Texto Conjuntural: Golfo da Guiné #02

Foto: DW

O estupro sistemático na República Democrática do Congo

Por Lara Cândido Souza

A República Democrática do Congo (RDC) possui uma das mais altas taxas mundiais de violência sexual. De acordo com a pesquisa publicada pelo American Journal of Public Health (2011), cerca de 48 mulheres são estupradas a cada hora no país. Desde a década de 90, milhares de congolesas estão sendo vítimas de violência sexual, na qual grande parte é praticada por homens civis, membros das Forças Armadas da República do Congo e de milícias estrangeiras advindas de países fronteiriços. Dessa forma, faz-se necessário analisar alguns contextos históricos que possibilitaram a ocorrência sistêmica de tamanha violência.

A RDC é conhecida por dispor de grandes reservas minerais de columbita-tantalita (coltan), mineral estratégico amplamente utilizado na fabricação de aparelhos eletrônicos que gera uma série de disputas armadas pelo controle das áreas de mineração. Por causa dessa conjuntura militar travada entre exército e milícias, as mulheres são as maiores vítimas, pois ficam ainda mais expostas aos atos de violência, como estupros.

O principal instrumento utilizado pelos milicianos para humilhar, intimidar e punir a comunidade congolesa é o estupro das mulheres, que destroem os laços familiares, tendo em vista que muitas vezes a agressão sexual é praticada em frente a toda a família. É importante ressaltar que mulheres vítimas de abuso são posteriormente rejeitadas por seus maridos e suas famílias, o que as deixam em uma situação de ainda mais vulnerabilidade.

Para mais, estupro utilizado como arma de guerra não ficou restrito somente à República Democrática do Congo, sendo considerado como uma prática comum em situações belicosas, por exemplo durante a invasão japonesa à China, guerras civis em Ruanda, Segunda Guerra Mundial, entre outros (MOORE, 2010). Além disso, Malcolm Potts e Thomas Hayden (2008), através de estudos históricos, foram capazes de evidenciar que a relação entre o estupro e as guerras ocorre desde as estruturas sociais mais primitivas.

Até pouco tempo atrás, não havia julgamentos acerca das violências sexuais cometidas em contextos de conflito armado. A criminalização do estupro pelo Direito Internacional é algo recente e de extrema importância para acabar com a noção de impunidade que se instalou, além de que:

“[…] possui potencial persuasivo no sentido de sinalizar a comandantes militares e autoridades políticas que os mesmos estão obrigados a empreender medidas concretas para prevenir que aqueles sob seu comando cometam atos hediondos, sob pena de serem chamados a responder penal e internacionalmente por eles.” (QUEIROZ, 2016)

No entanto, é errôneo considerar que o estupro seja usado somente como uma estratégia militar na RDC, já que ele também é praticado por civis, ou seja, ocorre durante períodos de paz, e pelo próprio exército congolês. Desse modo, é importante considerar outras razões. Em diversas ocasiões, o homem que pratica violência sexual é descrito como um monstro, fator que o distancia da realidade e faz com que o estupro deixe de ser reflexo de uma sociedade de gêneros desiguais – e, por consequência, de um problema social – para ser da esfera do irreal (SOUSA, 2015). Assim, ignora-se a real causa do problema e, consequentemente, afasta-se da busca para uma solução efetiva.

O patriarcado assegura uma posição de superioridade dos homens em relação às mulheres, como forma de justificar dominação daqueles sobre estas e, consequentemente, o estupro. Ademais, o discurso patriarcal estabelece papéis sociais de gêneros feminino e masculino, em que o primeiro é relacionado à submissão, fragilidade e objeto de satisfação sexual masculina, ao passo que o segundo é associado à dominação, virilidade, força e potência sexual. Posto isso, o patriarcado induz tanto homens quanto mulheres a adotarem certos tipos de comportamento, além de moldar a relação entre eles, repreendendo-os socialmente quando não atendem a tais padrões . Portanto, analisando especialmente as exigências de masculinidade, frequentemente tóxica e violenta, que são impostas aos homens, é possível compreender que o estupro é um produto da sociedade patriarcal e está, por consequência, fadado a ocorrer enquanto esse padrão social estiver presente.

