A COMUNIDADE ANDINA E A SUA TENTATIVA DE INTEGRAÇÃO NO SÉCULO XXI
Rafael Ribas
Data: 31/10/2020
O estabelecimento do Acordo de Cartagena, ainda em 1969, marcou o início do Pacto Andino, o qual foi criado com o intuito de integrar a região sul-americana, sendo um meio institucional para promover a cooperação entre os membros. Dessa forma, a criação desse novo bloco econômico do sul global tinha como principais objetivos, durante a sua criação, a formação de uma união aduaneira e de um mercado comum na região andina (BRESSAN; LUCIANO, 2018). Atualmente o bloco possui a participação da Bolívia, Colômbia, Equador e Peru – visto que o Chile[1] e a Venezuela já se retiraram do bloco nos anos de 1977 e 2006, respectivamente. A institucionalização da Comunidade Andina pode ser definida, sob uma ótica de Robert Keohane, como uma organização formal e burocrática composta por Estados, de uma forma que ela “prescreve comportamentos, constrangem as atividades e moldam expectativas.” (KEOHANE, 1989, tradução nossa)[2]. Entretanto, a atual Comunidade Andina (CAN) não vem, nos últimos anos, aproveitando sua interdependência como meio de cooperação – como é idealizado por Keohane –, fazendo com que o modelo de integração almejado em sua base não seja alcançado, assim o bloco sofre um processo divergente de sua proposta inicial, portanto, uma “desintegração andina” (PUERTAS, 2006).
A Comunidade Andina teve momentos de progresso e de quedas ao longo de suas décadas, efetivamente um dos maiores êxitos do bloco foi em relação ao comércio intracomunitário, uma vez que as exportações dos membros para os demais parceiros do bloco passaram dos 8 bilhões de dólares no ano de 2005 – ainda contando com a significativa presença venezuelana –, valor esse, quase nove vezes maior do que era quando o bloco foi criado (MORA,2013). Essa cooperação, na qual resultou o aumento do comércio intrabloco, é fundamental no funcionamento da CAN visto que instituições criam incentivos para os Estados cooperarem (KEOHANE, 1989).
Tendo como notório exemplo a União Europeia – antes Comunidade Econômica Europeia –, a Comunidade Andina seguiu o seu caminho de integração baseado no processo do antigo continente (ZEGARRA, 2005). Por conseguinte, grandes ideais além dos econômicos foram aplicados na CAN, resultando em avanços jurídicos como a formação do Parlamento Andino (Parlandino) em 1979, o qual é o órgão político responsável pela garantia dos direitos e da democracia na Comunidade Andina. Sendo assim, o Parlandino é uma parte desse alto nível institucional do bloco, possuindo eleições diretas para os parlamentares da CAN – um grande avanço para uma integração da região –, além de que o marco normativo da Comunidade Andina é o mais desenvolvido no direito internacional latino-americano, sendo comparável com o direito comunitário da União Europeia (MORA, 2013).
