O Direito à saúde da população transexual no Equador
Paula de Paula Mattos
Data: 23\12\2020
A sociedade internacional é composta por um conjunto de unidades semelhantes que compartilham normas e valores entre si, prescrevendo dessa forma, a conduta dos atores. A Declaração Universal dos Direitos Humanos observa a saúde como uma questão relevante para os indivíduos, e que, portanto, deve ser garantida pelos Estados a seus membros nacionais, por se tratar de um valor comum observado pela comunidade internacional.
A década de 90 foi marcada por um novo ciclo de lutas sociais caracterizadas pela atuação global de movimentos sociais, que representava a construção de uma agenda internacional voltada para a redução da pobreza, à conformação de políticas públicas que articulassem os interesses locais e globais de universalização de direitos (SODRÉ, 2011). As discussões propostas alavancaram os debates acerca da pobreza e da exclusão social, e os aspectos negativos do processo de globalização, entendido pelo movimento de integração das economias mundiais por meio do avanço nos meios de comunicação e transportes, sobre a saúde da população mundial. (SODRÉ, 2011).
A saúde pode ser pensada segundo diferentes aspectos, de acordo com as necessidades individuais de cada grupo social. Evidencia-se, dessa forma, a necessidade de realizar recortes temáticos a fim de analisar a saúde da população queer, entendida pela comunidade LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexo, Assexual e demais manifestações de orientação sexual e/ou de indentidade de gênero), movimento político e social de inclusão de pessoas de diversas orientações sexuais e identidades de gênero, devido à condição de vulnerabilidade deste grupo, posto que sofre de demais opressões cotidianas, violência física e psicológica, preconceitos e demais situações que acabam por influenciar na saúde do indivíduo LGBTQIA+.
Entretanto, vale ressaltar que mesmo dentro do movimento LGBTQIA+, diferentes representações são postas, apresentando necessidades individuais de acesso à saúde conforme as características e particularidades de cada indivíduo. Dessa forma, a presente análise de conjuntura propõe a reflexão acerca do acesso à saúde por parte da população transexual no Equador, por se tratar de um Estado progressista no que diz respeito aos direitos da população queer nos Países Andinos.
As identidades culturais e as relações de gênero na sociedade contemporânea vêm provocando alterações nos padrões normativos vigentes, de tal forma que a categoria de gênero é vista sob uma perspectiva relacional e assimétrica, evidenciando a sua pluralidade e maleabilidade (JAYME, 2004). Os sujeitos reconstroem o gênero que, segundo Joan Scott (1995), retrata as relações sociais que envolvem poder na construção do masculino e do feminino, não se tratando de um reflexo das diferenças sexuais, mas uma construção social que dá sentido a tais diferenças (SCOTT, 1995).
A redefinição de masculinidade e feminilidade observada pelas pessoas transexuais, enfatiza uma interpretação de gênero como cultural e processual. A construção da identidade do indivíduo transexual por interferências no próprio corpo evidenciam que o corpo é, por ele próprio, um meio de expressão, evidenciando o alcance da discussão sobre a fluidez das identidades na contemporaneidade e sua relação com o gênero, também percebido como fluido e performático (JAYME, 2004, p. 2).
A pluralidade observada nas identidades culturais e manifestada pelas relações de gênero na contemporaneidade evidenciam suas especificidades e se apresentam nas diversas esferas políticas e sociais. A questão da saúde pública deve, portanto, ser pensada de tal forma que observe os princípios da universalidade dos Direitos Humanos, fundamentada nas premissas da igualdade em dignidade e valor de todos os seres humanos, sem discriminação (MBAYA, 1997).
Vale ressaltar que alguns esforços foram feitos com o intuito de atender às necessidades da população transgênero, como a publicação dos Padrões de Cuidado para a Saúde de Pessoas Transsexuais, Transgênero e em Não-Conformidade de Gênero, publicado pela Associação Profissional Mundial para Saúde Transgênero, incialmente em 1979, com posteriores revisões no início da década de 80 e ao final dos anos 90 e início dos anos 2000 (COLEMAN, et. al, 2012). O objetivo geral da publicação é promover guias clínicos para profissionais da saúde assistirem pacientes transsexuais, transgênero e em não conformidade de gênero com eficácia e segurança para alcançar o bem-estar duradouro, a fim de maximizar sua saúde geral, bem-estar psicológico e auto realização (COLEMAN, et. al, 2012).
