Texto Conjuntural África Austral # 22 – Ruandeses em Moçambique: perseguição de pertencentes à nação vítima de genocídio

Por Christiano Simões de Oliveira Filho

1 Introdução

A perseguição de ruandeses em 2021 chamou a atenção de políticos para a nação que foi vítima de genocídio e consequentes deslocamentos para países vizinhos na década de 1990. O genocídio foi parte de uma das guerras civis mais violentas do século XX como resultado de conflitos étnicos inflamados pela distribuição de poder pós-independência. Assim, o tratamento contemporâneo de ruandeses é um importante objeto de estudo em Moçambique e no contexto da África Austral considerando que chegou a haver um pedido de intervenção à União Africana.

2 A nação ruandesa e seu histórico político e étnico

Ruanda é um país cuja história foi muito observada a partir do genocídio promovido em 1994 como fase final de uma das guerras mais mortíferas desde o final da Segunda Guerra Mundial. As principais partes envolvidas foram os grupos populacionais definidos etnicamente como hutus e tutsis e as mortes foram promovidas tanto por militares como por civis. As mortes de civis são divididas entre tutsis mortos só por serem tutsis, tutsis mortos para a tomada de suas terra e riqueza e hutus moderados que não se opunham explicitamente aos tutsis, sendo o primeiro tipo de morte o qualificador de genocídio (MAGNARELLA, 2005).

Ruanda é um dos menores países da África Oriental e independente desde 1962, após a administração belga iniciada em 1919 e precedida de colonização alemã. A população é historicamente composta pelos grupos étnicos Hutu, tradicionalmente agricultor, e Tutsi, de pastores originados da África Setentrional. Os dois grupos compartilhavam a economia agricultora e a maioria de seus elementos linguísticos, culturais e de nacionalidade antes da colonização. A relação econômica era de caráter semelhante ao feudal com os hutus servos dos tutsis proprietários de terra, mas pode-se afirmar que não havia ameaças à paz entre os grupos antes da colonização alemã e belga. (BUDELI; VAMBE, 2010; MAGNARELLA, 2005)

Em termos gerais, o estado de paz foi ameaçado com a introdução de critérios segregacionistas pelos belgas para privilegiar os Tutsis, minoritários relativamente aos Hutus, e torná-los moderadores do contrato social colonizador. O pivô da independência de Ruanda foi a revolução iniciada pelos Hutus em 1956 que resultou na tomada de poder sob autorização belga em 1959 com expulsões de Tutsis em massa das terras que possuíam. Os tutsis expulsos foram forçados a se exilar em países vizinhos e formaram a Frente Patriótica Ruandesa (RPF – sigla para o nome em inglês Rwandan Patriotic Front) como força opositora. Após uma série de acontecimentos conflituosos e rivalidades internas à então elite política hutu, a RPF iniciou ataques aos hutus em 1990 e impulsionou uma guerra civil. (BUDELI; VAMBE, 2010)

A virada para o genocídio ocorreu após a assinatura do acordo de cessar-fogo de 1993, que previa nova constituição que formalizasse um sistema político-eleitoral multipartidário, para o que os hutus se opuseram à participação de tutsis no governo. Em abril de 1994, o avião que carregava o presidente, então hutu, foi atacado, sendo os tutsis acusados pela cúpula hutu extremista de assassinar o presidente e o genocídio iniciado com clamores constantes divulgados por rádio para que os hutus cumprissem o dever de eliminar os tutsis. A divulgação em massa foi complementada por militares que forçavam civis hutus a matarem tutsis, resultando em mais de 800 mil ruandeses mortos em 100 dias. (BUDELI; VAMBE, 2010)

O genocídio foi encerrado em 4 de julho de 1994 com a tomada da capital ruandesa pelas forças da RPF lideradas pelo General Paul Kagame e com a expulsão do governo hutu extremista. O fim do conflito foi seguido por estreita observação da situação política de Ruanda pela ONU e pela União Africana em busca pela paz definitiva. (BUDELI, VAMBE, 2010)

Observando a História em busca de compreender o posicionamento contemporâneo dos ruandeses, invoca-se o conceito de comunidade étnica: “nomeada população humana que compartilha um mito de ancestralidade comum, memórias e aspectos culturais; um vínculo com um território histórico ou uma terra natal; e uma medida de solidariedade”[1] (SMITH apud BROWN, 2001, p. 210, tradução nossa). Hutus e tutsis podem ser analisados individualmente como comunidades étnicas ao serem reconhecidos como famílias estendidas simultaneamente em processos discursivos e materiais de construção e naturalização compartilhando afinidades culturais, costumes, hábitos de comida e de vestuário e elementos linguísticos. (SMITH, 2009)

O delineamento de comunidades étnicas e suas dinâmicas pode levantar discussões sobre a sua diferenciação em relação à categoria de nação, cujo tipo ideal traçado por Smith é:

uma nomeada e autodefinida comunidade humana cujos membros cultivam memórias, símbolos, mitos, tradições e valores compartilhados, habitam e são ligados a territórios históricos ou a “terras natais”, criam e disseminam uma cultura pública distinta e observam costumes compartilhados e leis padronizadas[2] (SMITH, 2009, p.29-30, tradução nossa).

