Texto Conjuntural: Cone Sul #13 – Chile: do Plebiscito de 1988 até o Novo Processo Constitucional

Chile: do Plebiscito de 1988 até o Novo Processo Constitucional

Por Emilly Emanuelle Guidi Ribeiro

Entre 1973 e 1990, o Chile esteve sob o comando de Augusto Pinochet, um ditador militar, que assumiu o poder após aplicar um golpe militar que depôs Salvador Allende, presidente chileno eleito democraticamente. Naquele período, Pinochet elaborou uma nova Constituição de caráter autoritário que lhe dava o direito de permanecer no poder por oito anos, impondo grandes restrições tanto para a sociedade civil quanto para o Estado e promovendo uma maior participação do setor privado, sobretudo em questões voltadas para a educação e a saúde nacional. Contudo, em outubro de 2019, manifestantes foram às ruas para demonstrar sua indignação e um dos pontos levantados, além do aumento da tarifa do metrô de Santiago, foi a insatisfação com a Constituição vigente. Diante disto, esta análise tem o objetivo de expor o processo de democratização iniciado com o Plebiscito de 1988 e de analisar as mudanças políticas demandadas por parte da sociedade civil juntamente com as ações do governo nacional para atendê-las e assegurar a elaboração de uma nova Constituição chilena. 

O Plebiscito de 1988 e a redemocratização do Chile

Durante seu mandato, Pinochet possuía dupla legitimidade interna – a hierárquico-institucional e a político-estatal – garantida pela Constituição. Desta forma, o ditador promoveu um deslocamento da “velha relação” entre política e sociedade, submetendo o país a um esquema econômico neo-liberal, além de impor uma institucionalização política que promovia a passagem do regime militar para um regime de caráter mais autoritário [i]. Insatisfeitos com o regime repressivo do general e diante dos sinais de fragilidade originados da crise econômica, inúmeros protestos populares eclodiram em todo o país contra o regime político, ocasionando, assim, uma instabilidade política originada do questionamento e da mudança de percepção por parte da sociedade civil (M. GARRETÓN, 1992).

Ademais, pressões no âmbito internacional também ocorreram e, diante de tal situação, o governo nacional convocou a realização de um Plebiscito para decidir a permanência de Pinochet no poder. Campanhas eleitorais e estratégias publicitárias, tanto favoráveis quanto contrárias, dominaram os meios de comunicação, assim como a presença da sociedade civil nas ruas, o que consequentemente promoveu uma disputa persuasiva entre os dois lados a fim de defender e utilizar os mais diversos argumentos para a conquista de votos. No entanto, em 5 de outubro de 1988, aproximadamente 55,99% dos votantes se expressaram contra enquanto 44% se expressaram favoráveis à permanência de Pinochet por mais oito anos (SANTOS, 2014).

Destarte, após tal marco, houve o isolamento político dos setores ‘duros’ identificados com a manutenção de Augusto Pinochet no poder ou com a continuidade institucional autoritária em sua totalidade. No plano militar, todos os sinais apontaram para uma gradual retirada do poder político por parte das Forças Armadas (M. GARRETÓN, 1992, p. 64). Quanto ao plano civil, o isolamento destes setores, e daqueles tidos como continuístas do regime militar, proporcionaram uma derrota política dos grupos fascistas, como o Avanzada Nacional, deixando-os sem qualquer projeto político factível que expressasse a direita social e política. 

Por fim, um processo iniludível, cercado de ceticismo, dúvidas e resistência, foi vivenciado por conta do processo de redemocratização do Chile nas transições, porque tratava-se de negociações realizadas entre o regime e a sua oposição. Reformas constitucionais foram consolidadas por meio de intermediários civis com o objetivo de flexibilizar o marco constitucional, realizar a transição para a democracia, estabelecer garantias para as Forças Armadas e, principalmente, assegurar o fim das proscrições e exclusões políticas para que outros atores e partidos políticos pudessem se candidatar (M. GARRETÓN, 1992). 

Os protestos de 2019 e o futuro da Constituição de Pinochet

Apesar da transição democrática e do processo de redemocratização que promoveram mudanças no Chile nas últimas décadas, em outubro de 2019, as maiores revoltas vivenciadas pela sociedade civil chilena se iniciaram após o governo nacional anunciar o aumento das passagens de metrô. Diversos manifestantes se reuniram nas ruas da capital chilena, Santiago, e de outras cidades como forma de protesto, além de que vários estudantes pularam as catracas do metrô sem pagar o preço das passagens com o intuito de demonstrar a sua insatisfação. Por conseguinte, a situação agravou-se quando a polícia tentou realizar o bloqueio de manifestantes, dando início a um confronto entre ambas as partes. Uma onda de manifestações de cunho violento tomou conta das ruas de Santiago e espalhou-se pelas demais cidades, intensificando a indignação por parte da sociedade civil e deixando pelo menos sete mortos durante os primeiros dias (RTP, 2019).

