Texto Conjuntural África Austral #21 – A atividade terrorista do grupo Ansar al-Sunna e seus impactos na situação de insegurança alimentar em Moçambique

Por Letícia Sanches Rezende

Em 2016, o presidente moçambicano Filipe Nyusi, durante a cerimônia que marcava o início da campanha agrícola de Moçambique, declarou: “Moçambique continua a ser assolado por ciclos de cheias e secas que nas últimas campanhas, os efeitos do El Niño dizimaram campos de culturas, agravando assim os níveis de insegurança alimentar que afetam mais de um milhão e meio de moçambicanos” (FAO, 2016). Cinco anos depois, o número de moçambicanos afetados pela fome quase dobrou: em março de 2021, foi registrado pelo Programa Alimentar Mundial (PAM) que 2.9 milhões de pessoas estavam em situação aguda de insegurança alimentar no país (PAM, s.d.). Durante as principais causas levantadas pelo WFP para tal aumento estão a pandemia de Covid-19, seca e conflitos no país. Nesse sentido, se faz necessário compreender as ações do Ansar al-Sunna que impactaram o contexto de insegurança alimentar em Moçambique.

Os conflitos em questão se referem aos ataques armados que a província de Cabo Delgado, localizada no nordeste de Moçambique, vem sofrendo desde outubro de 2017 (MATIAS, 2021). Tais ataques são atribuídos a grupos extremistas islâmicos, em particular ao grupo Ansar al-Sunnah – também conhecido como Ahlu Sunna Wa-Jama e chamado pela população local de al-Shabaab em referência ao grupo somali de mesmo nome (WEST, 2018) –, cuja atuação data de 2014 e se inspira nos ensinamentos radicais do pregador Abdul Shakur e do imã queniano Aboud Rogo Mohammed (MANGENA, PHERUDI, 2020). Originalmente baseado na Tanzânia, o Ansar Al-Sunnah se moveu em 2017 para a província de Cabo Delgado, possivelmente escolhida pelo grupo devido à grande população muçulmana local, altos índices de desemprego entre os jovens e baixos índices de desenvolvimento econômico (MANGENA, PHERUDI, 2020). O grupo é classificado como terrorista pelas autoridades moçambicanas e internacionais (MATIAS, 2021).

Nos anos iniciais de sua atuação, em torno de 2017 e 2018, o Ansar Al-Sunna atacou principalmente instalações de segurança, na busca de armas de fogo, granadas e uniformes militares para ampliar e aprimorar seu arsenal, que consistia em armas brancas, sobretudo facões, e alguns poucos revólveres (MANGENA, PHERUDI, 2020). Durante esse período, os ataques eram limitados à poucas áreas; primeiramente, em outubro de 2017, o grupo focou seus ataques na vila de Mocímboa da Praia, já em 2018, outras cinco áreas na província de Cabo Delgado foram alvos, nomeadamente Macomia, Mitumba, Nangade, Palma e Quissanga. A destruição de casas, assassinato de civis e saques em busca de suprimentos eram práticas constantes do Ansar al-Sunna nessa época. Por meio dessas operações, o grupo conseguiu aterrorizar a população, obter provisões e avançar o seu recrutamento, criando meios para a expansão de suas atividades em 2019 (BUKARTI, MUNASINGHE, 2020).

No início de 2019, os locais dos ataques do Ansar al-Sunna haviam aumentado de seis localidades para nove, somando Ancuabe, Ibo e Meluco às cidades previamente mencionadas. As práticas de violência passaram a integrar também a destruição de lotes agrícolas e táticas mais violentas contra civis (BUKARTI, MUNASINGHE, 2020). Em março de 2019, foram utilizados pela primeira vez explosivos caseiros nos ataques e operações coordenadas durante o dia, em oposição aos ataques estritamente noturnos e em residências isoladas, o que sugere uma evolução das táticas do grupo. Além disso, esse ano também apresentou os primeiros atentados contra estrangeiros trabalhando com empresas exploradoras de gás na província de Cabo Delgado (MANGENA, PHERUDI, 2020).

