A infindável crise da democracia brasileira
Por Brenda Fontana
A crise política brasileira, cujo prelúdio foram as Jornadas de Junho de 2013, desdobrou-se em uma crise econômica, iniciada ao fim de 2014, e no impeachment de Dilma Rousseff em 2016. Até agora, a eleição de Jair Bolsonaro como presidente em 2018 e suas pretensões de acabar com a democracia têm composto o momento mais disruptivo deste processo de esgarçamento do tecido democrático. Nesse sentido, para sermos capazes de fazer a crítica dos arranjos políticos anteriores, precisamos compreender como chegamos a este ponto crítico de crise da democracia brasileira.
O estudo de Wolfgang Streeck (2014), economista alemão, em Buying time: The delayed crisis of democratic capitalism pode nos ajudar a compreender alguns elementos da crise vis à vis o processo de perda de legitimidade das democracias europeias. Para Streeck, as tentativas governamentais de adiar o conflito entre os “dependentes de lucro” e os “dependentes de salário” após os trinta anos de ouro do capitalismo acabaram por desdemocratizar a democracia, blindando-a das demandas populares.
Após décadas de manutenção do Estado de bem-estar social europeu, as pressões do capital por expansão do lucro via greve de investimentos levaram os Estados a realizarem uma série de reformas. Começa-se, então, o avanço do neoliberalismo explicitado nas isenções fiscais, na flexibilização das legislações trabalhistas e na abertura dos mercados de capitais, financeiros e comerciais. Se por um lado essas mudanças expandiram os lucros dos capitalistas, por outro levaram à precarização dos trabalhadores e à desindustrialização. Além disso, as isenções fiscais e a redução da tributação tornaram os Estados europeus crescentemente endividados e, portanto, incapazes de realizar investimentos e políticas públicas demandadas pela população.
A piora real nos níveis de emprego, condições de trabalho e da manutenção do Estado de bem-estar social, ao ser incompatível com as expectativas do povo sobre o desempenho e o papel estatal, tem conduzido a um desgaste das democracias europeias. Dessa maneira, para Streeck, as compras de tempo, isso é, as tentativas de evitar uma crise econômica de grandes proporções e pacificar conflitos entre “dependentes de lucro” e “dependentes de salário” via intervenção estatal e injeção de recursos fictícios, em especial crédito e expansão monetária, paulatinamente, distanciaram as discussões econômicas da esfera da política, desdemocratizando a economia e deseconomizando a democracia.
Guardadas as devidas particularidades de cada caso, a partir das reflexões proporcionadas por Streeck, cabe analisar como o avanço neoliberal pode ter influenciado a crise política e democrática que vivemos hoje no Brasil.
Avanço neoliberal
A agenda neoliberal chega ao Brasil após a Crise da Dívida Externa de 1982 por meio de acordos intermediados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) com os bancos estrangeiros. As reformas impostas pelo FMI são aprofundadas por Fernando Collor, que realizou a privatização de 18 estatais e a abertura comercial. Entretanto, é o Plano Real que consolida o processo de neoliberalização e financeirização da economia brasileira.
A financeirização acontece quando o padrão de acumulação de riquezas se dá primordialmente em atividades financeiras em detrimento de atividades produtivas. (BRUNO, 2011). Em outras palavras, a geração e acumulação de riquezas cada vez mais deixa de ocorrer em atividades produtivas, geradoras de emprego, para ocorrer via especulação. Em países subdesenvolvidos, como o Brasil, o processo de financeirização apresenta algumas particularidades e é identificado por Oreiro, Feijó, Punzo e Machado (2020) como financeirização periférica.
Na década de 1990, com a liberalização dos controles de capitais e dos fluxos financeiros, o Brasil passou a permitir que sua taxa de juros fosse ditada pelos níveis de juros internacionais. No entanto, diferentemente dos países com moedas fortes (euro, dólar e libra esterlina), os países subdesenvolvidos possuem um risco de liquidez maior, em outras palavras, possuem maior possibilidade de não pagar suas obrigações com investidores por não emitirem as principais moedas utilizadas internacionalmente (euro, dólar e libra esterlina). Dessa forma, são forçados a praticar uma taxa de juros mais elevada para atrair a entrada de capitais financeiros — capitais esses que comumente são necessários para financiar o déficit da balança comercial provocado pelo fim de qualquer política industrializante que viabilizaria o fim da importação massiva de bens de consumo. (OREIRO et al, 2020).
Isso significa que desde os anos 1990, com a liberalização e o Plano Real, o Brasil adotou uma taxa de juros acima dos níveis internacionais mesmo quando não havia risco de inflação elevada. Alterando, assim, a lógica do processo de acumulação financeira anterior, que ocorria através de ganhos inflacionários, e passa a se dar sobre a dívida pública.
Para sustentar a dívida e pagar os intermediadores financeiros, ainda nos anos 1990, a carga tributária brasileira foi elevada de 27% para 34%, assegurando o pagamento dos credores e desviando os recursos de investimentos públicos para a carteira dos rentistas. (DOWBOR, 2017). Por outro lado, a Selic em patamares altos também encarecia o acesso ao crédito e contribuía para a valorização cambial, aprofundando o processo de desindustrialização brasileira. (BRESSER-PEREIRA; OREIRO; MARCONI, 2016).
Desdemocratização
Para além da desindustrialização, a financeirização nas economias subdesenvolvidas também está associada a uma perda de autonomia na realização de política econômica. Isso porque, qualquer alteração na taxa de juros ou no controle da demanda pode ser acompanhada de uma fuga de capitais, restringindo a capacidade dos governos de realizar política monetária. Dessa forma, o processo de integração econômica e financeira dos países periféricos costuma estar associado a perda de espaço para realização de política monetária e demais políticas públicas. Assim, quando o governo brasileiro tenta exercitar sua soberania a partir de sua posição periférica, o que resta é um sentimento de impotência frente a pressão do mercado — que é feita com todo o apoio da mídia tradicional. (OREIRO et al, 2020).
