
O Legado de Nkurunziza e a transição política no Burundi
Por Sofia Salles
A crise política enfrentada pelo Burundi, iniciada no ano de 2015, ainda perpetua suas consequências não somente na política do país, mas também no cotidiano da população civil. O país enfrenta uma grande crise humanitária, o que leva a uma grande instabilidade em toda a região dos Grandes Lagos.
A crise se instaurou quando o então presidente, nomeado pelo parlamento, Pierre Nkurunziza, alegou a possibilidade de concorrer novamente à Presidência da República. Pierre alegou essa possibilidade com o fato de ter cumprido o seu primeiro mandato sem ter sido eleito pelas urnas. Nkurunziza, então, assumiu pela terceira vez, em 2015, o cargo de presidente (BRANCO, 2015). Durante o início de seu mandato, houve um grande crescimento da agenda nacionalista Hutu. O grupo Hutu é um dos grupos étnicos que participou do conhecido Genocídio de Ruanda (NANTULYA, 2019).
Por consequência, parte dos Tutsis e membros da oposição saíram às ruas para protestar. Essas manifestações foram rapidamente reprimidas pela polícia e pelas forças de segurança, o que levou o surgimento de relatos de brutalidade e de tortura contra os manifestantes (BRANCO, 2015). Esse desencadeamento levou a uma onda de violência por parte das forças armadas, causando assassinatos seletivos, muitas vezes realizados por questões étnicas. A situação política se agravou aliada à crise humanitária. Cerca de 400 mil pessoas se refugiaram, tendo em vista as quase 1200 mortes relatadas entre 2015 e 2017 (INTERNATIONAL CRISIS GROUP, 2017). Tais números fizeram com que o Tribunal Penal Internacional (TPI) abrisse uma investigação contra os crimes que ocorreram no país nesses anos. Entretanto, tal acusação fez com que Pierre Nkuruziza retirasse o Burundi da Corte de Haia (WILHELM, 2020).
Grande parte desses refugiados se encontram nos países vizinhos ao Burundi, como a Tanzânia, Ruanda e a República Democrática do Congo. Esses Estados fazem parte da região dos Grandes Lagos na África. Entretanto, mesmo na condição de refugiados, a violência os persegue. A Iniciativa Internacional de Direitos dos Refugiados (IRRI, International Refugee Rights Initiative) documentou, em 2018, uma série de assassinatos, desaparecimentos e ataques em diversos campos de refugiados como o de Nakivale, em Uganda. Além disso, também foram relatadas a vigilância excessiva e a intimidação contra os refugiados por parte de agentes de inteligência burundianos no campo de Nyarugusu na Tanzânia (NANTULYA, 2019).
Novas eleições no Burundi foram marcadas para o dia 20 de maio de 2020. Pela primeira vez em quinze anos, Pierre Nkuruziza não concorreu, e o fato abriu margem para um novo líder do mesmo partido, Évariste Ndayisimiye, que foi posteriormente eleito. Mesmo com a presença de outros candidatos fortes, como o líder da oposição de longa data, Rwasa, que lutou com os rebeldes na guerra civil de 1993-2005 no Burundi, poucos burundianos acreditaram que essa havia sido uma eleição justa, assim como diversos organismos do sistema internacional, como a União Africana. A organização pretendia enviar ao Burundi cerca de 200 monitoradores de direitos humanos, que Nkurunziza concordou em receber em 2016. Entretanto, apenas uma pequena parte deles foi aceita. Outro evento recente, que pode ser mais um indicador da crise política e humanitária do país, foi o atraso, por parte da Comunidade da África Oriental, de uma equipe de observação para as eleições que ocorreram em maio deste ano. Tal episódio ocorreu devida à alegação do governo local da necessidade de quarentena da equipe, devido à pandemia do vírus da COVID-19 (INTERNATIONAL CRISIS GROUP , 2020).
Pierre Nkuruziza passaria, em agosto, a chefia do Estado a Évariste Ndayisimiye. Contudo, no dia 8 de junho de 2020, Nkuruziza vem a falecer devido a um ataque cardíaco, aos 55 anos. Analistas acreditavam, previamente a sua morte, que a ligação entre Nkuruziza e Ndayisimiye por questões partidárias faria com que o primeiro continuasse a exercer seu poder pelos bastidores. Todavia, a morte do então presidente indicaria uma possível liberdade e “rédea solta” ao novo chefe de Estado (WILHELM, 2020).
Torna-se claro, dessa forma, como a instauração da crise política no Burundi ultrapassou suas fronteiras. Não somente quanto à ausência de organismos internacionais de monitoramento dos direitos humanos, mas também quanto ao fluxo migratório gerado em meio à crise político/humanitária vivida no país. Como previsto nesta breve análise conjuntural, a análise do caso do Burundi permite identificar a existência de desigualdades étnicas ainda muito presentes na região dos Grandes Lagos e o fato de como elas influenciam diretamente na dinâmica política dentro dos Estados. Pelo que se pode perceber ainda é uma realidade que extrapola os limites entre os estados que se localizam na região central da África e que acarreta também impactos aos refugiados.
Referências:
NANTULYA, Paul. Burundi, the Forgotten Crisis, Still Burns.: Africa Center, 24 set. 2019. Disponível em: https://africacenter.org/spotlight/burundi-the-forgotten-crisis-still-burns/. Acesso em: 16 out. 2020.
BRANCO, Carina. Cronologia da crise política no Burundi.: Euro News, 21 jul. 2015. Disponível em: https://pt.euronews.com/2015/07/21/cronologia-da-crise-politica-no-burundi. Acesso em: 17 out. 2020.
CRISE política leva mais de 100 mil a fugirem do Burundi.: Deutsche Welle, 15 maio 2015. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/crise-pol%C3%ADtica-leva-mais-de-100-mil-a-fugirem-do-burundi/a-18452729. Acesso em: 17 out. 2020.
SWART, Mia. Burundian journalist Jean Bigirimana missing for 1,500 days.: Aljazeera, 30 ago. 2020. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2020/08/30/burundian-journalist-jean-bigirimana-missing-for-1500-days/. Acesso em: 16 out. 2020.
MUGISHA, Ivan. Burundi seeks extradition of rebels from Rwanda.: The East African, 5 out. 2020. Disponível em: https://www.theeastafrican.co.ke/tea/news/east-africa/burundi-seeks-extradition-of-rebels-from-rwanda–2458118. Acesso em: 17 out. 2020.
INTERNATIONAL CRISIS GROUP. Burundi: The Army in Crisis, 5 abr. 2017. Disponível em: https://www.crisisgroup.org/africa/central-africa/burundi/247-burundi-army-crisis. Acesso em: 16 out. 2020.
INTERNATIONAL CRISIS GROUP. An Essential Primer on Burundi‘s Elections, 18 maio 2020. Disponível em: https://www.crisisgroup.org/africa/central-africa/burundi/essential-primer-burundis-elections. Acesso em: 19 out. 2020.
WILHELM, Jan-Philipp. Pierre Nkurunziza deixa legado marcado por violência.: Deutsche Welle, 10 jun. 2020. Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/pierre-nkurunziza-deixa-legado-marcado-por-viol%C3%AAncia/a-53755839. Acesso em: 19 out. 2020.