Entre janeiro e abril de 2020, foi registrada uma média de 20 ataques do Ansar al-Sunna em Cabo Delgado por mês (BUKARTI, MUNASINGHE, 2020). Nesse período, o grupo controlava as cidades de Mocímboa da Praia, Namawanda e Quissanga (BUKARTI, MUNASINGHE, 2020); em março de 2021 a cidade de Palma também foi tomada (MACHADO, 2021). Foram causadas mais de 2500 fatalidades por causa do conflito, de acordo com dados de fevereiro de 2021 (SEABRA, 2021) e aproximadamente 732 mil deslocados internos, segundo dados de abril de 2021 (ENUCAH, 2021). Os relatos de violência incluem assassinato de civis, decapitações, sequestros, casas incendiadas, violência sexual, saques, destruição de escolas e hospitais, entre outros (MANGENA, PHERUDI, 2020; MACHADO, 2021; ONU, 2021).

Figura 1 – Localização das Atividades do Ansar al-Sunna no período de 2017-2018

Fonte: BUKARTI, MUNASINGHE (2020, p. 6)

Figura 2 – Localização das Atividades do Ansal al-Sunna no período de 2019-2020

Fonte: BUKARTI, MUNASINGHE (2020, p. 6)

A violência em Cabo Delgado resultou na destruição do modo de vida de seus habitantes. Diversas vilas da região foram abandonadas por seus moradores, deixando para trás plantações e criações de gado. Desde o início dos ataques, em 2017, mais de 80 mil famílias tiveram que deixar para trás suas atividades de agricultura, causando impactos graves na economia provincial (ALL AFRICA, 2021). É estimada uma redução de 30% na produção agrícola de Cabo Delgado durante a estação agrícola de 2020/2021 se comparado com a campanha de 2019/2020. A cadeia logística para a distribuição de alimentos também foi severamente prejudicada pela violência causada pelo Ansar al-Sunna (FAO, 2021a).

No entanto, é relevante apontar que a situação de insegurança alimentar em Moçambique não está sendo causada somente pelas ações do Ansar al-Sunna. A pandemia de Covid-19 causou o aumento do desemprego e a diminuição da renda das famílias no país, além da inflação nos preços dos alimentos e a dificuldade dos pequenos agricultores e pecuaristas em terem acesso aos recursos necessários para a continuidade de sua produção agrícola, tais como sementes, consultas veterinárias, ração e financiamento (FAO, 2021b). Desastres naturais também impactaram a situação de insegurança alimentar em Moçambique: depois de um período de seca, o país foi atingido por dois ciclones, o ciclone Idai e Kenneth, considerados os ciclones mais destrutivos registrados na região (MUGABE et al., 2021). Sendo assim, o país já se encontrava em uma situação de fragilidade durante a expansão dos ataques do Ansar al-Sunna, e antes da pandemia de Covid-19. Em janeiro de 2021, o ciclone Eloise assolou Moçambique e outros países no sul do continente africano, causando enchentes, agravando a situação dos migrantes internos do país e dificultando ainda mais a produção agrícola, a cadeia de distribuição de alimentos e o acesso a serviços básicos (PILLAY, RUMNEY, 2021).

Todos esses fatores combinados levaram Moçambique a figurar como um país em situação de desnutrição aguda de acordo com a Classificação Integrada da Fase de Segurança Alimentar (IPC). A desnutrição aguda ocorre quando

[…] um indivíduo sofre de corrente, severa restrições nutricionais, um surto recente de doença, práticas inadequadas de cuidados infantis ou, mais frequentemente, um combinação desses fatores. É caracterizada por extrema perda de peso, resultando em baixo peso para a altura, e/ou edema bilateral, e, em sua forma grave, pode levar à morte. (IPC, 2016, p. 1, tradução nossa).[1]

Das dezesseis áreas da província de Cabo Delgado, a mais afetada pelos ataques do Ansar al-Sunna, metade foram classificadas pelo IPC como em situação alerta de desnutrição aguda; tal situação descreve uma fase na escala de desnutrição aguda na qual “os agregados familiares têm um consumo alimentar mínimo adequado mas não dispõem de meios para responder a algumas despesas essenciais não alimentares sem recorrer a estratégias de resposta à situação de Estresse”;  quatro em situação aceitável, significando que “os agregados familiares conseguem satisfazer as necessidades essenciais alimentares e não-alimentares sem recorrer a estratégias atípicas e insustentáveis para acederem a alimentos e rendimento”; e quatro áreas não foram analisadas (FEWS NET, s.d.).

