Texto Conjuntural: Norte da América do Sul #32

CRIPTOMOEDAS E SOBERANIA: O CASO VENEZUELANO

Maria Clara de Oliveira Drawin

Palavras-chave: Bitcoin, Criptomoedas, Inflação, Soberania, Venezuela

Com a recente popularização de plataformas online voltadas para a negociação de criptoarte e NFTs (non-fungible tokens, ou seja, uma criptomoeda indivisível que pode vir no formato de arte visual ou audiovisual),o debate sobre criptomoedas está em voga novamente. Mas além de discussões abstratas sobre lastro, fungibilidade, o conceito benjaminiano de “aura” e arte, esse momento também possibilita revisitar conceitos mais políticos como o de “soberania”.

Isso porque uma das demonstrações de soberania do Estado está em sua atribuição exclusiva e legítima da criação, manutenção e distribuição da moeda. Quando criptomoedas entram em jogo, moedas essas que existem em um espaço virtual desterritorializado e que não são atribuídas a nenhum Estado, surgem complicações legislativas e políticas.

Bitcoin é diferente: ela substitui totalmente moedas apoiadas pelo Estado por uma versão digital que é mais difícil de forjar, atravessa fronteiras internacionais, pode ser armazenado em seu disco rígido em vez de em um banco e – talvez o mais importante para muitos usuários de Bitcoin – – não está sujeito ao capricho inflacionário de qualquer chefe da Reserva Federal que decida imprimir mais dinheiro. (FORBES, 2011)

Como legislar domesticamente em um território ao mesmo tempo internacional e neutro, que não é vinculado a um Estado específico? Como absorver essas transações no mercado interno? Como um portador de grandes fortunas em criptomoedas poderia dar retorno social, seja gastando sua fortuna e movimentando a economia, seja sendo sujeito de taxações progressivas, por exemplo?

Esses questionamentos não têm solução simples, e estão sendo estudados e debatidos por especialistas há um pouco mais de uma década, com a ascensão desse mercado, em especial da bitcoin. Contudo, apesar dos possíveis riscos, criptomoedas inegavelmente abrem portas para inúmeras possibilidades, como por exemplo maior autonomia em relação a sanções econômicas no Sistema Internacional.

As criptomoedas foram aproveitadas por alguns países a fim de evitar sanções impostas a eles por alguns na comunidade global, uma vez que tais transações podem ocorrer sem supervisão ou rastreamento. A Venezuela tem sido líder na criação de criptomoedas apoiadas pelo governo para atingir esse objetivo. (CYBERDB) 

Partindo desse pressuposto, alguns Estados decidiram se arriscar na criação de sua própria criptomoeda nacional, dentre eles, notoriamente, está a Venezuela.

A partir do caso venezuelano, iremos analisar como a lógica das criptomoedas interage com as dinâmicas de poder no Sistema Internacional, podendo servir como uma ferramenta tanto para a manutenção de privilégios e hierarquias, quanto para desafiá-los. Para fazermos essa análise, porém, devemos compreender em um primeiro momento o que são criptomoedas e qual o seu funcionamento.

De maneira resumida, criptomoedas são moedas virtuais que podem ou não ser centralizadas e que são associadas a uma blockchain, ou seja, uma espécie de registro virtual e público de dados e transações que validam as transações e legitimam a moeda. Enquanto na economia real o valor da moeda tem lastro material, e no mercado financeiro ela tem lastro na economia real, o valor das criptomoedas parte de uma especulação artificial. Ou seja, a criptomoeda vale porque se especula que ela irá valer mais no futuro, e que será mais “rara” ou de difícil obtenção.

O custo de energia de uma criptomoeda está vinculado ao seu preço atual. Isso ocorre porque as criptomoedas são projetadas para incentivar os mineiros – se não fossem amarradas, o retorno do valor potencial de uma bitcoin poderia cair abaixo do preço da eletricidade necessária para produzi-la. Por causa disso, o retorno financeiro contínuo da Bitcoin depende de moedas serem mais difíceis de fazer no futuro. As pessoas que investem em criptomoedas – como qualquer tipo de especulação de futuros – estão apostando que será melhor possuir esse recurso amanhã do que fazê-lo. (PIPKIN, 2021)

Existem duas principais formas de produzir esse valor artificial para as criptomoedas. Que são a “Proof of Work” e a “Proof of Stake”. Em resumo, Proof of Work funciona da seguinte maneira:

(…) em um contexto digital, a escassez deve ser construída – não há nada que exija que o próximo bloco na blockchain seja mais difícil de fazer do que o anterior. Na verdade, o oposto deveria ser verdadeiro – os computadores se tornam cada vez mais eficientes e poderosos. Isso significa que qualquer escassez é artificial, um processo que exige cada vez mais energia, cada vez mais recursos perdidos para continuar a operar e retornar, por nenhuma outra razão do que garantir que amanhã será ainda mais caro – o que torna o desperdício de hoje um bom investimento. É por isso que a criptomoeda é valiosa. Não há nada de alta tecnologia nisso. Não há milagre. É simplesmente especulação futura sem a especulação – nenhuma suposição necessária, porque sabemos que haverá mais desperdício amanhã; ele está embutido na tecnologia. Tudo o que a criptomoeda faz é abstrair recursos em um mercado, tornando esses recursos indisponíveis para o futuro. (PIPKIN, 2021)

No que concerne à Proof of Stake:

Enquanto as moedas de proof of work exigem a resolução de quebra-cabeças cada vez mais intensivos em energia para entrar na loteria de quem vai cunhar a próxima moeda, as moedas de proof of stake têm uma abordagem diferente; as entradas em uma loteria PoS são distribuídas por “aposta mantida” em um sistema, geralmente por moedas atualmente em uma carteira individual. (PIPKIN, 2021)

Por fim, uma vez que compreendemos o que são criptomoedas, podemos passar para a análise do caso venezuelano.