Em situações de conflito e/ou pobreza, como as presenciadas na RDC, a masculinidade tóxica e suas consequências estão ainda mais presentes, uma vez que o contexto bélico faz com que diversas normas e regras da sociedade sejam ignoradas ou temporariamente suspensas, refletindo muitas vezes na materialização de sentimentos de raiva e de frustração que são gerados pela pobreza, pela violência e pelo desgoverno, num verdadeiro ciclo vicioso. Dessa forma, somando esses fatores conjunturais com a legitimação do uso da força como forma de expressar a masculinidade, os homens tendem ainda mais a reproduzir a violência nessas situações, como o estupro (BAAZ; STERN, 2010). Esse conjunto de motivos contribui para que os valores morais, sociais e culturais da população fiquem ainda mais corrompidos.

Todavia, é importante ressaltar que nem a pobreza ou o conflito são as razões da violência sexual, mas sim o ideal de masculinidade proposto pelo patriarcado, que dita os comportamentos do homem naquela sociedade, principalmente em relação às mulheres (BAAZ; STERN, 2010).

De maneira análoga, o mesmo se aplica no que diz respeito ao estupro como arma de guerra – por reforçar a ideia da superioridade do homem em relação à mulher, na medida em que ele se considera no direito de violá-la – produto do modelo de socialização que é estabelecido. A ideia de estuprar também está intimamente ligada à desestabilização e à desmoralização do inimigo; como a mulher é vista como posse de seu marido, a violência sexual acaba sendo uma forma de reforçar a supremacia militar sobre o adversário, que foi desmontado e desarticulado pelo estupro da mulher, em que esta passa a ser vista de forma pejorativa.

“A psicologia por traz disso é a seguinte: se você mata alguém no campo de batalha, o transforma em herói. E a honra que vem disso faz seus concidadãos mais fortes. Mas o estupro só traz humilhação. Você não acaba com vidas, destrói a alma de uma sociedade.  (HAYDEN apud QUEIROZ, 2011)”

Outrossim, é necessário evidenciar a importância que as instituições possuem como uma das formas de remediar situações desse tipo, tal como a governamental, posto que possui poder de elaboração e aplicação de leis; e a educacional, para ajudar na desconstrução das noções vigentes de desempenho de papéis distintos de acordo com os diferentes gêneros. Contudo, essas e outras instituições estão fragilizadas na RDC, por consequência das leis referentes às agressões sexuais serem brandas (ANDRADE; MARTINS; OLIVEIRA, 2019) e do ideal tradicional de masculinidade continuar presente e fortemente disseminado entre os congoleses.

Como dito anteriormente, as instituições internacionais também desempenham um importante papel, dentre elas encontra-se o Tribunal Penal Internacional (TPI), que já reconheceu e condenou o estupro como crime de guerra e contribuiu para a punição de líderes que são coniventes com crimes de violência sexual, como no caso do ex-vice-presidente da RDC,[V4]  Jean-Pierre Bemba Gombo (QUEIROZ, 2016). Do mesmo modo, a Organização das Nações Unidas (ONU) implementou uma missão de paz na RDC, intitulada Missão de Estabilização das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUSCO), que visa a proteção de civis, a manutenção da paz, a defesa dos Direitos Humanos, dentre outros. Porém, em razão de se tratar de um problema que já atingiu proporções estruturais dentro do país, ainda há muito a ser feito.

É importante destacar que o Estado congolês, atualmente, é incapaz de solucionar unilateralmente o problema, haja vista que é considerado um Estado falido pela Fund for Peace (2019). De acordo com essa instituição, um Estado é considerado falido quando não consegue prover bens públicos – como saúde, educação e segurança – para a população e tampouco controlar seu território, situação em que o governo nacional perde o monopólio do uso legítimo da força, segundo a definição proposta por Max Weber. Logo, a ajuda internacional, como a promovida pela MONUSCO, é fundamental para a reestruturação do país através de operações de peacemaking, peacekeeping e peacebuilding, que visam atingir tanto a paz de curto prazo quanto a de longo prazo.

