Texto Conjuntural: Cone Sul #15 – A nova Constituição do Chile: entre protestos e reivindicações

A NOVA CONSTITUIÇÃO DO CHILE: entre protestos e reivindicações

Por Júlia Almeida de Oliveira

O Chile, ao deixar para trás a ditadura de Augusto Pinochet, que durou de 1973 a 1990, e regressar para a democracia, não realizou um procedimento comum a transições similares de outros países do Cone Sul. A elaboração de uma nova Constituição, a qual seria condizente com o novo momento institucional para superar a legislação proveniente do período autoritário. Sendo assim, os chilenos optaram, ao contrário disso, por emendar a Carta pinochetista o máximo possível. Todavia, em outubro de 2020, o país decidiu que uma nova Constituição deveria ser concebida (GAZETA DO POVO, 2021).

A resposta do presidente chileno, Sebastián Piñera, a uma série de protestos realizada no país foi uma consulta popular acerca da redação de uma nova Constituição. O plebiscito, realizado em 2020, contou com a participação de pouco mais de 50% da população. Entretanto, a aprovação da proposta de uma nova Carta Magna foi considerada massiva, com 78% dos votos para “sim”, o que revelou um consenso por parte dos chilenos sobre a necessidade de abandonar a carta pinochetista (GAZETA DO POVO, 2021). Nesse sentido, a presente análise tem por objetivo apresentar o contexto histórico do retorno do Chile ao regime democrático na década de 1990 e, também, explorar como a conjuntura chilena de protestos levou à resposta do atual governo de elaborar uma nova Constituição para o país.

Contexto histórico

Apesar da dificuldade, é possível determinar traços comuns ao analisar os governos militares latino-americanos das décadas de 1960 a 1980. Alguns pontos em comum a todos os regimes militares da região podem ser destacados, dentre eles têm-se: a dissolução das instituições representativas, falência ou crise aguda dos regimes e partidos políticos tradicionais, militarização da vida política e social em geral e o crescente poderio econômico, social e político da instituição militar. Entretanto, os regimes militares “progressistas” caracterizaram-se como a exceção (COGGIOLA, 2001).

Por volta da metade da década de 1960, certos golpes de extrema importância foram responsáveis por mudar a história da América do Sul. Os golpes realizados no Brasil e Argentina sofreram uma grande influência da diplomacia dos Estados Unidos, uma vez que a tensão internacional do período, entre EUA e União Soviética (URSS), representaria o álibi ideológico para os golpes militares, que afirmavam unanimemente que a democracia não era capaz de conter o comunismo (COGGIOLA, 2001). Os demais países que compõem o Cone Sul – Paraguai, Uruguai e Chile – vivenciaram um novo tipo de regime militar. Diante disso, o Chile, sob o regime de Pinochet, “[…] conheceria a supressão de todas as liberdades democráticas, campos de concentração de prisioneiros, torturas em grande escala e assassinatos políticos em massa.” (COGGIOLA, 2001, p. 33).

Em 1990, o Chile realizou um processo de transição para a democracia, que, segundo Manuel Antonio Garretón M. (1992), foi inaugurado com a instalação do primeiro governo, bem como do primeiro parlamento democráticos. No que se segue, com o fim da Guerra Fria, a promoção da democracia tornou-se um tema recorrente na agenda internacional, considerando-se as alterações proporcionadas pelo fim do período de polarização entre EUA e URSS. A promoção da democracia na América Latina não apresenta uma trajetória linear e possui, nesse sentido, regimes políticos muito conturbados, o que permite que as características desta agenda na região sejam bem particulares (BARROS; MASCARENHAS, 2018).

Quanto ao retorno dos regimes democráticos nos países supracitados, percebe-se que o Chile, diferentemente dos demais, optou por não elaborar uma nova Constituição após o fim do período ditatorial. O Brasil teve a sua Constituição reelaborada em 1988, a Argentina em 1994, o Paraguai em 1992 e o Uruguai realizou modificações na Constituição de 1967 nos anos de 1989, 1994, 1996 e 2004, de modo que é possível observar que todos alteraram a Carta Magna de seus respectivos países, exceto o Chile.

Os protestos no Chile e a elaboração da nova Constituição do país

No dia 18 de outubro de 2019, Santiago, capital do Chile, foi palco de confrontos violentos entre manifestantes, os quais protestavam contra o aumento do preço da passagem do metrô, e as forças de segurança. O presidente Sebastián Piñera declarou estado de emergência na capital e, além disso, designou um militar como titular da Segurança Pública. Apesar da suspensão do aumento do preço da passagem, os confrontos e saques prosseguiram em Santiago, de modo que o estado de emergência foi ampliado para diversas regiões do país (ESTADO DE MINAS, 2021).

O pedido de “perdão” por parte do presidente, bem como o anúncio de determinadas reformas sociais não foram suficientes para impedir uma greve geral, que exigia o retorno dos militares aos quartéis e respostas à pior crise social enfrentada pelo Estado em 30 anos. Em 25 de outubro do mesmo ano, 1,2 milhão de chilenos realizaram um protesto pacífico na capital do Chile e, nos dias seguintes, o governo suspendeu o toque de recolher, encerrou o estado de emergência e substituiu um terço dos ministros. No mês posterior, em 15 de novembro, as forças políticas chegaram a um acordo histórico para convocar um referendo que seria responsável por decidir acerca da mudança – ou da continuidade – da Constituição herdada da ditadura de Pinochet, o que corresponde a uma das demandas principais dos manifestantes (ESTADO DE MINAS, 2021).