Vivendo uma crise econômica e política, taxas inflacionárias cada vez mais altas, e em um Sistema Internacional arquitetado para sabotá-la ou dificultar sua recuperação, a Venezuela propôs no final de 2017 criar sua própria criptomoeda. Para alguns analistas, como visto anteriormente, essa movimentação tinha a intenção de evitar sanções econômicas no Sistema Internacional, vide sua relação delicada com as grandes potências. Para outros, o objetivo era contornar a crescente inflação no país.

A Venezuela viu sua moeda ficar praticamente sem valor após sofrer um dos piores períodos de hiperinflação desde a Segunda Guerra Mundial. (…) Até o governo lançou sua própria criptomoeda, a Petro, supostamente lastreada em petróleo, para solucionar a crise econômica. (BBC, 2019)

Independente de qual o argumento escolhido para justificar a entrada do Estado no mercado das criptomoedas, as duas justificativas partem da premissa que as criptomoedas seriam uma solução para problemas relacionados à liberdade e autonomia. Por um lado, há o argumento que é o Sistema Internacional que limita a Venezuela, através de sanções por exemplo, e contornar essa limitação seria a finalidade dessa aposta. Por outro, há o argumento de que são os venezuelanos que têm seus direitos e sua autonomia restringidos pelo próprio Estado, e que as criptomoedas seriam uma espécie de “colete salva-vidas” nesse cenário.

 Analisando um artigo da Forbes de 2019 sobre a relação da Venezuela com criptomoedas, podemos detectar com facilidade a construção de um discurso. A leitura hegemônica que se fez do caso venezuelano parte de uma narrativa que o país, “vitimado” por seu governo de esquerda e suas políticas, se viu refém de uma extrema e leviana saída: apostar em criptomoedas.

O governo da Venezuela parece não conseguir fazer nada certo hoje em dia, então algumas pessoas empreendedoras se apresentaram para ajudar o país devastado pela inflação. (…) Há uma necessidade clara de ajuda humanitária na Venezuela. O país sul-americano está sofrendo uma hiperinflação brutal, deixando a população sem acesso às necessidades básicas como alimentos e remédios. A taxa de inflação anualizada atingiu um recorde de 117.681% em 10 de janeiro, de acordo com estimativas da Hanke. Para referência, uma inflação anual de 100% reduz pela metade o poder de compra do dinheiro em um ano. A inflação atual da Venezuela torna o Bolívar inútil em um instante. (FORBES, 2019)

Possivelmente, é de interesse do hegêmona que o Estado venezuelano seja enfraquecido, e isso pode ser feito através do discurso das criptomoedas. Mas uma vez que se legitima um espaço em que a soberania do Estado é questionada, as possíveis consequências para esse discurso não irão se ater às fronteiras específicas, e as complicações não se limitam ao plano discursivo também. Um mercado financeiro sem lastro material, sem diálogo com a economia real e sem a intervenção do Estado é um domínio perigoso, não só para a soberania, mas em última instância para quem é sujeito dela.

REFERÊNCIAS:

CONSTABLE, Simon. Could A Cryptocurrency Service Help Save Venezuela?. Forbes, 14 de Janeiro de 2019. Disponível em: <https://www.forbes.com/sites/simonconstable/2019/01/14/could-a-crypto-currency-service-help-save-venezuela/?sh=51bd6a1e4856> . Acesso em: 13 de Março de 2021

GREENBERG, Andy. Crypto Currency. Forbes, 20 de Abril de 2011. Disponível em: <https://www.forbes.com/forbes/2011/0509/technology-psilocybin-bitcoins-gavin-andresen-crypto-currency.html?sh=ba775a2353ee> . Acesso em: 13 de Março de 2021

IASIELLO, Emilio. National Cryptocurrencies – A Viable State Alternative to the Established Norm?. CyberDB. Disponível em: <https://www.cyberdb.co/national-cryptocurrencies/> . Acesso em: 13 de Março de 2021PIPNKIN, Everest. HERE IS THE ARTICLE YOU CAN SEND TO PEOPLE WHEN THEY SAY “BUT THE ENVIRONMENTAL ISSUES WITH CRYPTOART WILL BE SOLVED SOON, RIGHT?”. Medium, 3 de Março de 2021. Disponível em: <https://everestpipkin.medium.com/but-the-environmental-issues-with-cryptoart-1128ef72e6a3> . Acesso em: 10 de Março de 2021

PIPNKIN, Everest. HERE IS THE ARTICLE YOU CAN SEND TO PEOPLE WHEN THEY SAY “BUT THE ENVIRONMENTAL ISSUES WITH CRYPTOART WILL BE SOLVED SOON, RIGHT?”. Medium, 3 de Março de 2021. Disponível em: <https://everestpipkin.medium.com/but-the-environmental-issues-with-cryptoart-1128ef72e6a3> . Acesso em: 10 de Março de 2021

SALVO, Di Matthew. Why are Venezuelans seeking refuge in crypto-currencies?. BBC, 19 de Março de 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/business-47553048>.Acesso em: 13 de Março de 2021


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