Christiano Simões de Oliveira Filho
Introdução
A morte do rei Zulu em março de 2021 após 50 anos no trono iniciou uma disputa pela sucessão em meio à comunidade étnica mais expressiva da África do Sul. A família real zulu exerce papel na legitimação de políticas nacionais e recebe quase 4 milhões de euros anuais do governo sul-africano (MISUZULU, 2021). A disputa monárquica chama atenção pela mobilização de narrativas para acesso ao poder e para construção da solidariedade étnica.
A etnia Zulu no histórico sul-africano
A compreensão de eventos políticos a partir de questões étnicas deve considerar o que é identidade: abstração materialmente representada cujo significado origina de, reconhece-se por e é reconhecida por elementos históricos e geográficos atrelados a narrativas reais ou imaginadas (HOBSBAWN; RANGER, 1997). Partindo disso, uma comunidade étnica é uma “nomeada população humana que compartilha um mito de ancestralidade comum, memórias e aspectos culturais; um vínculo com um território histórico ou uma terra natal; e uma medida de solidariedade”[1] (SMITH apud BROWN, 2001, p. 210, tradução nossa). As comunidades étnicas são famílias estendidas reconhecidas por afinidades culturais, costumes, hábitos de comida e vestuário e elementos linguísticos, estando simultaneamente em construção e em naturalização, por narrativas e associações a territórios, servindo de base a nações. (SMITH, 2009)
A durabilidade de grupos étnicos é definida pela forma com que suas elites mobilizam seus mecanismos simbólicos formadores, ou seja, pela forma com que comunicam os símbolos e estruturas narrativas comuns, nas quais muitos símbolos são legitimados e representados. As comunidades étnicas são definidas e ganham representação nacional não só a partir de grupos dominantes e elites, mas pela interação entre todos os seus estratos sociais e pela influência mútua de seus ideais e interesses na construção de identidades e ideologias. (SMITH, 2009)
O presente trabalho analisa essas categorias na África do Sul, ex-colônia do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte onde se deu o regime de segregação racial nomeado Apartheid a partir da vitória eleitoral do Partido Nacional em 1948. O regime concebia a multinacionalidade sul-africana e autorizava a constituição de Homelands (Estados autônomos) frente à prevalência política da minoria branca. Era um aval para os pretos decidirem à sua própria sorte suas realidades políticas sem alterarem privilégios brancos. (MAÚNGUE, 2012)
Nesse contexto, foi criado em 1970 o governo regional da Zululandia, que foi renomeado KwaZulu e ao qual foi conferido o estatuto de governo autônomo. Sua localização é ao leste do território sul-africano, onde houve crescente disseminação da língua e dos nomes de origem Zulu após a oficialização do governo autônomo. Os zulus são o maior grupo étnico do país atualmente, com mais de 11 milhões de pessoas. (KLOPPERS, 2003; FIBLA, 2021)

O reinado Zulu, seguindo Smith (2009), é um núcleo étnico centrado em um território político e propagador de memórias históricas, símbolos e elementos culturais. Hoje, o reinado exerce papel cerimonial e de apoio a políticas nacionais sul-africanas (FIBLA, 2021). Seu mito ancestral tem início com Shaka, nascido profeticamente como originador de uma nova ordem e associado à imagem de construtor de nações e de gênio militar africano. Shaka nasceu em 1787 como filho do rei Senzangakhona, que renegou Shaka e sua mãe, Nandi. Teve sua história de guerreiro iniciada no exército de Mthethwa, onde se tornou comandante e promoveu alterações nas formas de combate em direção ao aumento da proximidade com os inimigos, tornando-se amplamente conhecido e temido. (SHAMASE, 2014; KHUMALO, 2020;)
Quando seu pai faleceu, Shaka retornou à sua terra natal com o rei de Mthethwa e matou seu meio-irmão para garantir seu lugar no trono, o qual assumiu como rei em 1816. Shaka uniu o povo Mthethwa e os clãs já dominados por Mthetwa com o reino Zulu, original de seu pai, e deu início a um longo processo de conquistas de outros clãs. Todo esse movimento guerreiro e conquistador ocorreu sob o nome Zulu e trouxe à Shaka a visão de construtor de nações, confirmando a profecia de uma nova ordem. Essa visão ainda é presente na nação Zulu, com Shaka sendo considerado seu ponto de união e recebendo homenagem dos reis e do povo zulu até os dias de hoje. Até partidos se identificam com o rei Shaka, como o Partido da Liberdade Inkatha que domina a província de Kwazulu-Natal. (SHAMASE, 2014; KHUMALO, 2020)
A comunidade étnica Zulu representada monarquicamente se torna objeto do presente trabalho na relação com os conflitos internos e regionais resultantes da morte do rei Zwelithini e da morte da rainha Dlamini Zulu em março e abril de 2021, respectivamente. Vendo o Zulu como reino simbólico, suas tradições monárquicas e seus rituais de sucessão são centrais à continuação da representação política da comunidade Zulu com seus mitos e narrativas.