Em Setembro de 2015, na septuagésima sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), os líderes mundiais reuniram-se em Nova York e estabeleceram um plano de ação compreendido pela Agenda 2030, composta por um conjunto de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), com o intuito de erradicar a pobreza, proteger o planeta e garantir que as pessoas alcancem a paz e a prosperidade. (AGENDA 2030, 2020) O Equador reiterou o compromisso do país com os ODS e declarou a Agenda 2030 como uma política pública do governo nacional. A Assembleia Nacional equatoriana, por sua vez, adotou uma resolução se comprometendo com a implementação dos ODS, tendo-os como referência obrigatória para a condução de políticas públicas. (ONU EQUADOR, 2020a) O terceiro Objetivo proposto pela Agenda busca garantir uma vida saudável e promover o bem-estar para todas as idades (ONU EQUADOR, 2020b).
No que diz respeito aos esforços equatorianos para garantir o acesso à saúde, a Assembleia Nacional do Equador aprovou, em agosto de 2020, um Código Sanitário Orgânico, com o intuito de promover a “integralidade da saúde”, a partir de uma abordagem inclusiva e intercultural (GK CITY, 2020). O projeto de lei, em discussão há 8 anos, tinha a proposta de garantir o direito à saúde de forma universal e abrangente, inclusive para mulheres, adolescentes e meninas, e à comunidade LGBTQIA+ (CASAS, 2020). Historicamente, o sistema de saúde no Equador caracterizou-se por uma grande segmentação e por um modelo de gestão centralizado. A oferta de serviços de saúde concentraram-se em termos curativos e hospitalares, com ausência da qualidade dos serviços e sem projeção ou incremento de sua cobertura[1] (ASSEMBLEIA NACIONAL DO EQUADOR, 2016, tradução livre). Entretanto, é importante ressaltar que o atual presidente do Equador, Lenín Moreno, vetou o projeto de lei sob a justificativa de inconsistências técnicas e científicas, devido aos erros e imprecisões do texto, e pela falta de clareza quanto à estrutura de saúde acerca das competências e responsabilidades. Em conferência de imprensa, Johana Pesántez, secretária jurídica da Presidência, leu os motivos desta decisão. O anúncio foi feito na companhia do Ministro e do Vice-Ministro da Saúde Pública, Juan Carlos Zevallos e Xavier Solórzano, respectivamente. O Ministro da Saúde informou que o veto ao projeto ocorreu de forma integral, e não responde aos artigos individuais do projeto (MINISTÉRIO DE SAÚDE PÚBLICA, 2020).
O acesso à saúde é um direito universal básico previsto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. A questão da saúde pública, pautada, também, na Declaração, é de extrema relevância para a sociedade internacional, enquanto valor compartilhado intersubjetivamente. Cabe salientar que os direitos não são igualmente distribuídos a todos indivíduos, embora o princípio da universalidade seja amplamente defendido pelas comunidades internacionais. Apesar dos esforços de grupos que buscam o amplo acesso e distribuição de tais direitos à toda sociedade, observa-se que grupos minoritários muitas vezes se encontram à margem de tais processos.
O ano de 2020, marcado pela pandemia da Covid-19, evidencia a sensibilidade da saúde humana e a necessidade de ter acesso a serviços de saúde de qualidade e inclusivos. Dessa forma, a aprovação do projeto de lei do Código de Saúde Orgânico do Equador é de extrema relevância, e demonstra os esforços a nível político nacional de expandir o acesso à saúde a populações minoritárias, como a comunidade transexual. Entretanto, o veto do presidente Lenín Moreno reflete o conservadorismo no país, e marca um retrocesso no que diz respeito aos avanços na questão da saúde pública equatoriana.
