Por Lauana Pereira Domingos Alves
Nesta análise, será possível observar como a Mudança Climática tem afetado os Estados localizados na região sul da África no último ano e como seus efeitos e consequências afetam várias áreas que não estão diretamente ligadas à questão ambiental. Se abordará sobre os principais eventos climáticos extremos que ocorreram na região, especialmente seus efeitos diretos para Moçambique e Zimbabwe, que foram os mais atingidos e os com menos capacidade de resposta. Analisa-se, também, os reflexos da Mudança Climática na dinâmica social e política da África do Sul, destino de imigrantes oriundos de países afetados por eventos climáticos.
A África Austral é uma região ao sul do continente, integrada por África do Sul, Angola, Botswana, Lesoto, Madagascar, Malawi, Moçambique, Namíbia, Suazilândia, Zâmbia e Zimbabwe. Nela se encontram dois desertos famosos, o Kalahari e o da Namíbia. Importante ressaltar que muitos desses países possuem a maior parte da população na área rural, outros estão em situação de extrema pobreza e a energia elétrica é racionada em vários lugares (Preventionweb, 20-?).
Figura 1 – Mapa da população abaixo da Linha da Pobreza

Na Figura 1, quanto mais escura a cor azul maior a taxa da população que vive abaixo da Linha da Pobreza. Este indicador explicita as pessoas que vivem com menos de US$2,00 dólares por dia. De acordo com Index Mundi (2019), dos onze países que integram a África Austral, seis possuem mais da metade da população abaixo da Linha da Pobreza e apenas três deles possuem menos de 33% da população nesta situação, sendo eles África do Sul, Botswana e Namíbia. Ou seja, o índice de pobreza é muito alto na região, que possui quase 197 milhões de pessoas e, em média, 47% dessa população se encontra abaixo da Linha da Pobreza. Zimbabwe e Madagascar são os países com maiores parcelas da população nesta condição, com mais de 68% (INDEX MUNDI, 2018).
Na região, os desastres mais comuns são tempestades tropicais, secas e enchentes. As tempestades tropicais são severas em Moçambique, que é atingido por, pelo menos, uma tempestade tropical por ano, desde 1949 (JN, 2019). Em 2019, o sul da África foi atingido por dois ciclones subsequentes, sendo considerado um dos piores desastres naturais que ocorreu em décadas, afetando fortemente Moçambique, Zimbabwe e Malawi. Apenas em Moçambique, 600 pessoas morreram e 130 mil pessoas foram desalojadas (IOM, 2019). Um fato interessante dos ciclones é que o aumento da temperatura do mar está diretamente relacionado com o aumento de sua intensidade e da duração em que ocorrem (PILLAY, FITCHETT, 2020). Logo, o aquecimento global pode piorar ainda mais esse histórico de Moçambique, uma vez que os torna cada vez mais fortes e mais frequentes.
O ano de 2019 também foi aquele em que ocorreu a seca mais severa na África Austral em 35 anos. Nove dos onze Estados que integram esta região estão enfrentando insegurança alimentar grave por falta de alimentos. Ressalta-se que as consequências da seca são críticas para crianças, que estão em fase de crescimento, para as famílias, que já sofrem de outras vulnerabilidades sociais e econômicas, e para a economia dos Estados (DOM, 2020). “Em toda a região, mais de 11 milhões de pessoas sofrem com falta de alimentos. Níveis recordes de insegurança ou emergência alimentar são registrados em países como Zimbabwe, Zâmbia, Madagascar, Malawi, Namíbia, Suazilândia e Lesoto” (ONU NEWS, 2019, n.p.).
No gráfico 1 é possível perceber a frequência com que os eventos climáticos extremos ocorrem em cada país. As inundações são o evento mais recorrente em todos os Estados, excluindo o Lesoto, e também o que gera maior perda econômica, excluindo a Suazilândia (Preventionweb, 20-?). Não foi possível encontrar informações sobre Tempestades Tropicais na Angola, Namíbia e Zâmbia. Entretanto, Angola, Madagascar e Zâmbia são os países com maior frequência de inundações.