A sucessão do trono em 2021
O rei zulu Zwelithini faleceu no dia 12 de março de 2021 por complicações relacionadas a diabetes, deixando seis esposas e mais de vinte filhos. Zwelithini uniu simbolicamente por meio século os mais de 11 milhões de zulus, o que configura um quinto da população e o maior grupo étnico da África do Sul, demonstrando a grande influência do reinado. A família real entrou em um luto de três meses em meio à indefinição da sucessão e a especulações de que o sucessor seria o Príncipe Misuzulu. Sua mãe, Mantfombi Dlamini Zulu, terceira esposa do falecido rei, foi eleita regente após discussão de testamento por advogados de Zwelithini com cerca de 200 membros da família real. Nesse meio, a nação zulu foi surpreendida com a morte da regente Mantfombi em 29 de abril, sem divulgação da causa (AFP, 2021a; A MORTE, 2021)
A morte de Mantfombi Dlamini levantou rumores de envenenamento, o que foi negado pelo primeiro-ministro Mangosuthu Buthelezi já no anúncio de sua morte e pela princesa Thembi em 02 de maio, quando disse que “as pessoas pensam que somos assassinos”. Buthelezi foi fundamental na transição democrática sul-africana e é, além de príncipe zulu, fundador do Partido da Liberdade Inkatha, celebrador histórico do mito de Shaka. Mantfombi teria sido eleita regente por ser a única rainha com sangue real por seu laço fraternal com o rei Mswati III de Eswatini. Após a morte da regente, a sucessão por Misuzulu foi posta em xeque: as filhas de primeiro casamento questionaram a veracidade dos documentos atribuídos a Zwelithini e a primeira esposa, Sibongile, reivindicou à Suprema Corte de Pietermaritzburg 50% do patrimônio real e reconhecimento exclusivo como a única esposa legal de Zwelithini, considerando a perda de seu filho mais velho no final de 2020. (MORTE, 2021; FIBLA, 2021)
A conjuntura se tornou de questionamento sobre a sucessão Zulu, materializada pela disputa pública pela sucessão entre a princesa Thembi e o príncipe Mbonisi e o primeiro-ministro, que questiona a hereditariedade dos irmãos e os acusa de construírem sua imagem como autor dos rumores de envenenamento. Observa-se que, segundo Smith (2009), conflitos internos a comunidades étnicas ganham projeção a partir das relações recíprocas das elites com seus outros estratos e mudanças internas podem ocorrer pela acomodação de crenças novas com as historicamente construídas. É a propagação de visões e valores por elites e representantes que pode fortalecer ou enfraquecer responsabilidades e sentimentos de união e que está em cena para os zulus. Visualiza-se disputas por poder, influência e reconhecimento real no maior grupo étnico da África do Sul, conhecido por narrativas de conquista. (SMITH, 2009; MORTE, 2021)
Maxwell Shamase, historiador pela Universidade de Zululândia, afirma que a balança na disputa pela sucessão Zulu pendia entre Misuzulu, filho da regente falecida, e Phumuzuzulu, filho da segunda esposa de Zwelithini. Misuzulu estudou Relações Internacionais nos Estados Unidos da América e tem uma visão política mais moderna, além de seu sangue real que o legitima e continua a crença no mito de ancestralidade comum. (FIBLA, 2021)
A sucessão do trono Zulu foi resolvida em 08 de maio com o anúncio do primeiro-ministro Buthelezi de que, confirmando as primeiras especulações e a previsão de Maxwell Shamase, Misuzulu foi nomeado o novo rei. Buthelezi afirmou que “no que concerne à família e ao povo Zulu, o rei já está no trono”, seguindo o testamento da falecida regente Mantfombi e o juramento de lealdade da família real a Misuzulu após reunião convocada pela rainha Mayvis MaZungu, matriarca sênior zulu, em Kwanongoma. (AFP, 2021b; MISUZULU, 2021)
Considerações finais
A disputa pelo trono Zulu iniciada após a morte do rei Zwelithini em março e seguida pela morte de sua terceira esposa Mantfombi, a então rainha regente, ascendeu um conflito interno à maior comunidade étnica e nação sul-africana. Os eventos expõem a proximidade da realeza com as elites da província KwaZulu-Natal e a mobilização de símbolos, rituais, mitos ancestrais e fatos históricos na legitimação de um novo rei, agora Misuzulu, de sangue real.