Observa-se, portanto, que na tentativa de conciliar os interesses dos rentistas por juros altos, dos industriais que sofriam com a compressão da taxa de lucro e dos trabalhadores, os governos FHC, Lula e Dilma realizaram uma série de reformas trabalhistas e desonerações tributárias, sem nunca efetivamente mexer na taxa de juros. No final das contas, os interesses dos “dependentes de lucro”, sejam esses rentistas ou industriais, foram garantidos às custas da previdência e dos direitos dos trabalhadores. Como compensação, os governos Lula injetaram recursos fictícios na economia via expansão do crédito e da capacidade de consumo da população, porém, no momento seguinte, isso se desdobrou em um alto endividamento familiar e empresarial com 61 milhões de brasileiros com nome no SPC em janeiro de 2020. (CAMPELLO; FONTANA, 2020).
Ademais, os incentivos fiscais e a tímida tentativa de desvalorização do câmbio e de redução da taxa de juros realizados por Dilma Rousseff em seu primeiro mandato não foram capazes de conter a desindustrialização em marcha. Porém, ao desafiar os setores financeiros que lucram com a especulação e a Selic elevada, Dilma conquistou um poderoso inimigo. Em 2014, os industriais romperam definitivamente com o governo, juntando-se aos rentistas, e, a partir de então, a crise política se aprofundou. (SINGER, 2015).
Crise da democracia brasileira
Em 2016, Dilma e o PT caem, não apenas pelos escândalos de corrupção, mas por não terem sido capazes de mobilizar sua própria base. A nova classe trabalhadora que surgiu em seus governos era precarizada e desarticulada após as reformas trabalhistas e, portanto, não se enxergava como classe trabalhadora, aderindo aos valores das elites. (SINGER, 2018). Além disso, a crise econômica iniciada em 2014 escancarou a insustentabilidade de uma política econômica baseada na exportação de commodities, altas taxas de juros e expansão do crédito. As perdas econômicas foram reais e em um cenário social muito fragilizado de cortes dos investimentos em saúde, educação e segurança.
As regras do jogo deturpadas acabaram por viabilizar uma drenagem dos recursos do Estado e das famílias em direção aos bancos e ao mercado financeiro. O resultado é uma economia travada haja vista que a população endividada e desempregada — ou subempregada — não é capaz de consumir. Ao mesmo tempo que o Estado ao pagar juros acima da média internacional e congelar seus gastos por 20 anos é incapaz de atender as demandas da sociedade por saúde, educação e segurança pública de qualidade. Por fim, o que resta é uma falsa sensação formalista de democracia na qual não há qualquer garantia de direitos trabalhistas, sociais, de habitação, saúde e segurança, porém há eleições a cada dois anos que legitimam a apropriação das riquezas nacionais por um grupo minoritário.
As Jornadas de Junho de 2013 clamavam por serviços públicos padrão FIFA; os governos democráticos entregaram desindustrialização, cortes nos investimentos em serviços públicos, endividamento das famílias e precarização do trabalhador. Em outras palavras, as demandas do povo não alcançaram o governo e os interesses do mercado em altas taxas de juros prevaleceram. As decisões sobre os rumos da política econômica foram feitas a portas fechadas com o setor financeiro e os industriais e as demandas populares deixadas de lado. Dessa forma, a crise da democracia brasileira é um resultado direto da desdemocratização da economia e, portanto, da blindagem da democracia às demandas da população.
Desdobramentos diretos desse processo é o descrédito da política e o fortalecimento de outsiders que culminaram na eleição de Trump e Bolsonaro. Apesar das eleições nos Estados Unidos apontarem a possibilidade de distanciamento de extremismos, a saída para a blindagem e a crise da democracia exige mais que uma alteração de presidente: ela passa necessariamente por uma alteração na política econômica, como vem sendo feita por Biden.
REFERÊNCIAS
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos; OREIRO, José Luis; MARCONI, Nelson. Macroeconomia Desenvolvimentista: Teoria e política econômica do novo desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Elsevier Brasil, 2016.
BRUNO, Miguel. Financeirização e crescimento econômico: o caso do Brasil. ComCiência, n. 128, p. 0-0, 2011.
CAMPELLO, Maria Raphaela; FONTANA, Brenda. Neoliberalismo e desdemocratização no Brasil (1990-2016): Uma leitura a partir dos estudos de Wolfgang Streeck. Conjuntura Global, 9(2), 2020.
DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
GUGLIANO, Monica. Vou intervir! O dia em que Bolsonaro decidiu mandar tropas ao Supremo. Piauí, agosto, 2020. Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/vou-intervir/>. Acesso em: 2 junho 2021.
OREIRO, J. L., FEIJÓ, C. A., PUNZO, L. F., & MACHADO, J. P. H. Peripherical Financialization and Premature Deindustrialization: A Theory and the Case of Brazil (2003-2015). 2020.
R7. 61 mil brasileiros começaram 2020 endividados, diz CNDL/SPC Brasil. R7, janeiro, 2020. Disponível em: <https://noticias.r7.com/economia/61-mi-brasileiros-comecaram-2020-endividados-diz-cndlspc-brasil-16012020>. Acesso em 2 junho 2021.
SINGER, André. Cutucando onças com varas curtas: o ensaio desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014). Novos estudos CEBRAP, n. 102, p. 39-67, 2015.
SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). Editora Companhia das Letras, 2018. Edição Kindle.
STREECK, W. Buying time: The delayed crisis of democratic capitalism. Verso Books, 2014.