Gráfico 1 – Percentual com que ocorrem os eventos climáticos extremos em cada país da África Austral nos últimos 20 anos

Ademais, a mudança climática e os gases de efeito estufa podem prejudicar a saúde humana, uma vez que podem afetar a qualidade do ar e provocar aumento de problemas respiratórios, podem alterar os regimes de chuvas, tornando um ambiente mais propício a insetos transmissores de doenças como a dengue e a malária. Além disso, indivíduos podem ficar com a imunidade mais baixa e mais propensos a contaminação por vírus quando há mudanças bruscas no clima, sem contar as consequências psicológicas que as consequências dos desastres naturais e, em última medida, a migração para um local desconhecido podem acarretar (VASSARI, 2020; IVES, 2020).
Entretanto, esses problemas atingem assimetricamente as populações em todo mundo. Os Estados que não possuem estrutura para atenuar suas consequências são os que mais sofrem. Dentro do próprio país existem regiões que são atingidas mais frequentemente, tornando uma parte da população mais vulnerável. Soma-se a isso a falta de recursos das pessoas mais pobres para sobreviver em um local de menor risco e a dificuldade de reconstruírem o que foi perdido nos desastres. Estas pessoas são as mais vulneráveis, entre todas, às consequências da Mudança Climática.
A urgência para mitigar esses eventos climáticos extremos fez surgir o Programa de Ação para a Implementação do Quadro de Sendai na África, que visa reduzir os desastres no continente. O primeiro relatório bienal foi lançado esse ano e seus resultados não são animadores. O documento revela que a grande maioria dos Estados Africanos não implementou um sistema de alerta precoce nos últimos cinco anos, como era o esperado (UA, 2020). Apesar do extremo sul ter maior capacidade de resposta, como a África do Sul e Namíbia, essa realidade não se verifica em outros países, principalmente os países localizados na costa leste, que são os mais atingidos, os que menos possuem capacidade de resposta e os mais vulneráveis aos desastres, tais como Madagascar, Moçambique e Zimbabwe (UA, 2020).
Por conta desses fatores, pobreza extrema, fome, frequência dos desastres naturais extremos e a falta de capacidade dos Estados de manter os direitos básicos, muitas famílias decidem migrar de seu país de origem. Esses indivíduos se locomovem para locais que possuem uma infraestrutura mais adequada ao enfrentamento dos desastres naturais ou mudam para locais que não possuem histórico desses desastres. Por esse motivo, as migrações por motivos ambientais têm aumentado em todo o mundo (PNUD, 2017).
“Em termos de número de imigrantes, a África do Sul continua sendo o país de destino mais significativo da África, com cerca de 4 milhões de migrantes internacionais residindo no país” (IOM, 2019, p.69). A movimentação de moçambicanos e zimbabuanos para a África do Sul é tão constante e intensa que se tornou um corredor de migração. Isso ocorre quando há “um acúmulo de movimentos migratórios ao longo do tempo […] e o tamanho de um corredor de migração do país A para o país B é medido como o número de imigrantes do país A que residiam no país B” (IOM, 2019, p. 69). O corredor de migração de Moçambique para a África do Sul e de Zimbabwe para a África do Sul está entre os 20 maiores do continente africano e os maiores da Região Austral (IOM, 2019).
Esses movimentos populacionais, quando desordenados e sem planos de habitação e de agenciamento de serviços sociais básicos, podem gerar inúmeras consequências, como problemas de habitação inadequada, falta de saneamento básico, facilidade de contágio e transmissão de doenças, preconceito, xenofobia, desemprego, desigualdade social, falta de assistência médica e aumento da violência (RAMOS, 2011).
A África do Sul está enfrentando, atualmente, graves problemas econômicos, refletidos nos serviços públicos precários, alto índice de desemprego, altas taxas de criminalidade e desigualdade (Human…, 2020a). Entre a população sul-africana, o discurso de que a falta de emprego se deve aos imigrantes, que estariam “roubando” os empregos existentes, está aumentando e se tornando um problema social e político desde 2008. Trata-se de um típico discurso xenofóbico que não permaneceu apenas no campo das palavras, mas que tem gerado ondas constantes de violência física contra a integridade dos estrangeiros e de suas propriedades (Human…, 2020a).