Referências
SODRÉ, Francis. A agenda global dos movimentos sociais. In: Ciência & saúde coletiva. 2011, vol.16, n.3, pp.1781-1791. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232011000300014&script=sci_abstract&tlng=es>. Acesso em: 24 nov. 2020.
UNICEF. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em: 24 nov. 2020.
AGENDA 2030. Plataforma Agenda 2030: Acelerando as transformações para a Agenda 2030 no Brasil. 201-?. Disponível em: < http://www.agenda2030.com.br/#:~:text=Em%20setembro%20de%202015%2C%20l%C3%ADderes,conjunto%20de%2017%20Objetivos%20de>. Acesso em: 27 set. 2020.
ONU EQUADOR. Acerca de nuestro trabajo para los Objetivos de Desarrollo Sostenible en Equador. 2020a. Disponível em: <https://ecuador.un.org/es/sdgs>. Acesso em: 27 set. 2020.
ONU EQUADOR. Objetivo de Desarrollo Sostenible 3: Salud y bienestar. 2020b. Disponível em: <https://ecuador.un.org/es/sdgs/3>. Acesso em: 27 set. 2020.
Después de 8 años, la Asamblea aprobó el Código Orgánico de Salud. In: GK City. ago. 2020.Disponível em: <https://gk.city/2020/08/25/asamblea-aprobo-codigo-organico-salud/>. Acesso em: 27 set. 2020.
CASAS, Ximena. Ecuador’s Assembly Approves Bill Furthering the Right to Health: Proposed Health Code Would Improve Protection for Women, Girls, LGBTI People. In: Human Rights Watch News. Disponível em: <https://www.hrw.org/news/2020/09/09/ecuadors-assembly-approves-bill-furthering-right-health>. Acesso em: 27 set. 2020.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica, 1995. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71721/40667>. Acesso em: 24 nov. 2020.
MINISTÉRIO DE SAÚDE PÚBLICA. Por vacíos técnicos y científicos, Ejecutivo veta Código de Salud. Disponível em: <https://www.salud.gob.ec/por-vacios-tecnicos-y-cientificos-ejecutivo-veta-codigo-de-salud/>. Acesso em: 14 nov. 2020.
VII CONGRESSO LUSO-AFRO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, 2004, Coimbra. JAYME, Juliana Gonzaga. Travestis, Transformistas, Drag-Queens, Transexuais: identidade, corpo e gênero. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2004. Disponível em: <https://www.ces.uc.pt/lab2004/inscricao/pdfs/painel3/JulianaJaime.pdf>. Acesso em: 14 nov. 2020.
MBAYA, Etienne Richard. Gênese, evolução e universalidade dos Direitos Humanos frente à diversidade de culturas. In: Estudos Avançados, v. 11, n. 30. São Paulo, maio/ago. 1997. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141997000200003#:~:text=Tal%20universalidade%20dos%20direitos%20humanos,sexo%20ou%20qualquer%20outro%20elemento>. Acesso em: 14 nov. 2020.
COLEMAN, E. et. al. Standards of Care for the Health of Transsexual, Transgender, and Gender-Nonconforming People, Version 7. In: International Journal of Transgenderism, v. 13, issue 4, ago. 2012. Disponível em: <https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/15532739.2011.700873?scroll=top&needAccess=true>. Acesso em: 16 nov. 2020.
BRASKEM. O que significa a sigla LGBTQIA+?. Disponível em: <https://bluevisionbraskem.com/desenvolvimento-humano/o-que-significa-a-sigla-lgbtqia/>.
<https://www.salud.gob.ec/wp-content/uploads/2016/11/RD_248332rivas_248332_355600.pdf>.
Fonte Imagem: https://veja.abril.com.br/mundo/justica-do-equador-aprova-o-reconhecimento-do-casamento-gay/
[1]Históricamente, el Sistema de Salud en Equador se ha caracterizado por una gran segmentación y por un modelo de gestión centralizado. La oferta se ha concentrado en temas curativos y hospitalarlos, con ausencia de calidad en los servicios y sin proyección ni incremento de la cobertura