O governo nacional decretou estado de emergência em inúmeras cidades do norte ao sul do Chile, além de que Sebastián Piñera, presidente do Chile, alegou que o país se encontrava “em guerra” contra os “criminosos” responsáveis pela desordem e pelas manifestações violentas (RTP, 2019). Estas revoltas causaram um impacto no crescimento da economia nacional e fizeram o desempenho econômico ser o pior do país desde 2009, após a Grande Recessão. O crescimento do PIB era projetado para cerca de 2,5%, porém a explosão social fez com que este indicador fosse reduzido para menos do que a metade, totalizando 1,2%. Apesar dos altos índices de violência assistidos mundialmente, a imagem do país permaneceu relativamente positiva. Contudo, a situação se encontrava instável, e um relatório emitido pela Bloomberg na época apontou “que o Chile poderia deixar de ser o primeiro país entre as economias seguras da América Latina, uma reputação conquistada com esforço” (MONTES, 2020, s.p.).

Vale ressaltar que o aumento da tarifa do metrô é apenas a “ponta do iceberg”, de acordo com políticos e especialistas. As demandas da sociedade civil vão muito além disto, entretanto, a palavra “desigualdade” se fez muito presente em vários discursos proferidos por manifestantes. Segundo um dos relatórios de Panorama Social da América Latina emitido pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), observa-se que “a parcela de 1% mais rica da população chilena manteve 26,5% da riqueza do país em 2017, enquanto 50% das famílias de baixa renda representavam apenas 2,1% da riqueza líquida (4 PONTOS…, 2019, s.p.). Em adição a isto, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística do Chile, “metade dos trabalhadores do país recebe um salário igual ou inferior a 400 mil pesos (R $2.280) ao mês” (4 PONTOS…, 2019, s.p.).

Tais dados sustentam o caráter elevado da diferença social entre ricos e pobres dentro da sociedade chilena e justificam o sentimento existente e cultivado entre estes indivíduos, uma vez que é perceptível esse problema recorrente, tendo em vista a estrutura do sistema socioeconômico do país. A carência de ações por parte do governo vem se prolongando cada vez mais há algumas décadas, além de que uma reforma do sistema privatizado de previdência é uma outra questão que vem sendo discutida há bastante tempo dentro do país. Conforme Cristóbal Bellolio, um acadêmico da Universidade Adolfo Ibáñez entrevistado pela BBC News Mundo, essa reforma contém deficiências significativas para muitas pessoas, pois trata-se de “uma mistura que não oferece esperança de tempos melhores, que é precisamente a promessa do governo Piñera. Pelo contrário, acho que as pessoas percebem que o momento é pior” (4 PONTOS…, 2019, s.p.). 

Ademais, Claudio Fuentes, professor de Ciência Política da Universidade Diego Portales, também reforça que, durante o governo de Piñera, “houve um grande crescimento da classe média, mas é uma classe média precária, com baixas pensões, altos níveis de dívida e que vive muito de crédito e salários muito baixos. É uma situação em que o dia a dia é precário, cheio de incertezas” (4 PONTOS…, 2019, s.p.). Uma outra questão levantada era sobre a Constituição redigida em 1980 e herdada do período de Pinochet. Quanto a isto e considerando as demandas sociais, em outubro de 2020, Piñera convocou um novo Plebiscito com os objetivos de fazer a sociedade civil decidir quanto à elaboração de uma nova Constituição e de reduzir as revoltas que ameaçaram a estabilidade democrática em 2019. Essa atitude foi tida como uma saída institucional sugerida pelas principais forças políticas chilenas, apresentando uma participação eleitoral de 51%, onde 78% dos votantes foram a favor de redigir uma nova Constituição e 79% escolheram a opção de “Convenção Constitucional” [ii] (JUBILATION…, 2020).

Sendo assim, o próximo passo seria a eleição, em maio de 2021, de 155 parlamentares responsáveis por compor uma assembleia. Esta teria que ter como característica a paridade de gênero, ou seja, 50% dos constituintes homens e 50% mulheres, e seria formada por novos membros que não tivessem nenhuma obrigatoriedade de filiação com algum partido (PRESSE, 2021; MUNDI, 2021). Os resultados apurados mostraram que a Assembleia Constituinte terá uma grande presença de candidatos independentes, de esquerda e de setores considerados progressistas, como evidenciado por Montes (2021):

Dos 155 constituintes, 48 se apresentaram por listas independentes dos partidos políticos, ou seja, 31%. Se a eles forem somados os 40 eleitos que não militam, mas chegaram às urnas sob o guarda-chuva de alguma comunidade —de diversos setores—, o número de independentes no órgão chega a 64%, segundo o Observatório da Nova Constituição. Em suma, sem contar as 17 cadeiras reservadas aos povos indígenas, haverá apenas 50 militantes partidários na Assembleia paritária (77 mulheres e 78 homens) (MONTES, 2021, s.p.).

