Texto Conjuntural: Chifre da África #35 – Mulheres refugiadas do Sudão do Sul: um panorama geral sobre saúde sexual e reprodutiva em tempos de guerra

Ruth Amaral Aguiar

Palavras-chave: Refugiada; Saúde sexual e reprodutiva; Guerra separatista; Sudão do Sul

INTRODUÇÃO

O Sudão do Sul, em toda sua história, desde colônia inglesa até seu processo de independência em relação ao Sudão, esteve em guerra. Todo esse processo matou mais de dois milhões de pessoas e dizimou o território sul sudânes em aspectos tanto geográficos como econômico sociais. Com uma democracia frágil e em guerra, sem infraestrutura, carência de serviços básicos de saúde, educação e saneamento, os cidadãos sul sudaneses que fogem do país são classificados pelo  Alto Comissariado da Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) como refugiados, ou seja, eles têm o devido temor de perseguição do Estado, que não pode protegê-los das mazelas em que se encontram, uma vez que eles mesmo tem causado tais condições. Logo, eles buscam refúgio em países vizinhos ao Sudão do Sul, em busca de condições mínimas de sobrevivência, que não são garantidas pelo seu Estado de origem desde o princípio (ACNUR, 2020a).

Nesse contexto, cabe analisar  a situação das mulheres sob o ponto de vista de sua saúde sexual e reprodutiva. Elas são maioria absoluta em números de refugiados sul sudaneses ACNUR, 2020a) e além da falta de segurança, elas ainda precisam lidar com problemas específicos e pouco discutidos dentro do âmbitos do refúgio: estupro; métodos contraceptivos; gravidez; cancêr de mama e infeccções sexualmente transmissíveis (MERCER, 2020). Posto tudo, coloca-se o questionamento: Como a guerra do Sudão do Sul impacta a saúde sexual e reprodutiva das mulheres refugiadas do país?

GUERRA DO SUDÃO DO SUL E REFUGIADOS

O Sudão do Sul é o mais novo Estado do mundo, com nove anos de independência. Após conseguir  independência da Grã-Bretanha em 1956, os atuais Sudão e Sudão do Sul se mantiveram unidos por um tempo, mas as diferenças religiosas entre as populações culminou em uma das mais longas guerras separatistas do mundo. De maioria islâmica, o Sudão começava a implantar as leis da Sharia [i] no país, porém, a grande porção cristã do Sudão do Sul não aceitava a imposição da Sharia sobre eles, de maneira que tal desacordo levou a guerra entre 1955 e 2005. Em 2005, foi assinado em Nairóbi um acordo que finalizou entre a guerra os territórios, mas todos os anos de guerra devastaram a região sul, que ficou com infraestrutura precária e com serviços básicos deficientes para os cidadãos. (MOSCHETTI, 2020)

O processo de democratização e definitiva separação ocorreu somente em 2011, todavia, iniciou-se em 2013 uma guerra civil inter-étnica entre os grupos Dinka e Nuer e atualmente existem mais de nove grupos étnicos em busca de poder na frágil política sul-sudanesa. Mesmo com mais de doze acordos de cessar-fogo desde o início da guerra civil, a guerra continua a dizimar a população e o território sul sudanês.  (MOSCHETTI, 2020)

Isso levou a maior crise de refugiados da África e a terceira maior crise do mundo. De acordo com dados do ACNUR (2020a), todos os países fronteiriços com o Sudão do Sul já receberam em conjunto mais de dois milhões de refugiados em seu território. Somente em Uganda, já existem mais de 882,699 pessoas refugiadas vindas do Sudão do Sul, entre outros espalhados pelo Sudão, Etiópia e República Democrática do Congo. Desse número, cerca de 80% das pessoas fugindo do país são mulheres entre 13 e 49 anos.  (ACNUR, 2020a).

A razão pela qual mulheres são as mais afetadas pela condição de refugiados se dá principalmente porque esposos e pais – que geralmente são responsáveis por proteger e gerar renda para as famílias sul-sudanesas – estão em combate, trabalhando, desaparecidos ou até mesmo mortos. Consequentemente, mulheres são colocadas em posição de provedora de toda a casa, porém, em um cenário de guerra em que há perigo, falta de informação e não há perspectiva de melhora, fugir do país se torna uma escolha pela sobrevivência (BBC NEWS, 2017). Além das já expostas situações de perigo, a maioria das mulheres refugiadas estão em idade reprodutiva, dado que agrega mais uma preocupação à vida delas. Existem demandas específicas do gênero que precisam ser contempladas a fim de garantir condições mínimas de sobrevivência para elas. Este fato denota a necessidade de uma estrutura preparada para lidar com questões ginecológicas, reprodutivas e sexuais, com o fito de garantir saúde básica às mulheres em situação de refúgio.