Porém, mesmo tendo um dos graus de institucionalidade mais complexos do continente, na prática, os resultados da Comunidade Andina não foram satisfatórios à altura (BRESSAN; LUCIANO, 2018). Isso se dá por conta do fato de que que as entidades do bloco acabam tendo uma baixa eficácia em relação à uma integração real dos membros, uma vez que os países não desfrutaram por completo de uma reciprocidade econômica entre eles, e assim não convergiram suas políticas públicas (AVENDAÑO, 1999). Sem uma fidedigna integração prática no bloco, uma entidade como o Parlandino acabou gerando um temor entre os membros a cerca de um “enfraquecimento da soberania estatal” (BUSTAMANTE, 2006). Tal desconfiança molda um padrão de segurança configurado pela formação de conflitos, o qual é caracterizado pelas rivalidades e disputas, além da própria desconfiança (BUZAN; WAEVER, 2003). Assim, essa desconfiança em relação a soberania faz com que as ferramentas do bloco – como o Parlandino – não entrem em ação como um ator importante perante as vontades dos próprios governos dentre os Estados membros. Logo, isso acaba causando um efeito contrário à proposta do Parlandino, visto que uma ferramenta tão institucionalizada como o parlamento acaba não sendo aproveitada, na prática, pelos seus integrantes, como corrobora Gabriel Avendaño (1999): “Tanta institucionalidade sem o desenvolvimento de maior funcionalidade somente burocratizaria o processo de integração.” (AVENDAÑO, 1999). Portanto, essa alta institucionalização da Comunidade Andina acaba não sendo eficiente na realidade, uma vez que os países não estão prontos para lidar com ela, sendo esse impasse comum em processos de institucionalização, como afirma Robert Keohane, “Arranjos altamente institucionalizados podem se tornar ossificados, encapsulados ou irrelevantes.” (KEOHANE, 1989, p. 6, tradução nossa)[3]. Tal afirmação é um exemplo no qual corrobora com a impotência da CAN em comparação com os seus princípios institucionais entregues em seu regimento.
Vale ressaltar, que a saída da Venezuela no ano de 2006 foi um difícil marco para o bloco, visto que a retirada ocorreu justamente por conta do desalinhamento entre os integrantes, já que o avanço das negociações de membros como Colômbia e Peru com os Estados Unidos – visando Tratados de livre-comércio – foi a causa da saída venezuelana. Detentora de uma vantajosa produção petrolífera e de um bom mercado consumidor, a saída do país da Comunidade Andina certamente abalou o bloco e o processo de integração andino – que já tinha perdido definitivamente o Chile durante o governo Pinochet. A então saída da Venezuela foi marcada pelo ataque do então presidente venezuelano ao bloco, de forma que Hugo Chávez afirmou que “A Comunidade Andina era uma grande mentira” e que o bloco estava “morto” (HERNANDEZ, 2006).
Dessa forma, os países andinos não possuíam as condições políticas ideais para implementar efetivamente essa sua integração, visto que a região é conhecida por anos de instabilidade política e econômica durante diversos governos – incluindo as ditaduras militares latino-americanas e o seu processo de redemocratização. De modo que, diferentemente da Europa e a União Europeia, as políticas dos governos na região andina são totalmente instáveis, de uma forma que a cada mandato acontecem drásticas alterações no plano de governo, o que acaba afetando diretamente projetos na região, como a Comunidade Andina. Essa instabilidade da América Latina, em geral, é causa para diversos outros impasses que afetam a integração política e econômica, visto que gera diversas outras situações – que boa parte dos países já sofreram ou ainda sofrem atualmente –, como crises econômicas, crises políticas, golpes de estado, pobreza e até questões fronteiriças com relação ao narcotráfico. Tudo isso ainda é somado com a falta de empenho dos líderes e população em estabelecer um projeto político em uma região em que os Estados possuem um baixo nível de democracia (PINTO, 2001).
A democracia latino-americana vem notoriamente passando por diversas agitações nas últimas décadas, isso se dá por conta, principalmente, do processo de redemocratização sofrido pelo continente após as ditaduras militares durante a segunda metade do século XX. Por conta disso, o processo de transição democrática após as ditaduras no continente, segundo Kristian Pscheidt, “gerou o desafio de perpetuá-la (a democracia) no tempo e compatibilizá-la frente as crises político-econômicas globais” (PSCHEIDT, 2018). Ademais, os governos autocráticos – que antecederam os governos democráticos – deixaram resquícios até os dias atuais nesses países, uma vez que indícios como a figura de um líder centralizado, no qual é popularmente visto como um libertador, refletem até os dias atuais em emblemáticas figuras políticas regionais – como Chavez e Morales –, assim causando uma chamada “ditadura democrática” no continente (PSCHEIDT, 2018). Além desse singular quesito histórico, a herança colonial da América Latina também é fundamental para entender os problemas democráticos atuais, uma vez que os séculos de exploração advinda do imperialismo europeu geram desafios para esse continente do sul-global até hoje. E por conta disso, visando o combate aos resquícios desse eurocentrismo, foi que o populismo de esquerda assumiu o poder nas últimas décadas (BARROS; GUIMARÃES; PINTO, 2014).