Em suma, é possível observar que o estupro tem ocorrido de modo sistemático na República Democrática do Congo e possui como pano de fundo aspectos histórico-sociais, econômicos, políticos, educacionais e estruturais. Além disso, fica evidente que separar a violência sexual do ideal de masculinidade é ignorar a raiz do problema e contribuir para a sua perpetuação.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Bruno; MARTINS, Joice; OLIVEIRA, Thais. Omissão do Estado favorece estupros em massa no Congo, dizem especialistas. Olhares no Mundo, São Paulo, 21 nov. 2019. Disponível em: https://olharesdomundo.wordpress.com/2019/11/21/omissao-do-estado-favorece-estupros-em-massa-no-congo-dizem-especialistas/. Acesso em: 01 nov. 2020.

BAAZ, Maria Eriksson; STERN, Maria. The Complexity of Violence: A critical analysis of sexual violence in the Democratic Republic of Congo (DRC). Sida, Suécia, maio 2010. Disponível em: https://www.diva-portal.org/smash/get/diva2:319527/FULLTEXT02. Acesso em: 01 nov. 2020.

BREDENKAMP, Caryn; PALERMO, Tia; PETERMAN, Amber. Estimates and Determinants of Sexual Violence Against Women in the Democratic Republic of Congo. American Journal of Public Health, 30 ago. 2011. Disponível em: https://ajph.aphapublications.org/doi/10.2105/AJPH.2010.300070. Acesso em: 31 out. 2020.

FUND FOR PEACE. Fragile States Index 2019. Washington D.C.: The Fund for Peace, 10 abr. 2019. Disponível em: https://fundforpeace.org/2019/04/10/fragile-states-index-2019/. Acesso em: 10 jun. 2021.

MACEDO, Marcelle Christine Bessa de. A Exploração de Coltan e os Conflitos no Leste da República Democrática do Congo. Revista Neiba, Cadernos Argentina Brasil; Rio de Janeiro, v. 5. 2016. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/neiba/article/view/28072#:~:text=Este%20trabalho%20tem%20por%20objetivo,os%20grupos%20armados%20da%20regi%C3%A3o. Acesso em: 31 out. 2020.

 MOORE, Jina. Confronting Rape as a War Crime. CQ Global Researcher, v. 4, p. 105-130, 01 maio. 2010. Disponível em: https://library.cqpress.com/cqresearcher/document.php?id=cqrglobal2010050000. Acesso em: 31 out. 2020.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. United Nations Organization Stabilization Mission in the DR Congo, MONUSCO. Disponível em: https://monusco.unmissions.org/en/mandate. Acesso em: 05 nov. 2020.

POTTS, Malcolm; HAYDEN, Thomas. Sex and War: How Biology Explains Warfare and Terrorism and Offers a Path to a Safer World. Dallas, TX: Benbella, 2008.

QUEIROZ, Nana. A íntima história do estupro e da guerra. Veja, São Paulo, 30 abr. 2011. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/a-intima-historia-do-estupro-e-da-guerra/. Acesso em: 10 jun. 2021.

QUEIROZ, Vanessa Oliveira de. TPI reconhece e condena o estupro como crime de guerra. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 04 abr. 2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-abr-04/vanessa-queiroz-tpi-reconhece-estupro-crime-guerra#author. Acesso em: 31 out. 2020. SOUSA, Sávia Lorena Barreto Carvalho de. Porque a mídia não deve chamar estupradores de monstros. Observatório da Imprensa, São Paulo, 855. ed. 16 jun. 2015. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/educacao-e-cidadania/caderno-da-cidadania/por-que-a-midia-nao-deve-nao-chamar-estupradores-de-monstros/. Acesso em: 31 out. 2020.

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