SAÚDE SEXUAL E REPRODUTIVA DA MULHER REFUGIADA

O Comitê para Eliminação da Discriminação contra Mulheres (CEDAW) declarou que para compreender o impacto da migração na saúde de uma mulher se faz necessário  estudar a “perspectiva de desigualdade de gênero, papéis femininos tradicionais, um mercado de trabalho com gênero, o universal prevalência de violência de gênero e a feminização mundial da pobreza e migração laboral” (MERCER, 2020, tradução nossa).

O direito à saúde é garantido pelo direito internacional dos direitos humanos, e os Estados têm a obrigação de conceder tal direito sem discriminação a todos dentro de seu território. Os direitos humanos fornecem ainda uma perspectiva complementar que foca não somente na saúde corporal do indíviduo, mas também em questões de equidade, de discriminação e social A partir desse ponto de vista, as mulheres refugiadas “representam um grupo vulnerável que foi deslocado involuntariamente, são sobreviventes de violações dos direitos humanos e precisam de atenção e cuidados especiais” (JOHNSON-AGBAKWU, 2020, tradução nossa). Durante o processo de reassentamento, mulheres têm que lidar com o aprendizado do inglês, procura de emprego, transporte e cuidado com os filhos. Com tantas responsabilidades, sua saúde sexual e reprodutiva é sempre postergada e quase nunca vista como um problema real (MERCER, 2020; JOHNSON-AGBAKWU, 2020).

Entre as condições sexuais e reprodutivas da mulher refugiada imprescindíveis e serem tratadas estão: “cuidados pré natal na gravidez, parto, planejamento familiar, rastreamento de violência de gênero e infecções sexualmente transmissíveis, serviços de saúde preventiva (incluindo exames de câncer cervical e de mama) e monitoramento de doenças crônicas emergentes” (JOHNSON-AGBAKWU, 2020, tradução nossa). Todavia, o ponto principal a ser abordado quando se trata de saúde sexual e reprodutiva da mulher é o cuidado com pontos culturais sensíveis à cada mulher, como a mutilação genital feminina e o estupro. Métodos ocidentalizados de exames e tratamento podem ser invasivos a essas mulheres, por isso é importante buscar métodos culturais tradicionais para cuidar e examiná-las e observar as necessidades específicas que elas trazem consigo a partir da situação e refúgio (JOHNSON-AGBAKWU, 2020).

Observado sob outro aspecto, cabe ressaltar a gestão de higiene menstrual e acesso aos meios de subsistência. Em uma pesquisa conduzida pela OXFAM (2019), todas as mulheres notaram a ausência ou insuficiência de materiais de higiene menstrual, que deveriam ser disponibilizados pelas instituições públicas do país que as recebiam. Não obstante, como apontado na pesquisa, a distribuição de kits não é o suficiente, também é imperativo informar – até mesmo homens e meninos – sobre  a gestão de higiene menstrual, a fim de que essas mulheres tenham apoio da comunidade em situações básicas. 

Diante de tantas responsabilidades por parte dos países, é preciso estar preparado para lidar com as necessidades da mulher refugiada. De acordo com dados do ACNUR (2020), a maior parte de refugiadas do Sudão do Sul se encontram em Uganda e no Sudão, países pobres com escassez constante de recursos. Mesmo assim, a lei de assistência a qualquer pessoa, independente de seu status ou nacionalidade permanece. Para tanto, existem direcionamentos específicos para esses países lidarem com mulheres refugiadas da melhor forma possível. “Padrões de cuidado, como o Pacote de Serviço Inicial Mínimo Interinstitucional (MISP) [ii] para saúde sexual e reprodutiva e a Orientação Técnica da OMS ‘Melhorando os cuidados de saúde de mulheres refugiadas grávidas e mulheres migrantes e recém-nascidos’ existem para orientar a esses países” (ENDLER…, 2020).

Por fim, o ACNUR ainda trata com seriedade a saúde sexual e reprodutiva das mulheres, uma vez que é preciso estar preparado para dar esse suporte em suas respostas humanitárias. Seus serviços incluem um amplo espectro de cuidados, incluindo cuidados maternos e neonatais, acesso a anticoncepcionais e a prevenção e tratamento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), ou outras infecções sexualmente transmissíveis, tanto para mulheres quanto para adolescentes, e por fim um aumento na conscientização do tema à toda a comunidade de refugiadas (ACNUR, 2020b).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em resumo, o estado de guerra que o Sudão do Sul vive há anos coloca em risco mais mulheres do que homens. Homens sofrem por estarem na linha de combate, porém as mulheres, ao sofrerem pela falta de suprimentos básicos, segurança e paz, se veem obrigadas a fugir do país para sobreviver. Chegando ao seu destino, as mulheres refugiadas têm que lidar com uma complexidade de acontecimentos que extrapolam os âmbitos de integração, idioma e renda. A desigualdade de gênero, dificuldade de acesso a atendimento e informação de saúde sexual e reprodutiva colocam a mulher em uma condição ainda mais perigosa do que o habitual em uma situação tão extrema quanto o refúgio.