Referências
AFP. Morreu rainha Shiyiwe Mantfombi Dlamini Zulu, regente e viúva do rei Zulu na África do Sul. Deutsche Welle. [S.l.], 29 abr. 2021a. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-002/morreu-rainha-shiyiwe-mantfombi-dlamini-zulu-regente-e-vi%C3%BAva-do-rei-zulu-na-%C3%A1frica-do-sul/a-57382840>. Acesso em: 02 jun. 2021.
AFP. Príncipe Misuzulu Zulu, novo rei dos zulus na África do Sul. Estado de Minas. Internacional. [S.l.], 08 maio 2021b. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2021/05/08/interna_internacional,1264674/principe-misuzulu-zulu-novo-rei-dos-zulus-na-africa-do-sul.shtml>. Acesso em: 02 jun. 2021.
A MORTE repentina da Rainha Zulu, um mês após ser nomeada regente. BBC News. Internacional. [S.l.], 30 abr. 2021. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-56951364>. Acesso em: 02 jun. 2021.
BROWN, Michael E.. Ethnic and internal conflicts: causes and implications. In: CROCKER, Chester A.; HAMPSON, Fen Osler; AALL, Pamela R.. Turbulent Peace: the challenges of managing international conflict. Washington: USIP Press Books, 2001. Cap. 13, p. 209-226.
FIBLA, Carla. A dura batalha pela sucessão no trono zulu. El País. Internacional. Pretória, 07 maio 2021. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/internacional/2021-05-07/a-dura-batalha-pela-sucessao-no-trono-zulu.html>. Acesso em: 02 jun. 2021.
HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Tradução de Celina Cardim Cavalcante. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
KHUMALO, Thuso. Shaka Zulu: Pai fundador da nação zulu. Deutsche Welle. História da África. [S.l.], 30 jun. 2020. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-002/shaka-zulu-pai-fundador-da-na%C3%A7%C3%A3o-zulu/a-53691856#:~:text=MS%3A%20Shaka%20Zulu%20era%20filho,incha%C3%A7o%20nos%20corpos%20das%20mulheres.>. Acesso em: 02 jun. 2021.
KLOPPERS, Roelie J.. The history and the representation of the History of the
Maputu-Tembe. 2003. 119 f. Dissertação (mestrado) – Programa de Pós-graduação em História, University of Stellenbosch, Stellenbosch, 2003.
MAÚNGUE, Sérgio Armando. Território vivido e o mapa colonial: migração, colonialismo e identidades no sul da baía de Maputo. 2012. 121 f. Dissertação (mestrado) – Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos, Faculdade de Filosofia e
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MISUZULU, o novo rei dos zulus já está no trono. Diário de Notícias. Internacional. [S.l.], 08 maio 2021. Disponível em: <https://www.dn.pt/internacional/filho-mais-velho-do-rei-zulu-nomeado-herdeiro-mas-nao-e-pacifico-13699066.html#:~:text=O%20at%C3%A9%20agora%20pr%C3%ADncipe%20Misuzulu,morreu%20em%20finais%20de%20abril.>. Acesso em: 02 jun. 2021.
MORTE da Rainha Zulu: ‘Pensam que somos assassinos’, diz princesa sul-africana. BBC News. Internacional. [S.l.], 05 maio 2021. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-56976086>. Acesso em: 02 jun. 2021.
SHAMASE, Maxwell. The royal women of the Zulu monarchy through the keyhole of oral history: Queens Nandi (c. 1764 – c.1827) and Monase (c. 1797 – 1880). Inkanyiso: Journal of Humanities and Social Sciences. Richards Bay, v. 6, jul. 2014.
SMITH, Anthony D.. Ethno-symbolism and nationalism: a cultural approach. Abingdon: Routledge, 2009.
[1] a named human population with a myth of common ancestry, shared memories, and cultural elements; a link with a historic territory or homeland; and a measure of solidarity.