A Constituição neoliberal – elaborada no período ditatorial – gerou o período de maior crescimento sustentável da história do país. Ao mesmo tempo que a mesma atraía investimentos e possibilitava a estabilidade econômica e política, ela produzia desigualdade e mantinha as oportunidades limitadas a um grupo de privilegiados. Logo, a Constituição pinochetista é vista, pela maioria do povo chileno, como ponto de partida para a desigualdade, fazendo com que direitos básicos, como direito à educação, saúde, água e aposentadoria, sejam serviços privados a serem contratados pelo cidadão. As manifestações, que eram a princípio uma revolta sobre o aumento no preço do metrô, tornaram-se uma faísca que acabou por conseguir acabar com o legado mais sólido de Pinochet, que exigia maiorias absolutas jamais alcançadas para ser alterado (G1, 2020).

No início de dezembro de 2019, o governo apresentou um plano de US$ 5,5 bilhões e anunciou uma série de concessões sociais, dentre as quais cabe citar o aumento da pensão mínima para idosos e um bônus especial para 1,3 milhão de famílias. Em janeiro de 2020 , Piñera anunciou reformas do sistema de saúde, entre outras medidas. No entanto, no final do mês, após um período de calma, a violência deixou quatro mortos, e posteriormente, em 23 de fevereiro, ocorreram confrontos em Vinã del Mar e no mês de março em diversas outras cidades (ESTADO DE MINAS, 2021).

Com o advento da pandemia do coronavírus, em 18 de março, o Chile declarou estado de desastre, o que implicou em um intervalo nas discussões. Sendo assim, o referendo, antes previsto para 26 de abril de 2020, foi adiado para 25 de outubro do mesmo ano. Neste dia, com o número de contágios do vírus sob controle, 51% dos chilenos aprovaram por uma grande maioria, com quase 80%, a mudança constitucional e, também, que o novo texto seria redigido por 155 representantes eleitos por votação popular (ESTADO DE MINAS, 2021).

Inicialmente, a eleição dos constituintes estava prevista para 11 de abril de 2021 , entretanto, com um novo aumento do contágio por coronavírus, houve um adiamento para os dias 15 e 16 de maio (ESTADO DE MINAS, 2021). Nestes dois dias, além de vereadores e governadores, os chilenos escolheram, então, os membros da Assembleia Constituinte mediante um mecanismo de paridade de gênero singular no mundo, que garante 45% de assentos a mulheres e reservam 17 para constituintes indígenas. Diante disso, o novo órgão terá nove meses para apresentar um texto constitucional, prazo este que pode ser prorrogado, uma única vez, em três meses. Logo, em meados de 2022, o povo chileno deverá participar de outro plebiscito, em que o texto da nova Constituição, elaborado pelos constituintes, será aprovado ou rejeitado (OPEN DEMOCRACY, 2021).

Considerações Finais

O Chile, diferentemente dos outros países do Cone Sul, optou por não alterar ou elaborar uma nova Constituição após o período ditatorial. Em 2019, após o início de uma série de protestos no país, o governo chileno encontrou-se diante da necessidade de apresentar uma resposta para as demandas dos manifestantes, que passaram a reivindicar, sobretudo, a elaboração de uma nova Constituição. Sendo assim, o governo de Piñera apresentou diversas concessões sociais e, além disso, realizou um plebiscito popular, que levou à aprovação da elaboração de uma nova Carta Magna, a qual deverá ser aprovada – ou não – em 2022.

Perante o exposto, pode-se concluir que o Chile, após a mobilização da população e a organização de diversos protestos, acabou por estabelecer uma conquista histórica, a qual marcou não somente o país, mas a região sul-americana como um todo, dada a magnitude das manifestações. Tudo isso implica uma nova fase para a democracia chilena, dado que a elaboração da nova Constituição carrega a esperança de que a desigualdade no país diminua e que a democracia prospere.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Marinana; MASCARENHAS, Jorge. Governança e Promoção da Democracia na América Latina: Uma análise da Construção Normativa no Âmbito das Organizações Regionais. Nomos. v. 38, 2018, p. 616-639.

COGGIOLA, Osvaldo. Governos militares na América Latina. São Paulo: Contexto, 2001. Cap.1, p.11- 34.

ESTADO DE MINAS, 2021. Chile, do protesto social à histórica eleição de constituintes.

Disponível em:

https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2021/05/14/interna_internacional,1266615/c hile-do-protesto-social-a-historica-eleicao-de-constituintes.shtml. Acesso em: 27 maio 2021.

GAZETA DO POVO, 2021. O Chile elege seus constituintes. Disponível em:

https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/editoriais/o-chile-elege-seus-constituintes/. Acesso em: 25 maio 2021.

G1, 2020. Dos protestos a uma nova Constituição: que Chile vai surgir após o fim do último vestígio de Pinochet? Disponível em:

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/10/26/dos-protestos-a-uma-nova-constituicao-que-c hile-vai-surgir-apos-o-fim-do-ultimo-vestigio-de-pinochet.ghtml. Acesso em: 01 jun. 2021.

M., Manuel Antonio Garretón. A redemocratização no Chile: transição, inauguração e evolução. 1992 . Disponível em :

https://www.scielo.br/j/ln/a/BZ4CHqL5kYysy9v3rpVR3Qn/?lang=pt. Acesso em: 31 maio 2021.

OPEN DEMOCRACY, 2021. Assembleia Constituinte do Chile: oportunidade histórica para o povo. Disponível em:

https://www.opendemocracy.net/pt/assembleia-constituinte-chile-oportunidade-para-povo/. Acesso em: 27 maio 2021.

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