A população que consegue se deslocar até outro país melhor economicamente e com baixo histórico de desastres naturais, como a África do Sul, tem sofrido historicamente ondas de xenofobia cada vez mais violentas, como é possível observar por meio deste relato:
Praticamente ninguém foi levado à justiça pelos últimos surtos de violência xenofóbica, incluindo os ataques de 2008 que resultaram na morte de mais de 60 pessoas em todo o país. O mesmo é verdade para a violência de abril de 2015 em Durban, que levou ao deslocamento de milhares de estrangeiros, ou a violência contra caminhoneiros estrangeiros e outros no ano passado que resultou na morte de pelo menos 200 pessoas. Grupos locais que podem incitar a violência estão se mobilizando abertamente e instigando sentimentos xenófobos. Um desses grupos, que se organizou sob o lema “Coloque os sul-africanos em primeiro lugar”, marchou até a embaixada da Nigéria em Pretória no mês passado [setembro], exigindo que os estrangeiros fossem mandados ‘para casa’. (Human…, 2020b, s/p, tradução nossa).[1]
O relatório do Human Rights Watch (2020a) possui inúmeros relatos de ataques xenofóbicos que ocorreram no país em 2019. Em 2020, é possível que esses ataques aumentem, uma vez que estão ocorrendo novas manifestações com discursos xenofóbicos nas ruas e nas redes sociais (DW, 2020a). Em uma reportagem da Deutsche Welle (DW, 2020b), afirma-se que ataques contra estrangeiros são praticamente diários e que, a cada dois dias, há pelo menos uma morte de somalis no país por causa desses ataques.
Entretanto, essa situação alarmante não gerou uma resposta enérgica do governo sul-africano, visto que, um ano após o lançamento do Plano de Ação Nacional de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Relacionada (NAP), as situações de xenofobia continua ocorrendo em larga escala (Human…, 2020a). Importante ressaltar que grande parte dos casos de xenofobia não estão sendo investigados pela polícia. As situações de impunidade têm crescido grandemente e o governo tem colocado barreiras para aquisição e renovação de documentos dos imigrantes para manter o status legal e acessar serviços, incluindo educação e saúde (Human…, 2020a).
Podemos perceber após essa longa exposição que a imigração que tem ocorrido na região austral da África tem como países de origem os que possuem grandes problemas em manter o acesso da população a itens básicos de sobrevivência, além da grande frequência de eventos climáticos extremos que implicam em altas taxas de destruição e de mortalidade, como nos casos de Moçambique e Zimbabwe. Além disso, a África do Sul, que é o maior receptor das ondas migratórias na Região, está enfrentando vários problemas políticos e econômicos e não está conseguindo lidar com tais eventos que têm ocorrido na última década.
A Mudança Climática gera várias consequências, não estando restritas a uma região geográfica ou a apenas um problema econômico ou ambiental. Na África Austral, ela gerou secas, insegurança alimentar grave, altas frequências de tempestades tropicais, destruição na infraestrutura dos países, mortes geradas pelos desastres, que resultaram na migração da população para a África do Sul. Como reflexo disso, viu-se o desencadeamento de preconceito, violência, pobreza, problemas psicológicos, além das preocupantes ondas de xenofobia.
Dessa forma, pode-se concluir que as consequências geradas pela Mudança no Clima são inúmeras e atingem assimetricamente a população dos Estados na África Austral, sendo a parcela da população mais pobre e mais vulnerável as que são impactadas diretamente por essas consequências. Caso os países não proporcionem o acesso estável aos serviços básicos e não aumentem a sua capacidade de resposta aos eventos climáticos extremos, as consequências que a Mudança Climática gera à África Austral tendem a aumentar de gravidade, vão atingir novos setores problemáticos e aumentarão o número de Estados afetados negativamente, tornando um problema não apenas de alguns países específicos mas um problema regional.
REFERÊNCIAS
DOM total. Período de seca no sul da África causa desespero em pessoas e animais. 22 fev. 2020. Disponível em: https://domtotal.com/noticia/1423400/2020/02/periodo-de-seca-no-sul-da-africa-causa-desespero-em-pessoas-e-animais/ Acesso em: 18 out. 2020.
DW. Maluleque, Milton. África do Sul: Novas manifestações contra estrangeiros antecipam ataques xenófobos? 2020. África do Sul. 2020a. Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/%C3%A1frica-do-sul-novas-manifesta%C3%A7%C3%B5es-contra-estrangeiros-antecipam-ataques-xen%C3%B3fobos/a-55101300 Acesso em: 18 out. 2020.
DW. Os discursos de ódio e violência contra migrantes na África do Sul. 22 set. 2020. 1 video (04min50). 2020b Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/os-discursos-de-%C3%B3dio-e-viol%C3%AAncia-contra-migrantes-na-%C3%A1frica-do-sul/av-55017460 Acesso em: 18 out. 2020.