Posto isso, Barros, Guimarães e Pinto (2014) afirmam que a desigualdade e exclusão latino-americana são resultantes da distância entre as instituições e as práticas sociais e entre a legalidade e a legitimidade, e é diante desse quadro que os projetos democráticos de integração surgem no continente. Diante disso, a CAN é notoriamente uma tentativa de integração regional, porém segue os mesmos erros dos quesitos democráticos supracitados, uma vez que também há uma distância entre a sua institucionalidade na teoria e a ação de integração prática entre os integrantes.
A falha dos países-membros de implementar uma PEC – Política Externa Comum –, nos anos de 2000 e 2001, representa as grandes distinções dos membros, assim fazendo com que eles não aproveitassem da união como ferramenta de barganha para acordos extrablocos (BRESSAN; LUCIANO, 2018). Logo, fica evidente a falta de uma organização política, já que na última década os países vêm enfrentando uma crescente diferença ideológica, além de que também há o impasse de uma falta de capacidade e de vontade em arquitetar correções para consolidar um avanço – problema esse também apontado pelo governo venezuelano –, o que acaba prejudicando totalmente a Comunidade Andina. Como resultado disso, o bloco atualmente está cada vez mais sendo colocado de lado por conta desses entraves internos.
Tais desalinhamentos entre os integrantes não são restritos apenas ao âmbito ideológico, já que economicamente os quatro países andinos restantes também não convergem em certos pontos. Ao passo que Peru e Colômbia procuram focar em acordos de livre comércio, abrindo o mercado, Bolívia e Equador não tiveram o mesmo objetivo em sintonia com os outros dois integrantes (BRESSAN; LUCIANO, 2018). Diferenças como essa geram um empecilho para a integração do bloco como um todo, uma vez que há uma certa segregação na maneira de lidar com processos políticos, e até com importantes aspectos econômicos da CAN como uma possível maior abertura para o comércio e negociações extrabloco. Problema esse ressaltado por Carlos Romero, no qual afirma que a desarmonia dos modelos econômicos dos membros do bloco colabora para uma crise institucional na Comunidade Andina (ROMERO, 2008).
Logo, seguindo o mesmo caminho de outros processos de integrações regionais da América Latina, a Comunidade Andina é diretamente afetada pela instabilidade política e econômica da região. A onda a favor de integração no continente e no mundo, no século passado, já não possui a mesma força atualmente, principalmente no cenário atual em que a globalização e integração é vista como um “inimigo” perante ao conservadorismo vigente por muitos governos. Dessa forma, uma instituição como a CAN precisa passar por um processo de reforma institucional para que os membros consigam aplicar, na prática, tudo aquilo que será almejado para uma maior integração regional. Apesar de haver um alto nível de institucionalização, com um complexo sistema jurídico e outros meios que visam a integração entre os membros, os próprios integrantes – que têm que lidar com diversos problemas internos – não se esforçam para deixar os interesses individuais em prol do bloco. Sem um objetivo comum definido, problemas em relação ao desalinhamento das partes resultaram em perdas para a instituição, como a saída da Venezuela, e sem uma reformulação em seu propósito a Comunidade Andina fica cada vez mais condenada ao desuso.
[1] O Chile retirou-se do bloco durante o governo de Augusto Pinochet e a sua política de liberalização comercial.
[2] I define […] that prescribe behavioral roles, constrain activity, and shape expectations.
[3] Highly institucionalized arrangments can become ossified, ecapsulated, or irrelevant.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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