A falta de materiais de higiene, consultas médicas, planejamento familiar, pré-natal, cuidados psicológicos e físicos após estupro, entre outras particularidades, faz com que atingir condições mínimas de qualidade de vida seja ainda mais difícil para a mulher refugiada. Essa ausência de auxílio torna essas mulheres mais vulneráveis a doenças facilmente tratáveis, aumenta sua mortalidade e eleva números de doenças como a AIDS, por exemplo. Assim, as refugiadas sul sudanesas, que já sofrem tanto em aspectos econômicos e sociais, são inseridas também em um ciclo interminável de condições subumanas e degradantes para o seu corpo e sua saúde, física e psicologicamente. 

A fim de que haja mais suporte efetivo e amplo para essas mulheres faz-se necessário uma implantação das orientações de saúde pública, – um direito humano – como o MISP, bem como um aumento da informação disponível e disseminada a respeito da saúde sexual e reprodutiva específica para as condições em que elas se encontram. Ademais, é pertinente que haja um esforço conjunto, não somente do governo local, mas de órgãos internacionais, como o ACNUR e a Organização Mundial da Saúde (OMS), e a ação preparada de médicos locais, para que a saúde e a qualidade de vida da mulher refugiada seja garantida à todas. 

NOTAS DE FIM

[i] A sharia é um sistema de leis que rege todos os aspectos da vida de um muçulmano. Governo, lei e religião são fortemente interligados e orientam a vida pública dos cidadãos que vivem sob sua ordem (ISLAM, 2021).

[ii] O MISP é um conjunto de atividades prioritárias a ser implementado desde o início de uma crise humanitária (conflito ou desastre natural) com o fito de garantir uma cobertura equitativa em toda crise prolongada e recuperação enquanto o planejamento é feito para realizar de maneira definitiva procedimentos e atendimentos de saúde reprodutiva. Tudo isso com respeito às origens étnicas, religiosas e culturais dos indivíduos afetados, de acordo com as necessidades de cada um (UNHCR, 2011).

REFERÊNCIAS

ACNUR. South Sudan Refugee Crisis Explained. Unrefugees.org. 2020a. Disponível em: <https://www.unrefugees.org/news/south-sudan-refugee-crisis-explained/&gt;. Acesso em: 17 Nov. 2020.

ACNUR. Sexual and Reproductive Health. UNHCR. 2020b.  Disponível em: <https://www.unhcr.org/reproductive-health.html&gt;. Acesso em: 17 Nov. 2020.

BBC NEWS. A woman’s world for South Sudanese refugees. BBC News. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/in-pictures-39998759&gt;. Acesso em: 2 Apr. 2021.

ENDLER, Margit; AL HAIDARI, Taghreed; CHOWDHURY, Sameena; et al. Sexual and reproductive health and rights of refugee and migrant women: gynecologists’ and obstetricians’ responsibilities. International Journal of Gynecology & Obstetrics, v. 149, n. 1, p. 113–119, 2020. Disponível em: <https://obgyn.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/ijgo.13111&gt;. Acesso em: 17 Nov. 2020.

ISLAM, Iqara. Sharia: Afinal, o que é essa Lei Islâmica? Iqara Islam. Disponível em: <https://iqaraislam.com/afinal-o-que-e-essa-lei-islamica-shariah&gt;. Acesso em: 2 Apr. 2021.

JOHNSON-AGBAKWU. ‌Women’s Health | Refugee Health TA. Refugee Health TA. Disponível em: <https://refugeehealthta.org/physical-mental-health/health-conditions/womens-health/&gt;. Acesso em: 17 Nov. 2020.

‌MERCER, Charlotte. MIGRANT WOMEN’S HEALTH ISSUES: ADDRESSING BARRIERS TO ACCESS TO HEALTH CARE FOR MIGRANT WOMEN WITH IRREGULAR STATUS [s.d.]. Disponível em: <https://www.euro.who.int/__data/assets/pdf_file/0017/330092/6-Migrant-womens-health-issues-irregular-status.pdf?ua=1>. Acesso em: 17 Nov. 2020

MOSCHETTI, Daniele. A brief history of the civil war in South Sudan. Comboni Missionaries. Disponível em: <https://www.combonimissionaries.org/a-brief-history-of-the-civil-war-in-south-sudan/&gt;. Acesso em: 17 Nov. 2020.

‌OXFAM. No Simple Solutions: Women, Displacement and Durable Solutions in South Sudan. 2019. Disponível em: <https://oxfamilibrary.openrepository.com/bitstream/handle/10546/620857/bp-no-simple-solutions-women-displacement-south-sudan-030919-en.pdf>. Acesso em:17 Nov. 2020.

UNHCR. Minimum Initial Service Package (MISP) for Reproductive Health in Crisis Situations. [s.l.]: , 2011.. Disponível em: <https://www.unhcr.org/4e8d6b3b14.pdf>. Acesso em: 02 Abr. 2021.

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