for change. ONU Mulheres, 2019a. Disponível em: <https://www.unwomen.org/en/news/stories/2019/11/feature-sudanese-women-lead-drive-for-change> Acesso em: 05 maio 2020.

HASSAN, Mai; KODOUDA, Ahmed. Sudan’s Uprisgin: The Fall of a Dictator. Journal of Democracy. Vol. 30. No. 4, 2019, p. 89-103. Disponível em: <https://muse.jhu.edu/article/735461> Acesso em: 05 maio 2020.

Omar Bashir: quem é o líder acusado de genocídio que o Sudão vai entregar à Justiça internacional. BBC News, Fev. 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51394536>. Acesso em: 03 jun. 2020.

Statement by Alaa Salah at the UN Security Council Open Debate on Women, Peace and Security. ONU Mulheres, 2019b. Disponível em: <https://www.unwomen.org/en/news/stories/2019/10/speech–alaa-salah-at-the-open-debate-on-wps> Acesso em: 05 maio 2020.

Sudan: supporting women’s empowerment and gender equality in fragile states. ONU Mulheres, 2016. Disponível em: <https://www.unwomen.org/-/media/headquarters/attachments/sections/library/publications/2016/fge_fragile_states_research_brief_sudan.pdf?la=en&vs=3106>. Acesso em: 11 jun. 2020.

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