Human Rights Watch. They have robbed me of my life: Xenophobic violence against Non-Nationals in South Africa. 2020a. [s.l.] Disponível em: https://www.hrw.org/report/2020/09/17/they-have-robbed-me-my-life/xenophobic-violence-against-non-nationals-south Acesso em: 18 out. 2020.
Human Rights Watch. Is South Africa prepared for the Next Wave of Xenophobic Violence? 2020b. [s.l.] Disponível em: https://www.hrw.org/news/2020/10/09/south-africa-prepared-next-wave-xenophobic-violence Acesso em: 18 out. 2020.
INDEX MUNDI. População. 2018. Disponível em: https://www.indexmundi.com/map/?v=21&r=af&l=pt Acesso em: 18 out. 2020.
INDEX MUNDI. População abaixo da Linha da Pobreza. 2019. Disponível em: https://www.indexmundi.com/map/?t=0&v=69&r=af&l=pt Acesso em: 18 out. 2020.
IOM. Organização Internacional para Migração. Informe sobre las Migraciones en el Mundo 2020. 2019. [s.l.] Disponível em: https://publications.iom.int/books/informe-sobre-las-migraciones-en-el-mundo-2020 Acesso em: 18 out. 2020.
IVES, James. Study reveals how climate change could affect Malaria transmission in Africa. 28 ago 2020. News Medical Life Sciences. Disponível em: https://www.news-medical.net/amp/news/20200828/Study-reveals-how-climate-change-could-affect-malaria-transmission-in-Africa.aspx Acesso em: 18 out. 2020.
JN. Moçambique foi atingido por noves ciclones tropicais no último século. 22 março 2019. Disponível em: https://www.jn.pt/mundo/-mocambique-foi-atingido-por-nove-ciclones-tropicais-no-ultimo-seculo-10713931.html Acesso em: 18 out. 2020.
ONU NEWS. Angola e Moçambique enfrentam ameaça de insegurança alimentar severa. 31 out. 2019. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2019/10/1692891 Acesso em: 18 out. 2020.
PREVENTIONWEB. Disaster losses and statistics. [20-?] [s.l.] Disponível em: https://www.preventionweb.net/disaster-risk/disaster-losses Acesso em: 18 out. 2020.
PILLAY, Michael; FITCHETT, Jennifer. Southern hemisphere tropical cyclones: a critical analysis of regional characteristics. 2020. Royal Meteorological Society. Disponível em: https://rmets.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/joc.6613 Acesso em: 18 out. 2020.
PNUD. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Report Climate Change, Migration and Displacement: the need of risk-informed and coherent approach. 11 dez. 2017. New York, Estados Unidos da América. Disponível em: https://www.undp.org/content/undp/en/home/librarypage/climate-and-disaster-resilience-/migration-report.html Acesso em: 18 out. 2020.
RAMOS, Érika Pires. Refugiados Ambientais: em busca de reconhecimento pelo Direito Internacional. 2011. Tese de Doutorado – Universidade de São Paulo. São Paulo. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/eventos/Refugiados_Ambientais.pdf Acesso em: 18 out. 2020.
UA. União Africana. Relatório Bienal Sobre o Programa de Ação para a Implementação do Quadro de Sendai para a Redução do Risco de Desastres 2015-2030 em África. 2020. Ethiopia. Disponível em: https://au.int/en/documents/20200805/first-africa-biennial-report-disaster-risk-reduction-synopsis-report Acesso em: 18 out. 2020.
VASSARI, Danilo. Mudança do clima e saúde: entenda os impactos diretos. 10 jul. 2020. Way Carbon. Disponível em: https://blog.waycarbon.com/2020/07/mudanca-do-clima-e-saude/ Acesso em: 18 out. 2020.
[1] Virtually no one has been brought to justice for past outbreaks of xenophobic violence, including the 2008 attacks that resulted in the deaths of more than 60 people across the country. The same is true for the April 2015 violence in Durban that led to the displacement of thousands of foreign nationals, or the violence against foreign truck drivers and others last year that resulted in the deaths of at least 200 people. Local groups that could incite violence are openly mobilizing and whipping up xenophobic sentiments. One such group organizing under the slogan “Put South Africans First” marched to the Nigerian Embassy in Pretoria last month, demanding that foreign nationals be sent ‘home.’