Em resumo, nações são definidas mais primordialmente com base em dimensões legais, territoriais e políticas, mesmo que sem excluir as dimensões étnicas. Comunidades étnicas não necessariamente possuem em caráter formal território de habitação, cultura pública e leis e costumes padronizados, podendo tornar-se nações quando os possuírem em caráter consolidado (SMITH, 2009). Nesse sentido, não seria consensual analisar hutus e tutsis como uma comunidade étnica única, mesmo em termos históricos e incluindo outros grupos étnicos residentes em Ruanda. Os ruandeses, independentemente de divisões étnicas internas, são ligados a um território definido, no qual apresentam cultura pública e leis estabelecidas formalmente. Portanto, o importante é entender como nação os ruandeses, os quais se tornam o presente objeto de estudo a partir das discussões sobre perseguição no contexto da África Austral e com foco em Moçambique em 2021.

3 A situação de insegurança aos ruandeses em Moçambique

Moçambique é palco de uma intervenção da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC – sigla do nome em inglês Southern African Development Community) no segundo semestre de 2021. A intervenção visa a retomada da segurança no norte do país diante da escalada de ataques terroristas que têm ameaçado toda a região e marcaram a tomada da cidade de Palma pelo grupo Al Shabab em 27 de março de 2021. Antes do início da intervenção da SADC, o primeiro país a enviar forças a Moçambique para o combate ao terrorismo foi Ruanda, que comprometeu mil tropas sob acordo bilateral. (VIEIRA, 2021)

O envolvimento militar de Ruanda já levantou receio sobre desrespeito aos direitos dos refugiados em Moçambique, onde residem pelo menos 4 mil ruandeses refugiados da perseguição a opositores e intelectuais discordantes do regime de Paul Kagame, presidente ruandês desde 2000 e líder da RPF. O receio foi compartilhado em 19 de julho por Cleophas Habiyareme, presidente da Associação dos Ruandeses Refugiados em Moçambique, que clamou respeito à Convenção de Genebra e suas associadas no país. (RUANDESES, 2021b)

O receio se justifica pelo histórico de desaparecimento e morte de ruandeses críticos do regime de Kagame que se refugiaram em Moçambique. Entre estes se encontram Louis Baziga, ex-presidente da Associação dos Ruandeses Refugiados em Moçambique morto em 2019, e Ntamuhanga Cassien, jornalista que teria fugido de Ruanda após prisão por conspiração contra o Estado e foi dado como desaparecido em março, também quando a Human Rights Watch acusou o governo ruandês de restrição da liberdade de expressão. Já após o envio das tropas ruandesas a Moçambique, o empresário Karemangingo Revocat foi assassinado a tiros em 13 de setembro, pelo que o Habiyareme solicitou uma comissão de investigação independente que serviria também ao caso de Cassien. Habiyareme demonstrou desconfiança com relação aos governos moçambicano e ruandês, afirmando que a comunidade ruandesa é a única a passar por crimes violentos não solucionados em Moçambique. (MAPOTE, 2021a; MOÇAMBIQUE, 2021; RUANDESES, 2021b; RUANDESES, 2021c)

Revocat seria até setembro o quinto ruandês morto por desconhecidos em Moçambique em cinco anos. O último caso foi do professor universitário Innocent Abubakar, interrogado por dois homens que tentaram invadir sua casa em outubro. Em reação às perseguições, a Associação dos Ruandeses Refugiados em Moçambique, representada por Habiyareme, solicitou intervenção da União Africana e da SADC para investigação. A solicitação foi reafirmada por Adriano Nuvunga, diretor-geral do Centro para a Democracia e Desenvolvimento, ONG moçambicana. Conforme Nuvunga, os ruandeses vivem em situação de insegurança diante de casos de ameaças, sequestros e homicídios em vários países africanos, o que se intensificou em Moçambique nos últimos meses e requer investigação e atenção internacional. (MAPOTE, 2021b; REFUGIADOS, 2021; RUANDESES, 2021a)

4 Considerações finais

A sequência de casos não investigados de desaparecimento e uso da violência contra indivíduos pertencentes à nação ruandesa refugiados em Moçambique levantou suspeita sobre os governos moçambicano e ruandês e levou a um pedido de intervenção à União Africana e à SADC. Os eventos expõem que a aproximação desses governos para o combate ao terrorismo em Cabo Delgado é um possível agravante da perseguição de ruandeses críticos ao governo de Paul Kagame e, assim, que o fantasma dos conflitos de Ruanda ainda pode estar presente.