Figura 3 – Desnutrição aguda em Cabo Delgado no período de fevereiro a março de 2021

Fonte: IPC (2021, p.1)

No entanto, o IPC projetou que, no período de outubro de 2021 a janeiro de 2022 a situação de desnutrição aguda se deterioraria a um nível na qual três unidades de análise se encontrariam em classificação crítica, na qual

Os agregados familiares enquadram-se numa das seguintes situações: passam períodos longos de falta de consumo de alimentos demonstrados por uma desnutrição aguda muito elevada e excesso de mortalidade; ou têm capacidade para minimizar os períodos de falta de consumo alimentar, mas apenas por meio de estratégias de subsistência de emergência e liquidação dos bens. (FEWS NET, s.d.)

Figura 4 – Situação projetada de desnutrição aguda em Cabo Delgado no período de outubro de 2021 a janeiro de 2022

Fonte: IPC (2021, p.4)

Nesse contexto, para atenuar a situação de insegurança alimentar em Moçambique, as recomendações do IPC (2021b) incluem garantir acesso prioritário a tratamento médico para todas as crianças que estão sofrendo ou em risco de sofrer desnutrição; prover assistência humanitária – incluindo as áreas de alimentação, água, saneamento, saúde e nutrição – especialmente na área de Palma; continuar o monitoramento da situação de desnutrição aguda no país; continuar o suporte humanitário prioritário para centros de reassentamento dos migrantes forçados e das famílias anfitriãs e criar condições para o provimento de serviços básicos nessas comunidades. Enquanto isso, a FAO vem realizando um trabalho de distribuição de comida e transferências de dinheiro e vouchers para refugiados, trabalhando em conjunto com o Ministério da Saúde de Moçambique e o Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas (UNICEF) para realizar respostas de emergência (FAO, s.d.).

Quanto ao Ansar al-Sunna, a Southern Africa Development Community (SADC) vem sendo a principal aliada do governo de Moçambique no combate ao grupo terrorista. Em 15 de julho de 2021, a SADC lançou uma missão, aprovada por Maputo, que incluiu reconquistar vilarejos ocupados pelo grupo, desalojar terroristas de suas bases e confiscar armas dos integrantes do Ansar al-Sunna (SADC, 2021). A missão do SADC está contribuindo para criar um ambiente mais seguro para a realização de missões humanitárias e para o retorno das atividades agriculturais e pecuárias da região. Em conjunto, as ações da FAO, do SADC e as recomendações do IPC estão lentamente levando Cabo Delgado em direção a uma situação na qual será possível a estabilidade alimentar da região, retirando Moçambique da lista dos países em situação de desnutrição aguda.

Referências:

BUKARTI, Bulama; MUNASINGHE, Sandun. The Mozambique Conflict and Deteriorating Security Situation. [S.l.], jun. 2020. Disponível em: https://institute.global/policy/mozambique-conflict-and-deteriorating-security-situation. Acesso em: 5 nov. 2021.

CLASSIFICAÇÃO Integrada de Fases. InFEWS NET: Famine Early Warning Systems Network. [S. l.], [s.d.]. Disponível em: https://fews.net/pt/sectors-topics/approach/integrated-phase-classification. Acesso em: 29 nov. 2021.’

FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. Communities host displaced people and share farmland to fight hunger in Cabo Delgado. [S.l.], 29 mar. 2021a. Disponível em: https://www.fao.org/resilience/news-events/detail/en/c/1391892/. Acesso em: 19 nov. 2021.

FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. Mozambique. [S.l.],[s.d.]. Disponível em: https://www.wfp.org/countries/mozambique. Acesso em: 30 nov. 2021.

FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. MOZAMBIQUE: Agricultural livelihoods and food security in the context of COVID-19. Roma, ago. 2021b. Disponível em: https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/cb6521en.pdf. Acesso em: 20 nov. 2021.

FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. FAO participa no lançamento da Campanha Agrícola 2016/17 em Moçambique. [S. l.], 28 out. 2016. Disponível em: https://www.fao.org/mozambique/news/detail/pt/c/452224/. Acesso em: 31 out. 2021.