Portanto, a assembleia terá um prazo de nove meses, com a opção de prorrogação única de três meses, para escrever e apresentar um novo texto que busque abranger e assegurar direitos básicos, como educação, moradia e saúde conforme demandado e manifestado pela sociedade civil (JUBILATION…, 2020).

Considerações Finais

Levando em consideração os pontos expostos e explorados nesta análise, a vitória do “não” no Plebiscito em 1988 foi só o início do processo de transição chilena à democracia, o que promoveu eleições democráticas tanto por parte da sociedade civil quanto por parte dos parlamentares e dos presidencialistas. No entanto, é perceptível que, apesar das mudanças realizadas após a saída de Pinochet e da transição ter acontecido de forma gradativa ao longo dos anos, a Constituição nacional ainda era controlada pelos seguidores do general, assim como a presença de algumas consequências do regime militar que perpetuavam e restringiam os direitos da própria sociedade, fossem eles civis, políticos e/ou sociais.

Sendo assim, as manifestações populares reforçam um problema estrutural que é ignorado há bastante tempo em questões que envolvem a desigualdade social presente no país, as aposentadorias consideradas miseráveis e a política de privatização dos serviços públicos. Diante deste cenário, as reformas constitucionais são a melhor alternativa para que esse passado da história do Chile não volte a se consolidar, e para que transformações sejam implementadas nos âmbitos econômico, político e social. Portanto, uma vez que uma nova Constituição irá ser desenvolvida e redigida, acredita-se que os 155 parlamentares considerarão as demandas levantadas pelos protestos em 2019, a fim de assegurar um futuro próspero para o país e ocasionar melhorias significativas das condições de vida da sociedade civil, além de fortalecer o poder das instituições que sustentam princípios democráticos.  

Notas de Fim:

[i] De acordo com Garretón M. (1992), “um regime militar é aquele em que os titulares do poder são diretamente as Forças Armadas. Regime autoritário é um termo mais genérico, que abrange o militar, mas que pode ser também civil” (M. GARRETÓN, 1992, s.p.).

[ii] Uma convenção constitucional é um encontro político realizado para redigir uma nova Constituição ou modificar e revisar uma existente.

REFERÊNCIAS

4 PONTOS para entender os protestos no Chile. BBC News, 23 out. 2019. Internacional. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50130830. Acesso em: 01 jun. 2021.

JUBILATION as Chile votes to rewrite constitution. BBC News, 26 out. 2020. Mundo, América Latina. Disponível: https://www.bbc.com/news/world-latin-america-54687090. Acesso em: 02 jun. 2021.

M. GARRETÓN, Manuel Antônio. A redemocratização no Chile: transição, inauguração e evolução. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, ano 27, dez. 1992. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/BZ4CHqL5kYysy9v3rpVR3Qn/?lang=pt. Acesso em: 01 jun. 2021.

MONTES, Rocío. Chile decide nas urnas o futuro da Constituição de Pinochet. El País, Santiago, 25 out. 2020. Internacional. Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2020-10-25/chile-decide-nas-urnas-o-futuro-da-constituicao-de-pinochet.html. Acesso em: 02 jun. 2021.

MONTES, Rocío. Independentes estremecem tabuleiro político do Chile e controlarão 64% da Assembleia Constituinte. El País, Santiago, 17 maio 2021. Internacional. Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-05-18/independentes-estremecem-tabuleiro-politico-do-chile-e-controlarao-64-da-assembleia-constituinte.html. Acesso em: 02 jun. 2021. 

MONTES, Rocío. Tensão social reduz à metade o crescimento do Chile em 2019. El País, Santiago, 03 fev. 2020. Economia. Disponível: https://brasil.elpais.com/economia/2020-02-03/tensao-social-reduz-a-metade-o-crescimento-do-chile-em-2019.html. Acesso em: 01 jun. 2021.

MUNDI, Opera. Em eleições no Chile, independentes e esquerda são maioria; direita sai enfraquecida. Brasil de Fato, 17 maio 2021. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/05/17/em-eleicoes-no-chile-independentes-e-esquerda-sao-maioria-direita-sai-enfraquecida. Acesso em: 02 jun. 2021.

PRESSE, France. Chile elege parlamentares que vão escrever a nova Constituição. Globo News, 15 maio 2021. Mundo. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/05/15/chile-elege-parlamentares-que-vao-escrever-a-nova-constituicao-saiba-mais.ghtml. Acesso em: 02 jun. 2021.

RTP. Chile enfrenta maior revolta social das últimas décadas. Agência Brasil, Santiago, 21 out. 2020. Internacional. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2019-10/chile-enfrenta-maior-revolta-social-das-ultimas-decadas. Acesso em: 01 jun. 2021.

SANTOS, Eric Assis dos. A transição à democracia no Chile: rupturas e continuidades do projeto ditatorial 1980-1990. 2014. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2014. Disponível em: https://www.historia.uff.br/stricto/td/1781.pdf. Acesso em: 01 jun. 2021.

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