Referências

BROWN, Michael E.. Ethnic and internal conflicts: causes and implications. In: CROCKER, Chester A.; HAMPSON, Fen Osler; AALL, Pamela R.. Turbulent Peace: the challenges of managing international conflict. Washington: USIP Press Books, 2001. Cap. 13, p. 209-226.

BUDELI, Mpfariseni; VAMBE, Beauty. The Rwandan genocide: a legal analysis. African Identities. London, v. 8, n. 4, p. 409-424, nov. 2010.

HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Tradução de Celina Cardim Cavalcante. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

MAGNARELLA, Paul J. The background and causes of the genocide in Rwanda. Journal of International Criminal Justice. Oxford, v. 3, p. 801-822, 2005.

MAPOTE, William. Com medo, ruandeses em Moçambique dizem-se marcados para morrer. VOA Portugues. Moçambique. [S.l.], 07 out. 2021a. Disponível em: <https://www.voaportugues.com/a/com-medo-ruandeses-em-mo%C3%A7ambique-dizem-se-marcados-para-morrer/6260700.html >. Acesso em: 01 dez. 2021.

MAPOTE, William. Refugiados ruandeses em Moçambique denunciam lista de cidadãos marcados para morrer. VOA Portugues. Moçambique. [S.l.], 14 set. 2021b. Disponível em: <https://www.voaportugues.com/a/refugiados-ruandeses-em-mo%C3%A7ambique-denunciam-lista-de-cidad%C3%A3os-marcados-para-morrer-/6225738.html >. Acesso em: 01 dez. 2021.

MOÇAMBIQUE: Kigali acusado de matar mais um refugiado ruandês. Deutsche Welle. Moçambique. [S.l.], 14 set. 2021. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-002/mo%C3%A7ambique-kigali-acusado-de-matar-mais-um-refugiado-ruand%C3%AAs/a-59176941 >. Acesso em: 01 dez. 2021.

PURDEKOVÁ, Andrea. Building a Nation in Rwanda?: De-ethnicisation and its discontents. Studies in Ethnicity and Nationalism. London, v. 8, n. 3, p. 502-523, 2008.

REFUGIADOS ruandeses em Moçambique denunciam novas intimidações. Deutsche Welle. Moçambique. [S.l.], 08 out. 2021. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-002/refugiados-ruandeses-em-mo%C3%A7ambique-denunciam-novas-intimida%C3%A7%C3%B5es/a-59452037 >. Acesso em: 01 dez. 2021.

RUANDESES em Moçambique pedem intervenção da União Africana. Deutsche Welle. Moçambique. [S.l.], 24 set. 2021a. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-002/ruandeses-em-mo%C3%A7ambique-pedem-interven%C3%A7%C3%A3o-da-uni%C3%A3o-africana/a-59298098 >. Acesso em: 01 dez. 2021.

RUANDESES em Moçambique pedem respeito pelos direitos dos refugiados. Deutsche Welle. Moçambique. [S.l.], 19 jul. 2021b. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-002/ruandeses-em-mo%C3%A7ambique-pedem-respeito-pelos-direitos-dos-refugiados/a-58321872&gt;. Acesso em: 01 dez. 2021.

RUANDESES pedem investigação independente ao homicídio de compatriota. Deutsche Welle. Moçambique. [S.l.], 22 set. 2021c. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-002/ruandeses-pedem-investiga%C3%A7%C3%A3o-independente-ao-homic%C3%ADdio-de-compatriota/a-59263524 >. Acesso em: 01 dez. 2021.

SMITH, Anthony D.. Ethno-symbolism and nationalism: a cultural approach. Abingdon: Routledge, 2009.

VIEIRA, Arnaldo. Mozambique: Soldiers Reclaim Areas Seized By Militants in Mozambique. AllAfrica. [S.l.], 08 set. 2021. Disponível em: <https://allafrica.com/stories/202109080101.html&gt;. Acesso em: 10 set. 2021.


[1] a named human population with a myth of common ancestry, shared memories, and cultural elements; a link with a historic territory or homeland; and a measure of solidarity.

[2] a named and self-defining human community whose members cultivate shared mem ories, symbols, myths, traditions and values, inhabit and are attached to historic terri tories or “homelands”, create and disseminate a distinctive public culture, and observe shared customs and standardised laws. 

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