IPC – Classificação Integrada da Fase de Segurança Alimentar. IPC for Acute Malnutrition: Concepts, Tools, and Procedures to be used to Classify Areas based on Acute Malnutrition. Roma, 24 jun. 2016. Disponível em: https://www.nutritioncluster.net/sites/nutritioncluster.com/files/2020-03/IPC-for-Acute-Malnutriton-Concepts-and-Tools-Cleared-by-TAG-and-Endorsed-by-SC.pdf. Acesso em: 29 nov. 2021.

IPC – Classificação Integrada da Fase de Segurança Alimentar. Moçambique, Cabo Delgado: situação da desnutrição aguda na província de Cabo Delgado. [S.l.],jun. 2021a. Disponível em: https://www.ipcinfo.org/fileadmin/user_upload/ipcinfo/docs/IPC_Mozambique_Acute_Malnutrition_2021Feb2022Jan_Report_Portuguese.pdf. Acesso em: 29 nov. 2021.

IPC – Classificação Integrada da Fase de Segurança Alimentar. Mozambique: Acute Food Insecurity Situation February – March 2021 and Projections for April – September 2021 and October 2021 – February 2022. [S.l.], 1 fev. 2021b. Disponível em: https://www.ipcinfo.org/ipc-country-analysis/details-map/en/c/1154889/?iso3=MOZ. Acesso em: 30 nov. 2021.

MACHADO, Zenaida. Forças Regionais Devem Dar Prioridade à Proteção Civil. Human Rights Watch, [s. l.], p. 1, 30 jun. 2021. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/news/2021/06/30/379064. Acesso em: 5 nov. 2021.

MANGENA, Blessed; PHERUDI, Mokete. Disentangling violent extremism in Cabo Delgado province, northern Mozambique: challenges and prospects. In: BUCHANAN-CLARKE, Stephen et al, (ed.). Extremisms in Africa. [S. l.]: Bookstorm, 2020. v. 3, cap. 15, p. 348-365. ISBN 0620876689.)

MATIAS, Achegar Tiodósio. O impacto do conflito armado sobre o sector da educação no norte e centro de Cabo Delgado. Revista Debates Insubmissos, Caruaru (PE), ano 4, v. 4, n. 13, mai/ago 2021. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/debatesinsubmissos/article/viewFile/249743/39364. Acesso em: 2 nov. 2021.

MOZAMBIQUE: Food Insecurity Looms in Cabo Delgado. All Africa, Pemba, 15 jan. 2021. Disponível em: https://allafrica.com/stories/202101180134.html. Acesso em: 7 nov. 2021.

ONU – Organização das Nações unidas. Famílias em Moçambique abrigam deslocados pela violência em Cabo Delgado. [S.l.], 1 abr. 2021. Disponível em: http://news.un.org.974849555.proxy.jingzhou.gov.cn/pt/story/2021/04/1746482?proxy=https_. Acesso em: 5 nov. 2021.

PAM – Programa Alimentar Mundial. Mozambique. [S.l.], [s.d.]. Disponível em: https://www.wfp.org/countries/mozambique. Acesso em: 31 out. 2021.

PILLAY, Kirthana; RUMNEY, Emma. Thirteen dead, thousands homeless in southern Africa after storm Eloise. Reuters, Joanesburgo, 25 jan. 2021. Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-africa-eloise/thirteen-dead-thousands-homeless-in-southern-africa-after-storm-eloise-idUSKBN29U1MH?il=0. Acesso em: 21 nov. 2021.

SADC – Southern Africa Development Community. SADC Mission in Mozambique (SAMIM) in Brief. [S.l.], 10 nov. 2021. Disponível em: https://www.sadc.int/news-events/news/sadc-mission-mozambique-samim-brief/. Acesso em: 30 nov. 2021.

WEST, Sunguta. Ansar al-Sunna: A New Militant Islamist Group Emerges in Mozambique. Terrorism Monitor, [s. l.], v. 16, n. 12, p. 5-7, 14 jun. 2018. Disponível em: https://jamestown.org/program/ansar-al-sunna-a-new-militant-islamist-group-emerges-in-mozambique/. Acesso em: 2 nov. 2021.

[1] […] an individual suffers from current, severe nutritional restrictions, a recent bout of illness, inappropriate childcare practices or, more often, a combination of these factors. It is characterised by extreme weight loss, resulting in low weight for height, and/or bilateral oedema, and, in its severe form, can lead to death.

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